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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | A relação humana com a terra

Atualizado: 8 de jan. de 2023

Um assunto recorrente nessa seleção da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo tem sido a da relação intrínseca do ser humano com a terra sob a ameaça das remoções, geralmente de viés progressivo e não humanitário. A ligação cultural e espiritual com um lugar é o tema de Isso Não É um Enterro, É uma Ressureição (2019), filme de Lesoto, país africano que marca sua estreia no evento com este trabalho de Lemohang Jeremiah Mosese. E se ali o estopim é a construção de uma futura represa, os efeitos socioambientais de uma real são mostrados pelo documentário brasileiro Sobradinho (2020), produção baiana de Cláudio Marques e Marília Hughes. O perigo vem da mineração na Mongólia, como detalha o drama familiar As Veias do Mundo (2020), de Byambasuren Davaa. E em outro longa documental nacional, Cracolândia (2020), de Edu Felistoque, é possível perceber que apenas remover os dependentes químicos da região central de São Paulo que ficou conhecida por esse nome não é a solução.

 

Isso Não É um Enterro, É uma Ressureição (This Is Not a Burial, It’s a Resurrection, 2019)


Mary Twala Mhlongo e elenco em cena do filme Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição (2019), realizado em Lesoto pelo cineasta Lemohang Jeremiah Mosese | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Primeiro filme lesotiano a participar da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Isso Não É um Enterro, É uma Ressureição dialoga diretamente com outros títulos da seleção desta 44ª edição do evento. O terceiro longa do cineasta Lemohang Jeremiah Mosese traz uma história de revolta pelo desrespeito aos seus antepassados, na ameaça de destruição do cemitério da comunidade, assim como a narrada no canadense Beans (2020), de Tracey Deer, que se baseia em fatos reais. Tal qual o documentário brasileiro Sobradinho, de Cláudio Marques e Marília Hughes, toda uma população deve ser retirada para a construção de uma represa. E ainda como a produção mongol As Veias do Mundo, de Byambasuren Davaa, há a resistência individual inspirando uma luta coletiva pela preservação da natureza e de uma cultura.


A trama aqui acompanha Mantoa (Mary Twala Mhlongo, atriz sul-africana falecida em julho deste ano), uma viúva de 80 anos que vive no vilarejo de Nazareth, nas montanhas de Lesoto, que tem frustrada a sua espera pelo filho, que iria retornar das minas de ouro da África do Sul – país que encapsula o pequeno reino –, com a notícia da morte dele. Após os rituais fúnebres e o luto que ela insiste em não se despir, a anciã já planeja os detalhes de sua própria morte, mas é surpreendida por outra informação que afeta a vida de todos ali. A promessa de progresso da construção de uma barragem de um reservatório que vai inundar toda a região vem com o ônus imediato do deslocamento dos habitantes vivos e a maculação dos mortos na Planície das Lamentações, local onde seus antepassados estão enterrados. A importância dessa ligação com sua terra, como patrimônio espiritual e cultural, é defendida pela velha senhora que, por vezes, se choca com a opinião das outras duas figuras importantes da aldeia, o chefe local (Tseko Monaheng) e o padre (Makhaola Ndebele), mas inspira uma espécie de avivamento das raízes da comunidade entre todos seus integrantes.


O diferencial do título exibido nos festivais de Veneza, Sundance – neste, recebeu um prêmio especial do júri – e Roterdã para as outras obras citadas é a comunhão desses temas urgentes a um belo exercício de linguagem cinematográfica de Mosese, que igualmente conjuga dicotomias de um modo muito eficiente. A evocação do passado na escolha do formato de tela e tratamento de imagem que dão ao 4:3 de borda arredondada um aspecto de fotografia antiga, daquelas coloridas à mão em fortes tonalidades, não impede do discurso sempre remeter ao presente. Da mesma maneira, o tom fabular conferido especialmente pela narração da persona quase mítica, incorporada por Jerry Mofokeng Wa, convive com o senso de uma realidade muito palpável no retrato social apresentado.


A universalidade da questão é banhada pelo registro das particularidades daquela cultura, em particular através da sua musicalidade, seja no instrumento que entroniza as passagens dessa história ou nos cantos entoados pelos aldeões. A trilha sonora, aliás, entra em uma crescente de tensão em determinados momentos, imprimindo uma urgência narrativa que também se integra ao aspecto contemplativo e calculado dos enquadramentos do diretor de For Those Whose God Is Dead (2013) e Mother, I Am Suffocating. This Is My Last Film About You (2019), a exemplo do padre emoldurado em um pequeno espelho e da importância dada a cada zoom e movimento de câmera. E desses quadros, Isso Não É um Enterro, É uma Ressureição se torna um relicário de uma ancestralidade que resiste às pressões do tempo humano e um manifesto para as gerações futuras.

