top of page

OLHAR 2025 | Do cinema sobre o Antropoceno para as econarrativas

  • Foto do escritor: Nayara Reynaud
    Nayara Reynaud
  • há 4 dias
  • 8 min de leitura
Cena do curta-metragem brasileiro Fronteriza (2025), de Rosa Caldeira e Nay Mendl, com o registro histórico da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Na imagem, há uma explosão dentro do curso de um rio já lamacento, em um vale cujas encostas já foram desbastadas e, no canto inferior esquerdo, estão embarcações de trabalho para a construção da barragem.
Cena do curta-metragem paulista Fronteriza, de Rosa Caldeira e Nay Mendl, com o registro histórico da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu

O meio ambiente foi destaque em diversos títulos do 14º Olhar de Cinema, seja nos longas ou curtas-metragem que abraçaram a temática, pautados no resgate memorial que ligou o recorte curatorial desta edição. Boa parte dos filmes amplificam as consequências de ações humanas desde o passado até o presente, tanto no ambiente natural quanto no social. Alguns, porém, trazem a natureza como coprotagonistas de suas narrativas e, logo, o ser humano como parte integrante dela e não o seu centro.


Dentro da seção Olhares Clássicos, duas obras de Frederico Füllgraf, Quarup Sete Quedas (1983) e Desapropriado (1983), recordam o espectador de hoje que, mesmo em menor quantidade do que na atualidade, os debates sobre questões ambientais não são novidade no cinema, inclusive no audiovisual nacional. Por sinal, quando o governo federal planejava a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, a célebre Janete Clair sofreu com a intensa censura da ditadura à sua novela Fogo Sobre Terra (1974-75), que utilizava uma cidade fictícia a ser inundada pela construção de uma barragem para debater as várias consequências deste projeto e de outros semelhantes da época, como Sobradinho, inaugurada em 1979. E apesar dessas constantes intervenções, a autora manteve a contundência da sua crítica socioambiental no subtexto da produção que, infelizmente, só teve seis de seus capítulos preservados – dois iniciais, dois da metade e os dois finais que, desde o ano passado, estão disponíveis no Globoplay, através do projeto Fragmentos.


Agricultores do extremo oeste paranaense em cena do documentário brasileiro Desapropriado (1983), de Frederico Füllgraf. Na imagem, há dois homens brancos de chapéu de palha: o da esquerda, usa uma camisa marrom e uma calça azul; o da direita, veste uma camiseta branca e calça jeans. Atrás deles, uma plantação baixa bem verde e, mais ao fundo, árvores e montanhas.
Agricultores em cena do filme paranaense Desapropriado, de Frederico Füllgraf

Passam-se alguns anos e, ao voltar da Alemanha após seus estudos como produtor e correspondente para a televisão pública de lá, Füllgraf se depara com o dilema dos moradores das áreas que seriam logo atingidas pelo represamento das águas de Itaipu, em 1982. O que era para ser somente uma reportagem especial sobre o papel das igrejas luterana e católica na defesa da terra cultivada pelos pequenos agricultores que construíram suas vidas naquele extremo oeste paranaense, a ser vista somente pelos telespectadores alemães, motivou o cineasta brasileiro a realizar os dois documentários para serem assistidos e discutidos no próprio país onde acontecia o fato.


No poético curta, o diretor une o registro do quarup, ritual de homenagem aos mortos realizado pelos Avá-Guarani, justamente a população indígena que habitava a região das Sete Quedas, aos versos que Carlos Drummond de Andrade escreveu acerca do absurdo que seria e, de fato, foi feito ao afogar aquelas que eram as maiores cachoeiras do mundo em volume. Deste modo, Füllgraf transforma o próprio Quarup Sete Quedas em um rito fúnebre cinematográfico sobre o fim daquela maravilha natural. O longa Desapropriado, por sua vez, se concentra mais no drama humano dos moradores prestes a serem desalojados, mas que lutavam pelos seus direitos. O documentário registra e entrevista estes agricultores ao longo da luta por uma nova terra digna e, por fim, acompanha alguns que foram iludidos com promessas vãs de que teriam uma nova vida no Acre, mas, jogados com suas famílias no meio da Floresta Amazônica sem qualquer infraestrutura próxima e sendo cobaias de um plano desastroso de adensamento populacional na região amazônica, muitos pereceram pela malária e outras doenças.


