OLHAR 2025 | Vozes dissonantes
- Nayara Reynaud
- há 3 dias
- 9 min de leitura
Atualizado: há 2 dias
Através dos mais diversos formatos, abordagens e estilos, alguns filmes brasileiros da 14ª edição do Olhar de Cinema se dedicam a escutar, apresentar ou ampliar vozes que, por variadas razões, foram ou têm sido ignoradas socialmente ou pelo próprio cinema. No documentário observacional A Voz de Deus (2025), Miguel Antunes Ramos acompanha de perto, por anos, dois garotos de diferentes gerações do fenômeno de pastores mirins e, consequentemente, as transformações do neopentecostalismo e da classe trabalhadora no país ao longo de uma década. Já Explode São Paulo, Gil (2025) é um híbrido, não somente na mescla documental, ficcional e performática, mas na ambígua escolha da cineasta Maria Clara Escobar em oferecer a ludicidade cinematográfica como espaço de vazão aos sonhos e frustrações de sua diarista e amiga Gildeane Leonina, ao passo que também explora tais situações de sua personagem real. Em conexão com as duas produções paulistas, encontra-se a obra carioca Voz Zov Vzo (2025), estreia em maior metragem do artista visual e dramaturgo Yhuri Cruz, na qual propõe um musical experimental que ecoa as angústias de militantes, artistas e, por consequência, de toda a população negra durante o período ditatorial no Brasil. Confira os comentários sobre estes longas a seguir:
A Voz de Deus (2025)

Inaugurando a Mostra Competitiva de Longas do Olhar 2025, A Voz de Deus também foi o primeiro dos títulos de uma seleção que reuniu majoritariamente projetos que levaram 10 anos desde o seu desenvolvimento. Se a dita coincidência, na realidade, demonstra a problemática da indústria audiovisual brasileira em sua lenta capacidade de fomentar, incentivar e/ou dar suporte às produções em todas as suas etapas, o documentário de Miguel Antunes Ramos é o tipo de obra que se beneficia destas intempéries. A dilatação do tempo, antes forçada, torna-se providencial para o filme tornar-se um retrato de uma década de intensas transformações sociais, políticas, tecnológicas e geracionais no Brasil, a partir da observação paciente de dois pregadores mirins em diferentes momentos de suas trajetórias.
O cineasta paulistano que se debruçou sobre as contraditórias remodelações urbanas em seus primeiros curtas e no longa de estreia Banco Imobiliário (2016) para concentrar-se em diversas vivências indígenas em Filhos de Macunaíma (2019) e A Flecha e a Farda (2020), exibido também no Olhar em sua 9ª edição, faz do ambiente neopentecostal o foco de seu quarto trabalho nesta metragem. Acompanhando, a princípio, o então adolescente Daniel Pentecoste, que anos antes tinha se transformado em um fenômeno com o microfone na mão, pregando por inúmeras igrejas evangélicas pelo país e sendo pauta de várias reportagens nacionais e internacionais, o documentário encontra um jovem operador de caixa em um supermercado local no Distrito Federal que ainda usa o seu dom da palavra sobre o altar, mas já no ocaso do seu apelo como pastor mirim. Em uma significativa passagem de bastão, enunciada duplamente pela montagem de Yuri Amaral – único prêmio recebido pelo filme no festival, embora merecesse mais louros –, ele e o público são apresentados a um representante da geração seguinte de pregadores mirins, o enfático João Vitor Ota, menino da periferia da cidade de São Paulo.
Ao longo de seus 85 minutos, o documentário observacional estabelece as semelhanças e diferenças entre seus personagens principais e quem os cerca, convidando a plateia para uma recepção sem pré-julgamentos ou condescendências. O que os dois pastores guardam de suas experiências, respectivamente, pueris e infantis no cotidiano contrasta com suas falas públicas nas igrejas e congressos, carregadas de oratórias e maneirismos copiados, talvez de forma automática e inconsciente, dos pregadores adultos. Ambos originários de famílias da classe média trabalhadora, os garotos têm os seus talentos vistos como a boia de salvação para seus pais vislumbrarem uma vida melhor, da mesma forma que tantos outros projetam isso em seus filhos e filhas com o sonho de virarem jogadores de futebol, modelos e artistas mirins.