 

Isso Não É um Enterro, É uma Ressureição (This Is Not a Burial, It’s a Resurrection, 2019)

Duração: 120 min | Classificação: 14 anos

Direção: Lemohang Jeremiah Mosese

Roteiro: Lemohang Jeremiah Mosese

Elenco: Mary Twala Mhlongo, Jerry Mofokeng Wa, Makhaola Ndebele, Tseko Monaheng e Siphiwe Nzima (veja + no site)

Produção: Lesoto, África do Sul e Itália

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

 

Sobradinho (2020)


Os cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes – ele, nascido em Campinas-SP, mas radicado em Salvador, e ela, natural de Vitória da Conquista, também na Bahia – figuram como importantes nomes do cinema baiano contemporâneo, sendo responsáveis, em conjunto, por Depois da Chuva (2013), A Cidade do Futuro (2016) e Guerra de Algodão (2018), além de projetos individuais que fomentaram a cena cultural na capital baiana. Em seu quarto longo, a dupla retorna não somente ao interesse demonstrado em seus primeiros curtas-metragens, pela questão das transformações urbanas e a moradia, mas ao mesmo objeto temático, geográfico e humano de Desterro (2012). Expande-se o então curta documental no longa Sobradinho, que retrata o impacto que a construção da barragem e da usina hidrelétrica de mesmo nome trouxe para a região, deslocando 73 mil pessoas de quatro cidades e das vilas no entorno.


Dona Pequenita, a única moradora que voltou a Pilão Arcado, que não sendo inundada como previsto, se tornou uma cidade fantasma na qual a senhora vagueia sozinha, é novamente a personagem escolhida pelos diretores para contar esses eventos. Eles promovem um novo encontro dela com Thereza Batalha, agora acompanhada de outras duas assistentes sociais da época, que trabalharam na remoção da população local e trazem os registros de fotos e filmagens que guardaram do projeto, ao qual possuem sentimentos conflituosos em suas memórias. Soma-se a isso, os arquivos dos cinejornais e propagandas institucionais do período e trechos da telenovela Fogo Sobre Pedra (1974-75), exibida na Rede Globo naquele mesmo momento das inundações.


Neste ponto, falta uma menção do filme à forte censura que se abateu à obra de Janete Clair, dando a entender que a produção, por ser de uma emissora que se beneficiou da Ditadura e ter Regina Duarte como uma das protagonistas, apenas romantizou a história de uma cidade fictícia do interior do Mato Grosso prestes a ser inundada pela chegada do progresso com uma represa, sendo que o fato de ser veiculada também durante a época em que se planejava construir Itaipu acarretou inúmeros cortes e mudanças forçadas de personagens em uma novela de tom crítico por conta das decisões dos censores. Igualmente, ressente-se a falta de um olhar, que o formato estendido do longa-metragem permitiria, para as consequências nas vidas dos que partiram dali, nem que fosse em informações nas cartelas finais. Ainda assim, o registro histórico e atual do impacto socioambiental segue sendo importante e pertinente em um país no qual, independentemente do governo vigente, as hidrelétricas continuam a desalojar brasileiros de suas terras, vide Belo Monte, Jirau e Santo Antonio.

 

Mostra Brasil

Sobradinho (2020)

Duração: 70 min

Direção: Cláudio Marques e Marília Hughes

Roteiro: Marília Hughes e Cláudio Marques (veja + no site)

Produção: Brasil

> Disponível gratuitamente no Sesc Digital, das 20h de 26/10 (segunda) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

 

As Veias do Mundo (Die Adern Der Welt, 2020)


Enerel Tumen e Algirchamin Baatarsuren em cena do filme mongol As Veias do Mundo (Die Adern Der Welt, 2020), de Byambasuren Davaa | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo / Créditos: Talal Khoury)

Presente no último Festival de Berlim, As Veias do Mundo é o quarto longa da cineasta Byambasuren Davaa, que já levou a Mongólia para o Oscar com a indicação do documentário Camelos Também Choram (2003). Em sua segunda incursão na ficção, a diretora promove o encontro do drama coming of age com o filme de denúncia ao contar a história de Amra (Bat-Ireedui Batmunkh), um garoto de 11 anos que mora com sua família no interior do país. E o resultado final, embora siga convenções narrativas já conhecidas, é bem-sucedido e deve agradar ao público.


Empunhando um ritmo mais paciente, porém, condizente ao retrato do estilo de vida dos nômades da região, o roteiro escrito por Davaa e Jiska Rickels dedica sua primeira parte à rotina do protagonista na escola e em casa, seu sonho de participar do concurso de talentos do reality show Mongolia Got’s Talent (2015-) e, especialmente, a relação com seu pai (Yalalt Namsrai). Erdene é uma figura de liderança local, que se mostra bem combatente à exploração das empresas multinacionais mineradoras de ouro que pressionam a população local. Com a sua morte, tanto o menino quanto à comunidade perdem a sua referência.


A narrativa, então, observa Amra sendo obrigado a amadurecer rapidamente, na necessidade que ele mesmo se impõe de ser o “homem da casa” e ajudar a mãe (Enerel Tumen) e a pequena irmã (Algirchamin Baatarsuren), que trabalham com o rebanho. Nessa jornada do personagem, há atitudes pueris de um filme familiar, como na sabotagem que o garoto faz com seu primo (Purevdorj Uranchimeg), e também o drama da exploração do trabalho infantil, embora a questão ambiental seja o foco principal do discurso da obra – um quinto do país já foi delimitado para a mineração. Davaa une de modo eficiente a dramaturgia ao aspecto contemplativo da ambientação, com destaque para a direção de fotografia de Talal Khoury ao aproveitar ao máximo a beleza das estepes mongóis.