Cena do curta-metragem brasileiro Ontem Lembrei de Minha Mãe (2025), de Leandro Afonso, em que a ponta da estrutura de um barco presa a um pedaço de pau se deteriora dentro das águas de um rio lamacento, à beira do mato na margem.
Cena do curta paranaense Ontem Lembrei de Minha Mãe, de Leandro Afonso

Este é só um dos efeitos nocivos deixados ao redor dos países que realizaram este projeto multinacional. Dentro da competitiva brasileira de curtas do festival curitibano, os ecos desta questão que ainda traz suas implicações para além daquela região foram retomados pelo cinema paranaense, através desta peculiaridade multicultural da tríplice fronteira. Premiado pelo Júri da Crítica – do qual nossa editora fez parte junto de Cecilia Barroso e Luciana Melo –, Ontem Lembrei de Minha Mãe (2025), do professor baiano Leandro Afonso que deu aulas na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), coloca Arturo Rolando Gerez como porta-voz dos povos nativos que até hoje não tiveram seu território devidamente restituído após a inundação causada pela barragem que alterou totalmente o modo de vida dos guaranis e causou só mais destruição e descaso pela natureza e a comunidade. Já o vencedor do Prêmio Olhar de Melhor Filme desta metragem, Fronteriza (2025), de Rosa Caldeira e do estudante paulista Nay Mendl que se formou na mesma universidade localizada em Foz do Iguaçu, parte das sequelas sociais dos filhos que foram abandonados pelos trabalhadores que construíram a hidrelétrica – sejam os largados nas cidades natais desses homens que partiram para Itaipu, como o caso desta ficção, ou aqueles frutos de relações sexuais com as mulheres locais – para reverberar fronteiras de gênero, familiares e políticas naquele eixo geográfico.



Moradoras do quilombo paraibano de Aruanda em cena do curta-metragem brasileiro A Nave que Nunca Pousa (2025), de Ellen Morais. Na imagem, entre superfícies avermelhadas, se vê a mesa de jantar em que três mulheres pardas estão sentadas, olhando para cima. Na ponta, uma senhora de óculos e camisa branca; do lado esquerdo, uma mulher com o cabelo negro preso e camiseta preta; e do lado direito, a outra está com uma blusa amarela e os cabelos pretos soltos. Na mesa, uma toalha branca , alguns pratos e uma garrafa térmica bege. Ao fundo delas, na parede, está um armário de cozinha com diversos utensílios guardados.
Moradoras do quilombo Aruanda em cena do curta paraibano A Nave que Nunca Pousa, de Ellen Morais

Ainda neste enfoque de energias que drenam vidas humanas, o curta paraibano A Nave que Nunca Pousa (2025) utiliza da ficção científica para representar a chegada “alienígena” das turbinas do parque eólico localizado no quilombo registrado décadas atrás no seminal documentário Aruanda (1959), cujos trechos do filme de Linduarte Noronha são relembrados de forma metalinguística e comparativa nesta distinta estreia na direção de Ellen Morais. Outro trabalho documental fincado no debate socioambiental é o observacional Mais Um Dia (2025), em que o curtametragista paulista Vinícius Silva acompanha a rotina de uma artesã moradora de uma reserva extrativista acreana. Completando este recorte na competitiva, está a produção mato-grossense Maira Porongyta – O Aviso do Céu (2025), em que a realizadora Kujãesage Kaiabi encena uma reunião entre divindades, a partir da cosmologia Kaiabi, que discute os rumos deste planeta maltratado pela humanidade que o habita.


