OLHAR 2020 | Dia 4
Atualizado: 19 de dez. de 2020
Confira os destaques deste quarto dia de programação do 9ª edição do Olhar de Cinema:
Victoria (2020)
Vastidão de fascínio sob os olhos cinematográficos de Hollywood, o deserto eternizado pelos faroestes não gera, necessariamente, o mesmo apelo a todos os norte-americanos quanto parece. A exaltação da conquista do Oeste, muitas vezes, deixa passar o fato de que ela não foi de toda exitosa e várias cidades fantasmas povoam os Estados Unidos – alguns registros delas podem ser encontrados no recente documentário brasileiro Zona Árida (2019). E os projetos de povoamento dessas regiões não datam somente do período clássico de expansão do território do país, no século XIX, tendo fracassos recentes como o apresentado no filme Victoria (2020).
Ganhador de prêmios paralelos nos festivais de Berlim e IndieLisboa, o longa belga de Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere tem California City como cenário e personagem. Fundada 50 anos atrás por um milionário texano que queria fazer uma nova Los Angeles em pleno Deserto de Mojave, a cidade é até a terceira maior do estado da Califórnia em extensão territorial, porém, com um baixíssimo índice de povoamento no lugar onde as ruas estão “se esmigalhando” e gêiseres surgem a toda hora em meio à paisagem desértica, por causa do sistema de encanamento municipal já velho e feito às pressas na época de sua construção. Esses detalhes são informados por Lashay T. Warren, protagonista e narrador do documentário.
A produção começa, em 2016, quando o jovem já está há 145 dias no lugar, após ter se mudado de Los Angeles com toda a sua família, tendo o desejo de começar uma nova vida lá por causa da oportunidade de um emprego assegurado e de terminar os estudos com a bolsa de curso supletivo. No condado natal, o rapaz morava em Compton, cidade da grande L.A., conhecida pelo histórico de violência entre gangues e da qual Lashay traz suas marcas físicas e psicológicas, como denota nos comentários ao rever saudoso as ruas do seu antigo lar no Google Maps e Street View. Essas imagens invadem a tela e o trio de diretoras usa do fato dos rostos serem embaçados no aplicativo como representação da memória difusa que o protagonista começa a ter dos seus velhos amigos, alguns deles já mortos.
Os mapas, aliás, fazem parte do trabalho dele e de outros jovens, notadamente negros também ou latinos, deixando claro que a marginalização racial ou étnica é determinante neste caso, para que esses aventureiros, tais quais os pioneiros das cartas de 1849 e 1864 que leem na aula de História, decidam aceitar o convite de morar em Cal City e manter as suas vias intactas, já que muitas delas são invadidas pela areia ou pela parca vegetação que cresce no asfalto. A narrativa do filme, muitas vezes, parece não sair do lugar, mas é um reflexo do sentimento de desolação do próprio cenário e do que ele causa na sua personagem central e nas periféricas. Se a colega Sharleece demonstra um interesse por assuntos espaciais, a fuga de Lashay se encontra em simplesmente rodar o deserto, tocar uma gaita e manter o mapa para sua sanidade intacto ao criar uma nova cidade para si.
Victoria (Victoria, 2020)
Duração: 72 min | Classificação: 12 anos
Direção: Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere (veja + no site)
Produção: Bélgica
> Sessão – 11/10/2020 (domingo), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
> Reprise – 15/10/2020 (quinta), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
No site do Olhar de Cinema
Honrando o poético título, Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020) é uma colcha de retalhos documental sobre a ocupação urbana, em processo de transformação para bairro, Eliana Silva, em Belo Horizonte, que tem seus melhores momentos justamente quando destaca essas multidões humanas em cada um dos personagens, moradores do local em que foca a sua lente e dá a palavra por alguns minutos. A dupla Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica continua com o interesse já demonstrado em seus curtas-metragens em relação aos movimentos de luta por moradia em Minas Gerais. Se, no anterior Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados (2018), que também tem a direção de Camila Bastos e Cris Araújo, era registrado o momento de uma ocupação no silêncio da noite, o trabalho recente parte de uma proposta mais eficiente em gerar empatia da parcela do público que guarda preconceitos em torno do tema, através da identificação com pessoas cujos dramas, sonhos e cotidiano se assemelham tanto aos dos próprios espectadores – talvez, não da plateia cinéfila de festivais, mas daquela mais ampla a quem esta obra deveria chegar.