 

As Veias do Mundo (Die Adern Der Welt, 2020)

Duração: 96 min | Classificação: 12 anos

Direção: Byambasuren Davaa

Roteiro: Byambasuren Davaa e Jiska Rickels

Elenco: Bat-Ireedui Batmunkh, Purevdorj Uranchimeg, Enerel Tumen, Algirchamin Baatarsuren e Yalalt Namsrai (veja + no site)

Produção: Alemanha e Mongólia

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 1.500 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play

 

Cena do documentário nacional Cracolândia (2020), de Edu Felistoque | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

*Filme assistido online durante o 13º Los Angeles Brazilian Film Festival

O tema do novo documentário do cineasta paulista Edu Felistoque, Cracolândia, certamente, não é um dos mais fáceis de trabalhar. A concentração populacional que se formou na região dos Campos Elísios, centro da cidade de São Paulo, em torno do tráfico e consumo a céu aberto de crack, entre outras drogas, é um problema a qual a maior metrópole do país, em sucessivos governos municipais e estaduais desde os anos 1980, não conseguiu lidar e nem os especialistas são capazes de chegar a um consenso para solucionar a complexa questão social e de segurança. Sendo assim, era até esperado que o longa não desse conta de tratar uma problemática tão grande, mas não a elaboração de uma tese inicial de uma conversa aberta entre as várias partes desse conflito, que não acontece de fato ao longo da produção, e, mais sensivelmente, transformar a obra cinematográfica em propaganda política.


Logo, no início, o público é apresentado ao cientista político Heni Ozi Cucker como alguém que estudou profundamente o caso, porém, logo fica claro, já pela movimentação de câmera, que o filme não irá tratá-lo como mais um dos especialistas entrevistados e, sim, como o personagem que vai conduzir a narrativa. O documentário, porém, omite o fato de que seu protagonista, que narra esta história não somente à frente da tela, mas igualmente nos bastidores ao assinar o roteiro, era o Secretário-adjunto de Segurança Urbana de São Paulo na época das filmagens, em 2017, e só na cartela final, revela que o mesmo foi eleito a deputado estadual em São Paulo. O problema não é a sua (oni)presença aqui, pois várias produções do gênero já se deteram em retratos de políticos e candidatos, mas sim mascarar este fato e deixar em suas mãos o comando do discurso da obra.


Isso acarreta em uma visão parcial à Cracolândia, que seria totalmente válida, embora sujeita a críticas, mas que se mostra desonesta ao se vender como um olhar imparcial, sem partidarismo aos dois polos que mais se destacam na condução do tema: a da assistência aos dependentes químicos ali residentes e a do combate ao tráfico e consumo de drogas. O filme traz a máxima correta de que não é possível lidar com o problema pensando somente em um desses aspectos e de que é necessária uma ação coordenada para solucioná-lo. Contudo, ao pontuar as benesses e a ineficiência de determinadas medidas de assistencialismo, o mesmo não ocorre quando se fala de forma elogiosa das ações de segurança do Estado, em suas esferas estadual e municipal, sem crítica do ponto de vista humanitário, com a repressão policial, ou estratégico mesmo, já que o longa prefere não focar se a facção criminosa que se instalou nesse vácuo de presença pública, de fato, foi presa ou saiu do local.


De mesma forma, por mais que se tente ampliar o contexto, falando da situação dos moradores da região ou de como, do ponto de vista psicológico, existe um conforto para os dependentes ao estarem naquele grupo, o desequilíbrio nos depoimentos é perceptível, vide a escolha prioritária pela voz dos órgãos públicos oficiais e pela entrevista com o líder de um movimento que parece mais surfar na onda da Cracolândia, para desmoralizar a atuação das ONG’s, em vez de trazer de trazer a opinião das entidades assistenciais e religiosas que realmente atuam na área – além da exposição dos rostos das pessoas naquela situação, sem cerimônia ou preocupação ética com os direitos de imagem. O terceiro ato traz os exemplos de países europeus e norte-americanos e, embora não aborde o fato de que a dispersão dessas concentrações também tiveram suas consequências para as cidades ao redor do grande centro urbano, como mostra o recente filme suíço Praça Needle Baby (2020), o documentário, ao menos, pondera o fato de que a realidade das nações de primeiro mundo e do próprio vício em heroína não seria totalmente aplicável para o caso do crack e a conjuntura brasileira. Uma pena que o filme não queira se debruçar em todos os aspectos complexos de uma questão longe de ter solução, se não houver, verdadeiramente, uma conversa franca sobre a efetividade e efeitos das medidas integradas que podem ser tomadas.

 

Mostra Brasil

Duração: 87 min

Direção: Edu Felistoque

Roteiro: Heni Ozi Cukier (veja + no site)

Produção: Brasil

Distribuição: O2 Play

> Disponível gratuitamente no Sesc Digital, das 20h de 29/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações



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