Alimentados pela própria teologia da prosperidade que, proeminente nas igrejas neopentecostais, motiva as pessoas a persistirem na fé de que Deus lhe proverá uma solução material, rápida e milagrosa para suas agruras terrenas – em contraste com os próprios ensinamentos de Jesus acerca do sacrifício, caridade e humildade para uma recompensa celeste –, eles depositam essa meta familiar em seus rebentos ainda em formação. Por vezes, ultrapassam a linha tênue da exploração, porém, também se entregam totalmente a um projeto que não entrega tudo aquilo que almejam ou que lhes fora prometido. Algo perceptível na decepção do pai de Daniel recolhendo os DVD’s não vendidos do outrora pequeno pregador ou nas constantes tentativas do pai de João em revender produtos na internet com o garoto em vias de entrar na pré-adolescência.
Assim como o registro espaçado das duas figuras de diferentes gerações demonstra as mudanças nas mídias, antes físicas e restritas às pregações no auge de Pentecoste e agora digitais e onipresentes na vida de um Ota influenciador, igualmente captura-se as transformações no discurso neopentecostal, à medida que, numa via de mão dupla, religião e política começam a interferir de forma significativa – e, por fim, prejudicial – uma na outra. As eleições de 2018, aliás, são tema de conversa familiar, defesa e questionamento a partir da rotina de Daniel, mas as consequências disso na dinâmica familiar dele com seu pai, tal qual aconteceu com tantas famílias desta nação, são sentidas com as filmagens que o diretor faz durante a disputa presidencial seguinte, em 2022.
Em um período no qual o documentário contemporâneo, seja no Brasil ou no mundo, está muito calcado no Eu, em um reflexo de uma tendência cinematográfica e também sociológica, A Voz de Deus surge como uma obra clássica e, ao mesmo tempo, insurgente. Independente da qualidade dos filmes que podem se mostrar tanto eficientemente universais quanto pedantemente egocêntricos, é notável na produção documentária atual a predominância de cineastas utilizando a abordagem em primeira pessoa, que se detêm sobre os acontecimentos e questões que lhe cercam, ou "personalista", na qual, mesmo voltando-se para outras pessoas e grupos, este olhar é sustentado por uma tese já pré-concebida ou, através da narração, transformado em algo sobre Si. Indo na contramão disso, Antunes Ramos resgata a essência de uma tradição coutiniana no documentário brasileiro, ainda que o célebre cineasta o fizesse através da entrevista e com sua presença vista na tela, de colocar-se à disposição de escutar e conhecer o Outro e, por consequência, trazer cada espectador para o mesmo exercício. Algo tão simples, mas que é tão dificilmente aplicado nos dias de hoje, que torna a obra especial neste momento.
A Voz de Deus (2025)
Duração: 85 min | Classificação: 12 anos
Direção: Miguel Antunes Ramos
Roteiro: Alice Riff e Miguel Antunes Ramos
Elenco: Daniel Pentecoste e João Vitor Ota (veja + no site)
Produção: Brasil
Explode São Paulo, Gil (2025)

Na lavanderia semiaberta nos fundos de uma casa antiga na cidade, Gil se encontra sentada, em uma pausa de suas tarefas, e confessa para a câmera as suas dificuldades em lidar com as pessoas no ambiente de trabalho, seja o antigo e ou o novo, em recomeçar com as referências do passado ainda presentes, entre outras questões acerca disto. O hipnotizante monólogo realizado por Gilda Nomacce, provavelmente a atriz que mais emenda trabalhos no cinema brasileiro, é seguido por Gildeane Leonina, uma poeta e cantora goiana que trabalha como diarista na capital paulista, apresentando sua história do alto da laje de sua casa no Jardim Shangrilá. Neste jogo entre realidade e ficção proposto por Maria Clara Escobar em Explode São Paulo, Gil, uma Gil se confunde com a outra inicialmente, mas também com as Gils presentes na plateia, a partir da identificação gerada com os sonhos e frustrações em relação à vida profissional e pessoal da protagonista do documentário, que, por sua vez, também se mescla à representação de seus próprios anseios, devaneios e desencantos na selva de pedra paulistana.
Uma conversa da diretora com sua amiga diarista e Dedê, companheira e empresária da última, estabelece essa dubiedade da relação metalinguística e híbrida do projeto, ao convidá-la para explodir São Paulo. No entanto, o ímpeto performático logo dá lugar aos registros e encenações do cotidiano. Gil escuta e vibra pela conquista de Susan Boyle, cantora escocesa que era considerada azarão pelos jurados que ficaram boquiabertos com sua famosa apresentação no reality show Britain’s Got Talent (2007-) – tão viralizada na internet em 2009 que nem precisamos ver as imagens para lembrar das reações –, mas, enquanto não tem o mesmo destino, segue cantando nos karaokês da cidade que a implode por dentro. Quando a fabulação narrativa se intensifica, os objetivos sonhados para a sua carreira contrastam com os obstáculos impostos pela sua saúde, com o agravamento de debilidades físicas, psicológicas e neurológicas.
