WOMEN IN MUSIC PT. III | Um passeio sonoro das Haim
Atualizado: 19 de mar. de 2021
Para quem ficou conhecida pelo constante andar pela cidade em seus videoclipes, a banda californiana Haim agora expande a sua marca visual para uma assinatura sonora que permeia seu terceiro e pungente álbum Women in Music Pt. III (2020). Tão ou mais eclético que seus trabalhos anteriores, o novo projeto tem Los Angeles não somente no nome da canção de abertura, mas como um eixo deste mosaico musical. Da mesma maneira que a sonoridade das memórias de infância e adolescência das irmãs Este, Danielle e Alana Haim, especialmente a dos anos 1990, o tema das mulheres no mundo da música estampado no título e as reflexões sobre depressão são linhas condutoras que cruzam, vez ou outra, o encorpado disco de 16 faixas e conferem certo senso de unidade às mais diversas abordagens da obra.
Assim, um ícone da cidade já figura na capa do álbum, fotografada pelo cineasta Paul Thomas Anderson, que tem colaborado com elas desde os clipes do disco anterior. O trio se encontra no Canter’s Deli, tradicional delicatessen judia local que também foi o lugar do primeiro show das garotas de mesma origem, que saíram de San Francisco Valley para conquistar o cenário indie, anos depois, estreando com o viciante Days Are Gone (2013). E se em Something to Tell You (2017) – o segundo trabalho delas que é quase um protótipo musical espaçado deste, mas com pouca coesão conceitual e lírica –, a banda já brincava com certos efeitos sonoros, essas interferências agora integram toda a narrativa de Women in Music Pt. III, com a produção de Danielle, Ariel Rechtshaid e Rostam Batmanglij – ex-integrante do Vampire Weekend e parceiro delas desde o antecessor – criando uma paisagem sonora que ambienta o ouvinte nessa Los Angeles das Haim.
Recordando um recente exemplo cinematográfico, assim como Era Uma Vez em... Hollywood (2019) usa as gravações de rádio da época a fim de transportar o espectador para a L.A. de 1969 que Quentin Tarantino leva à tela, o álbum promove esta viagem sonora pela metrópole californiana, com todo o desconforto de suas mazelas, o conforto do rotineiro e as novas descobertas que qualquer passeio mais atento por sua cidade natal, seja ela qual for, trazem. Se esse sentimento ambíguo é escancarado logo de cara na letra de Los Angeles, esta e as músicas seguintes mergulham nesses sons locais. Sejam eles de ambiência, como do restaurante que surge nesta primeira faixa e também em Another Try e Leaning On You – que ainda traz um latido, num sinal de que os cachorros de Fiona Apple estão fazendo escola –, ou das influências musicais locais, a exemplo desta fusão na abertura do pop rock noventista californiano do Sugar Ray e Sublime com o toque de jazz, que sempre esteve presente na região, bem antes de La La Land (2016), e que reaparece ao longo da obra.
De certo modo, esse barulho da cidade já era prenunciado em Now I’m In It tal qual o sax de Henry Solomon na explicitamente loureediana Summer Girl, dois dos três singles lançados ainda no ano passado e que são agregados aqui como faixas bônus, e dariam o tom do álbum que estava por vir. Mas esta caminhada percorre cenários não só urbanos, como demonstra Up From a Dream, em que não só o bocejar e o despertador constroem a história da canção sobre o despertar de um sonho para uma realidade indesejada, mas os sons das gaivotas e do mar, que também está na onda que encerra o disco, pintam esta paisagem praiana etérea. Além, é claro, dos efeitos na voz de Danielle, a vocalista principal, guitarrista e baterista do grupo, que são mais intensificados neste projeto em relação ao antecessor; o que faz sentido na construção dessa multifacetada narrativa musical, mas que também deixa aquele desejo em ouvir a banda, que costuma ter uma potência especial nas performances ao vivo, em interpretações mais cruas de partes deste trabalho.
Algo que pode já ser ouvido originalmente na gravação de The Steps, com sua indefectível bateria e guitarra numa música que, mesmo guardando a eterna influência que estas irmãs possuem na obra do Fleetwood Mac, aponta o caminho do álbum para as referências dos anos 90. Há uma clara vibe Sheryl Crow – que, apesar de ser do Misssouri, estourou com uma música falando da vida noturna de L.A. – nesta faixa e em I’ve Been Down, mas que podem lembrar outras de suas contemporâneas no rock, a exemplo da simultânea fragilidade e aspereza de Alanis Morissette. Como era de se esperar conhecendo o histórico do trio, o R&B noventista também está presente na batida e nas harmonias de 3 AM que, junto à inserção das ligações masculinas procurando sexo casual durante a madrugada, remetem ao TLC e aos interlúdios telefônicos de CrazySexyCool (1994), sem falar na inesperada viagem para o house daquela década, especialmente ao UK garage, em I Know Alone, ou para o pop eletrônico do Savage Garden em I Want You, que é possível ouvir em Now I’m In It.