O filme começa com a câmera fixa e distante de uma grande roda onde uma das líderes comunitárias do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) informam os moradores que, agora, as ruas da ocupação têm CEP e eles podem requisitar que os Correios entreguem as correspondências e partir para mais conquistas a fim de que o lugar seja reconhecido como bairro. Essa mise-en-scène se repete na maior parte da narrativa, intercalada com alguns depoimentos diretos para a câmera, e funciona justamente nestes momentos mais cotidianos e pessoais do que no enfoque de um paralelo com as eleições de 2018, que aconteciam durante as filmagens. Por um lado, é interessante ver como uma disputa tão polarizada, marcada por discursos rasos, mais emocionais que racionais, e muita disseminação de notícias falsas, se deu no seio da população; porém, a impressão de certa encenação nas conversas sobre o tema, ecoando talvez um hibridismo próximo ao do conterrâneo Baronesa (2017), para confirmar impressões generalistas do que foi e tem sido este período tira um pouco da autenticidade do conteúdo.
As falas dos personagens retratados sobre suas vidas, da relação com a música de um deles, os problemas de saúde de um pedreiro, o relato de uma jovem sobre o ambiente familiar em que cresceu e como é ser LGBT dentro deste contexto, por exemplo, são mais reveladoras do Brasil que o próprio país não quer ver, assim como o simples registro dos sons de cachorros, motos, crianças e fogueira ou o convite para o almoço no dia seguinte são os pontos de ligação com esse cotidiano que nós mesmos, se tivermos alguma vivência periférica ou interiorana, conhecemos. É um pouco como a jovem cantora local que, no início, interpretando I Have Nothing, de Whitney Houston, não impressiona tanto quanto ao final, ao transparecer mais o seu talento ao ser mais genuína cantando Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares. A última cena no palco improvisado do bairro, aliás, é de uma força representativa maior, pensando na narrativa construída a partir desta costura humana, e o quanto o imprevisto vento trouxe de significado para a imagem de resistência dessa comunidade.
Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020)
Duração: 99 min | Classificação: 12 anos
Direção: Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica
Roteiro: Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito
Elenco: Comunidade da Ocupação Eliana Silva (veja + no site)
Produção: Brasil
> Sessão – 11/10/2020 (domingo), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
> Reprise – 15/10/2020 (quinta), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
No site do Olhar de Cinema
Longa Noite (2019)
Com um nome e sentido bem semelhantes ao curta-metragem português Noite Perpétua (2020), de Pedro Peralta, também presente nessa mostra competitiva do Olhar 2020, o longa espanhol Longa Noite (2019), de Eloy Enciso, demonstra o interesse, ou melhor, a necessidade da Espanha de hoje em remexer na memória coletiva, propositadamente esquecida, de traumas terríveis de Guerra Civil Espanhola e décadas de repressão do regime de Francisco Franco que se seguiu. A particularidade deste filme exibido nos festivais de Locarno e Toronto do ano passado está no fato de ser uma produção da Galícia, uma das regiões do país reconhecida como nacionalidade histórica, que possui suas próprias tradições e língua, e que foi sensivelmente castigada neste período. Algo que a obra aborda através de um mosaico humano de personagens locais, alguns vívidos e outros apenas arquétipos instrumentalizados para abordar o tema.
A base vem de textos dos escritores espanhóis José María Aroca, Max Aub, Rodolfo Fogwill, Ángeles Malonda, Marinhas del Valle, Alfonso Sastre, Luis Seoane e Ramón de Valenzuela, com a trama sendo costurada pela volta de Anxo (Misha Bies Golas), que havia desaparecido durante o conflito nacional, para a sua aldeia. No caminho, ele encontra diversos tipos que levantam as questões do exílio galego, fortemente acentuado durante aqueles anos entre os que seguiram para a América ou se embrenharam na floresta e se juntaram à guerrilha; o clima de desconfiança na região; o desejo de evitar a guerra; o prenúncio da repressão no quartel sendo construído; a exaltação do franquismo; a divergência entre os que acham que uniram o país e o tornaram grande e aqueles que consideram a bagunça feita nele; o relato dos horrores passados por uma mulher na prisão, no melhor momento do longa, entre outros fragmentos de memórias e opiniões. Essa colagem, porém, padece de certa falta de proposição cinematográfica ou dramatúrgica, o que pode afastar parte do público, mas que segue a corrente de tempo próprio do novo cinema galego.