Marat Descartes em cena do longa brasileiro Na Passagem do Trópico (2025), de Fernando Miguez. Na imagem, no meio de uma mata fechada, está um homem branco, de meia idade, careca, vestindo um colete cinza sobre uma camiseta laranja e calça jeans azul, logo atrás de um aparelho topógrafo de medição, que tem uma lente apoiada por um tripé amarelo.
Marat Descartes em cena do longa paulista Na Passagem do Trópico, de Francisco Miguez

De volta aos longas que adentram nas discussões ecológicas, um achado da Mostra Novos Olhares é Na Passagem do Trópico (2025). No seu début direcional neste formato, o cineasta e ator Francisco Miguez apresenta uma capacidade ímpar de envolver o espectador no cotidiano de um topógrafo, interpretado pelo sempre competente Marat Descartes, que serve de dispositivo ficcional condutor deste híbrido filme, que apresenta a história de desgaste das encostas da Serra do Mar ao longo de décadas, mais exatamente em Ubatuba, no litoral norte paulista. Através da lente do aparelho de topografia antigo ao qual o protagonista é obrigado a usar para mapear os terrenos das áreas de risco, ele e o público se deparam com o passado se sobrepondo ao presente, enquanto são apresentados aos personagens reais que hoje sofrem com os deslizamentos e/ou lutam para impedi-los, sem que a narrativa recaia no didatismo recorrente em docuficções.


Fica evidente também na seleção deste Olhar 2025, entretanto, um movimento para um cinema que não somente observa as alterações no meio ambiente causadas pelos seres humanos e como isso reverbera de forma negativa para os mesmos, seus contemporâneos e gerações seguintes. Partindo de um olhar menos antropogênico, algumas obras propõem econarrativas na qual a natureza não é apenas tema, mas sim personagem fundamental das suas narrativas. É o caso dos documentários ensaísticos belga-congolês A Árvore da Autenticidade (2025), de Sammy Baloji, e brasileiro Cais (2025), de Safira Moreira, ambos sagrados com o prêmio principal de Melhor Filme nas competitivas de longas internacional e nacional, respectivamente – o último foi agraciado também pelo Júri Popular e o já citado Júri da Crítica da Abraccine.



Registros botânicos em cena do documentário belga-congolês A Árvore da Autenticidade (2025), de Sammy Baloji. Na imagem, está em detalhe uma página de papel, em que o ramo de uma planta está colado nela, junto de uma ficha de identificação da espécie em francês.
Registros botânicos em cena do documentário belga-congolês A Árvore da Autenticidade, de Sammy Baloji

Em seu segundo trabalho, que estreou na competição do Festival de Roterdã, Baloji faz de uma centenária árvore testemunha do processo de colonização humana do seu habitat e, consequentemente, da colonização belga na República Democrática do Congo onde está fincada e que é terra natal do cineasta. Antes, porém, o diretor apresenta outras vozes que remontam esta história. Na primeira das três partes de A Árvore da Autenticidade, há um instigante relato de Paul Panda Farnana (1888-1930), um agrônomo nascido ali, mas que levado criança para uma família que o adotou na Bélgica, volta à terra natal para auxiliar na sua exploração no início do século XX e percebe aos poucos as contradições daquele processo, do seu trabalho, do seu convívio com os colegas brancos e, de certa forma, em sua própria identidade. O segundo terço se revela mais maçante ao trazer a perspectiva dos registros de um funcionário belga da administração colonial que trabalha no mesmo local, décadas depois, embora esteja arraigada em suas palavras o próprio pensamento colonizador de superioridade e desdém por tudo que ali é nativo. É o trecho final, que dá voz à árvore, ainda que em um ato de antropomorfização, que resgata a atenção do espectador e torna a obra em uma espécie de manifesto de despertar coletivo tanto sobre os dilemas ecossociais nacionais quanto os globais.


Na produção baiana Cais, em contrapartida, a natureza fala por si só e se impõe imageticamente na fotografia que Safira Moreira assina com Bernard Lessa, ao mesmo tempo que constitui sensivelmente a narrativa etérea sobre a passagem do tempo. O filme que, assim como outros da seleção, levou alguns anos em seu desenvolvimento, viu o tempo o transformar em um exercício de processo de luto, quando a mãe da cineasta, Angélica Moreira, partiu meses antes das filmagens. Assim, aportamos junto à diretora, em um pequeno barco que desliza pelas águas do Rio Paraguaçu, em algumas das comunidades banhadas por ele no Recôncavo Baiano, e recolhemos fragmentos de memórias: sejam as familiares de Safira com seu rebento e outros parentes dela, sejam as ancestrais de uma Bahia que pariu o Brasil – ainda que o filme desague no Rio Alegre, nos Lençóis Maranhenses que sua guia materna desejava conhecer.