A capacidade de tornar a jornada de Gil e de seus alter egos em ecos existenciais coletivos de uma classe trabalhadora encanta tanto que quase faz o espectador identificado, ou simplesmente empático, não dar a devida atenção às debilidades do filme. Toda a pujança inicial de Explode São Paulo, Gil se perde no terço final. Mais distante do encanto de antes, sobressai a contraditória posição da cineasta, que se destacou com seu primeiro longa Os Dias Com Ele (2013) e levou o prêmio de Melhor Direção neste 14º Olhar, ao decidir filmar sua própria diarista, que trabalha em sua casa há 20 anos e com quem firmou uma amizade, trazendo um retrogosto não tão agradável.
Ainda que se dê a ideia de que Gildeane, também premiada pela sua atuação, participara do processo criativo, não fica muito evidente que ela tenha tido, de fato, um papel decisivo na exploração de sua própria imagem. Tal ambiguidade pode gerar várias leituras a partir dos debates sobre as questões éticas no documentário, mas, independente de qual seja o veredito para cada pessoa, é a força da presença de Gil, em suas tristezas e alegrias, que fica na memória após a sessão.
Explode São Paulo, Gil (2025)
Duração: 97 min | Classificação: 14 anos
Direção: Maria Clara Escobar
Roteiro: Maria Clara Escobar e Gildeane Leonina
Elenco: Gildeane Leonina, Ivaneide Cavalaro (Dedê), Gilda Nomacce e Maria Clara Escobar (veja + no site)
Produção: Brasil e Portugal
Voz Zov Vzo (2025)

Com um trabalho que integra as artes visuais ao teatro para versar sobre questões raciais, o multiartista carioca Yhuri Cruz também traz esta multiplicidade de linguagens para dar luz ao tema em seu novo filme que tem o inusitado e criativo título de Voz Zov Vzo. Vozes do passado ressoam no presente em um estúdio, durante uma noite de 1975, no Rio de Janeiro, em que um grupo de amigos se reúne para ler e sentir as notícias enviadas de uma amiga militante naqueles anos de chumbo. O diferencial aqui para tantas outras produções relativas ao período é olhar para a Ditadura civil-militar pela perspectiva da população negra no Brasil, seja ela envolvida na luta armada como a autora da carta ou não, já que o simples agrupamento poderia ser visto como um risco pela repressão, com medo de replicarem os movimentos de democracia racial dos Estados Unidos, por exemplo, e pelos próprios setores progressistas e opositores aos militares que silenciavam suas demandas.
Fundamentado através das vozes desses personagens que chegam pouco a pouco, bem desconfiados, mas logo acolhidos pela anfitriã vivida por Jade Maria Zimbra, o filme faz da força do relato uma ferramenta memorialística, mesmo que a história precise ser ficcionalizada e musicada para então ser lembrada. Sendo uma ramificação do projeto Pretofagia, iniciado por Cruz como uma exposição que unia instalações e cenas dramatúrgicas e se desmembrou em diversas ações artísticas desde então, a produção não se furta de fazer uso da linguagem teatral e performática para expandir a encenação concentrada em um único cenário. Por isso, as interpretações são expansivas e, talvez, uma ou outra soe exagerada e a performance final se estenda um pouco, mas o diretor dos curtas O Túmulo da Terra (2020) e Missão do Congado (2023), entende bem a força da sua obra para condensar seu manifesto em subversivos 51 minutos.
A duração que pode o classificar como um média-metragem para muitos – incluindo esta que voz escreve –, formato que infelizmente tem dificuldades para encontrar janelas de exibição, ou como um longa, como foi para a curadoria do Olhar, só exemplifica como Voz Zov Vzo espelha a vontade de Cruz em atravessar os limites (auto)impostos sobre a que é uma criação artística.
Voz Zov Vzo (2025)
Duração: 51 min | Classificação: 12 anos
Direção: Yhuri Cruz
Roteiro: Yhuri Cruz
Elenco: Jade Maria Zimbra, Caju Bezerra, Almeida da Silva, Pedro Bento, Alex Reis e Dani Câmara (veja + no site)
Produção: Brasil
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