Longa Noite (Longa Noite, 2019)
Duração: 90 min | Classificação: 12 anos
Direção: Eloy Enciso
Roteiro: Eloy Enciso, baseado em textos de José María Aroca, Max Aub, Rodolfo Fogwill, Ángeles Malonda, Marinhas del Valle, Alfonso Sastre, Luis Seoane e Ramón de Valenzuela
Elenco: Misha Bies Golas, Nuria Lestegás, Manuel "Pozas", Verónica Quintela, Manuel Pumares, Celsa Araújo e Suso Meilán (veja + no site)
Produção: Espanha
> Sessão – 11/10/2020 (domingo), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
> Reprise – 15/10/2020 (quinta), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
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Um Animal Amarelo (2020)
*Texto escrito originalmente durante a cobertura do 48º Festival de Cinema de Gramado
No cinema de Felipe Bragança, seja em projetos solo ou em parceria com outro realizador, o cruzamento entre passado e presente do Brasil é recorrente. Trata-se, geralmente, de um exercício mais fabular do que fantástico no resgate, mais profundo do que o comum, de eventos históricos fundadores da nação. Exemplos são a relação colonial com Portugal no curta Fernando que Ganhou um Pássaro do Mar (2013), em um momento em que os países se encontravam em fases diametralmente opostas as de agora, ou da Guerra do Paraguai no longa anterior Não Devore Meu Coração (2017).
A memória nacional é novamente revirada, sob o estigma de uma doença dolorosa, mas necessária, em sua nova obra Um Animal Amarelo. Exibida no Festival de Roterdã e previsto na programação do Olhar de Cinema, a produção chega a Gramado para dar sequência ao debate da herança colonial, especialmente escravocrata, na formação do povo brasileiro, abordado também por Todos os Mortos (2020). Iniciando com uma citação do antropólogo Darcy Ribeiro, a reflexão sobre a falta de identidade brasileira, ou de uma identidade a qual não se quer assumir, é traçada através da trajetória tragicômica e delirante de um cineasta chamado Fernando (Higor Campagnaro) recriando em forma de aventura e filme a história de seu ancestral por Moçambique, Portugal e Brasil.
Dividida em capítulos intitulados, a narrativa vai de um prólogo em 1984, que apresenta a figura já falida de seu avô (Herson Capri), que teve escravos moçambicanos, décadas depois da Abolição, e ainda mantinha o desvairado sonho da riqueza que um dia desfruto, bem como seu amuleto, um osso ligado à figura mítica do tal Animal Amarelo. Pulando para o presente, está seu neto, um cineasta que não obtém o financiamento para seu filme, no qual deseja contar sobre esse espólio familiar e acaba, ele mesmo partindo como um “pirata pálido” em busca de riquezas em Moçambique e se envolvendo em um esquema que o leva a Lisboa. Personagens vêm e vão como miragens na trama – a narradora e chefe moçambicana do protagonista, Catarina (Isabél Zuaa), e a paixão portuguesa dele, Susana (Catarina Wallenstein), conseguem se destacar –, assim como outras referências reais, porém, lendárias da cultura luso-brasileira, a exemplo de Carmen Miranda e do Sebastianismo.
A dedicatória final a Joaquim Pedro de Andrade é só o atestado de um filme que emula a aura de Macunaíma (1969) constantemente, sem demonstrar um pouco da perspicácia da obra-prima do cineasta no retrato plural da constituição do povo brasileiro. Há também elementos referenciais de Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, seja na imagem de abertura do navio naufragado ou no contrabando de pedras preciosas na narrativa. Contudo, na viagem transatlântica à história e ao cinema nacionais, o longa se afasta mais do que o esperado da realidade atual, ainda que ela seja sempre motivo de crítica desses reflexos passados.
Um Animal Amarelo é um filme declaradamente autocentrado, desde a metalinguagem na escolha de seu protagonista aos seus zooms, e isso caracteriza o seu céu e seu inferno. Honesto escudo para a autocrítica que Bragança faz a si mesmo e ao cinema que se encantou pela utopia de um país que se revelou ainda como reprodução da colônia de outrora, a abordagem é igualmente um lamento ensimesmado que não quer dar conta da complexidade do brasileiro de agora e de sua triste fábula real.
Um Animal Amarelo (2020)
Duração: 115 min | Classificação: 16 anos
Direção: Felipe Bragança
Roteiro: Felipe Bragança, com colaboração de João Nicolau
Elenco: Higor Campgnaro, Isabel Zuaa, Catarina Wallenstein, Tainá Medina, Thiago Lacerda, Matamba Joaquim, Sophie Charlotte, Lucilia Raimundo, Marcio Vito, Digão Ribeiro, Matheus Macena, Samuel Toledo (veja + no site)
Produção: Brasil, Portugal e Moçambique
> Sessão – 11/10/2020 (domingo), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
> Reprise – 15/10/2020 (quinta), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte
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