No registro de trabalhos manuais seculares, no sincretismo religioso do jarê, no resgate de cosmologias africanas elencado pelo multiartista Tinganá Santana, nas falas repletas de sabedoria do consagrado músico Mateus Aleluia sobre o Tempo, nos versos de Gilberto Gil em Copo Vazio e no próprio compasso vagaroso do longa, Moreira faz de sua jornada pessoal um convite universal e, simultaneamente, individual à plateia a refletir a sua relação com aquilo do qual somos feitos e fazemos parte. Estamos desassociados da natureza a qual integramos? Fora do ritmo do tempo natural das coisas do mundo e do tempo que habita dentro do mundo que é o nosso próprio corpo? Um pouco da minha viagem por esse Cais está na digressão pessoal do quase editorial da volta do Nervos, mas, por fim, cada pessoa trilhará memórias e reflexões diversas levadas por essas águas cinematográficas.


A cineasta Safira Moreira refletida nas águas do rio Paraguaçu em cena do seu filme Cais, produção baiana que foi a grande vencedora do 14º Olhar de Cinema. Na imagem, está o reflexo um pouco difuso e de ponta cabeça na água de uma mulher negra sentada com um vestido branco e ramos de árvores ao fundo dela.
A cineasta Safira Moreira refletida nas águas do rio Paraguaçu em cena do seu filme Cais, produção baiana que foi a grande vencedora do 14º Olhar de Cinema

Duração: 14 min | Classificação: 14 anos

Direção: Frederico Füllgraf

Roteiro: Frederico Füllgraf (veja + no site)

Produção: Brasil

Duração: 59 min | Classificação: 14 anos

Direção: Frederico Füllgraf

Roteiro: Frederico Füllgraf (veja + no site)

Produção: Brasil

Duração: 23 min | Classificação: 14 anos

Direção: Leandro Afonso

Roteiro: Leandro Afonso e Ana Beatriz Vieira Rocha

Elenco: Arturo Rolando Gerez (veja + no site)

Produção: Brasil

Fronteriza (2025)

Duração: 20 min | Classificação: 14 anos

Direção: Rosa Caldeira e Nay Mendl

Roteiro: Nay Mendl e Rosa Caldeira

Elenco: Nay Mendl e Diegoló (veja + no site)

Produção: Brasil e Paraguai

Duração: 15 min | Classificação: 12 anos

Direção: Ellen Morais

Roteiro: Jaime Guimarães

Elenco: Yasmin Formiga, Marinalva dos Santos e Ramiro dos Santos (veja + no site)

Produção: Brasil

Duração: 21 min | Classificação: 12 anos

Direção: Vinícius Silva

Roteiro: Vinícius Silva, Everlane Moraes e David Aynan

Elenco: Leonora Maia (veja + no site)

Produção: Brasil

Duração: 21 min | Classificação: 12 anos

Direção: Kujãesage Kaiabi

Roteiro: Tuiaraiup Kaiabi e Aruti Kaiabi

Elenco: Tuiaraiup Kaiabi, Mairepy Kaiabi e Pa'at Kaiabi (veja + no site)

Produção: Brasil

Na Passagem do Trópico (2025)

Duração: 86 min | Classificação: 12 anos

Direção: Francisco Miguez

Roteiro: Mauricio Battistuci

Elenco: Marat Descartes e João Filho (veja + no site)

Produção: Brasil

A Árvore da Autenticidade (L'arbre de L'authenticité, 2025)

Duração: 89 min | Classificação: 12 anos

Direção: Sammy Baloji

Roteiro: Ellen Meiresonne e David Van Reybrouck

Elenco: Edson Anibal e Laszlo Umbreit (veja + no site)

Produção: Bélgica e República Democrática do Congo

Cais (2025)

Duração: 69 min | Classificação: 10 anos

Direção: Safira Moreira

Roteiro: Safira Moreira

Elenco: Safira Moreira, Angélica Moreira, Inaê Moreira, Tinganá Santana e Mateus Aleluia (veja + no site)

Produção: Brasil


Comments


bottom of page