Isso não quer dizer que a constante reverência ao pop rock setentista e oitentista que ouviam junto dos pais tenha saído do cartaz da Haim, vide o último single Don’t Wanna, que poderia estar em qualquer um de seus discos. Nem que elas parem este resgate vintage por aí, já que o folk de 1960 e adiante está na base de Leaning On You, Hallelujah e Man from the Magazine, em que as duas primeiras carregam um clima de Simon & Garfunkel e a última soa como uma demo de Joni Mitchell, que chega a ser citada nominalmente em outra canção. Mas que há a predominância das referências dos anos 1990, mesmo com uma roupagem atual mais “chill”, a exemplo do trip hop sexy de Gasoline ou do reggae fusion e rocksteady de Another Try, que rememora a terceira onda de ska que surgiu na Califórnia daquela época com o já citado Sublime e o No Doubt de Gwen Stefani.
Aliás, se friso aqui a vocalista do grupo da vizinha Anaheim é porque, como é possível notar, grande parte dessas influências citadas vem de nomes femininos que fizeram a história da indústria da música. Ainda assim, a questão constante sobre como é ser uma mulher neste meio aparece nas entrevistas como se fosse uma novidade, a qual as irmãs respondem aqui com uma ironia autoconsciente no próprio título e, por vezes, liricamente ao longo do álbum. Se a incompreensão corrente delas em serem levadas a sério enquanto banda de rock e pop está velada em The Steps, o machismo na pergunta real que um repórter fez à baixista Este sobre as suas famosas caretas é escancarado nos primeiros versos de Man from the Magazine, que depois desenha uma cena universal sobre o descrédito às mulheres que desejam simplesmente comprar sua guitarra numa loja.
E mesmo as letras que falam de relacionamentos amorosos, que agora não são o foco exclusivo de seu trabalho como era antes e ficam mais restritas ao miolo do disco, tocam em assuntos mais complexos, a exemplo da relação tóxica de FUBT (Fucked Up But True), ou até são traduzidos nos gritos exasperados do experimentalismo caótico de All That Ever Mattered. Aliás, liricamente mais descritivas, tanto sobre esse cenário físico da cidade natal como do estado emocional e psicológico delas, as composições das irmãs versam muito sobre esta depressão pós-turnê que abateu, de certo modo, as três após excursionarem com o segundo álbum. Em Hallelujah, a multinstrumentista caçula Alana expõe a ferida ainda aberta pela perda da sua amiga de infância – a jogadora de basebol e atriz Sammi Kane Kraft, falecida em um acidente de carro em 2012 –, tal qual Este com as dores de conviver desde sempre com a diabetes, mas é através de Danielle, cujo estado depressivo foi mais forte depois do parceiro musical e de vida Ariel Rechtshaid ser diagnosticado com câncer – que se encontra em remissão agora –, que as músicas serviram como forma de expiação desses sentimentos.
Now I’m In It pode ter um sentido amoroso para alguns, mas traz a artista tentando compreender este seu momento, ao qual ela fala abertamente no “pedido de ajuda” de I’ve Been Down. Sua solidão ainda ganha outro significado neste período de isolamento social – a pandemia de Covid-19, por sinal, adiou em dois meses o lançamento do disco, antes previsto para 24 de abril – em canções como I Know Alone ou nos versos de Los Angeles. No entanto, em meio à tristeza, dor e desespero, vem o conforto ao longo do álbum: seja no apoio requisitado na oitava faixa, reconhecido na celebração de irmandade da penúltima e oferecido ao seu amor no encerramento, ou na própria sonoridade de uma banda que sempre primou por ritmos esfuziantes, fazendo das irmãs Haim as nossas Summer Girl’s neste longo inverno pandêmico.
Women in Music Pt. III (2020)
Artista: Haim
Duração: 51:39 (16 faixas)
Gravadora: Polydor Records / Columbia / Universal Music Brasil
Disponível em várias plataformas digitais [confira aqui]
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