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  • Foto do escritorNayara Reynaud

GRAMADO 2020 | Dia 2 – Corpos desaparecidos

Atualizado: 20 de ago. de 2021


Festival de Gramado 2020: Inabitável (2020) | Subsolo (2020) | Todos os Mortos (2020) | La Frontera (2019) | Fotos: Divulgação (Festival de Gramado e produtoras)

A segunda noite do 48º Festival de Cinema de Gramado começou com a busca de uma mãe por sua filha desaparecida em Inabitável (2020). Este desaparecimento serve como ponto de partida para o curta-metragem pernambucano tratar sobre corpos inviabilizados na sociedade, um tema que atravessa, de formas diferentes, todos os filmes deste sábado (19) no evento. O curta de animação gaúcho Subsolo (2020) tece sua crítica acerca de padrões de beleza inalcançáveis, enquanto os longas Todos os Mortos (2020), novo trabalho dos paulistas Caetano Gotardo e Marco Dutra, e o colombiano La Frontera (2019) discutem o processo histórico de violência sobre os corpos negros e indígenas, respectivamente, e seus reflexos na atualidade. Saiba mais desses títulos a seguir.

 

Inabitável (2020) e Subsolo (2020)


Luciana Souza e Sophia Williams em cena do curta pernambucano Inabitável (2020), de Matheus Farias e Enock Carvalho | Foto: Divulgação

A notável dupla de curta-metragistas pernambucanos Matheus Farias e Enock Carvalho, responsável por Caranguejo Rei (2019) e Quarto para Alugar (2016), retorna ao circuito de festivais com Inabitável, obra que já foi exibida no Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, o Kinoforum, em agosto passado. Abrindo o segundo dia de sessões em Gramado, Enock o apresentou como um “filme de busca, incertezas e esperança”. O tom de incerteza já vem no letreiro inicial da produção, indicando um Brasil antes da pandemia, para então acompanhar Marilene (Luciana Souza, conhecida por seus papéis em Bacurau, de 2019, e Ó Pai Ó, de 2007) percorrendo o transporte público recifense e as vielas de seu bairro periférico em busca de sua filha Roberta.


O fato de a jovem ser trans não é por acaso. E Farias e Carvalho usam o conhecimento público do alto número de casos de violência contra pessoas trans no Brasil como pano de fundo (in)consciente para a narrativa. Enquanto a mãe, com seu amor irrestrito e sem atitudes diferenciadas ou condescendentes em relação ao que qualquer figura materna faria se sua filha fosse cisgênera, contradiz o pensamento pré-concebido do espectador de que uma mulher trans enfrentaria o preconceito já no seio de sua família, são nos olhares dos “outros” e nas dificuldades que ela sabe que enfrentará pelo descaso público com a questão que residem os problemas de uma sociedade que fomenta tal violência.


Quando tanto a busca quanto a trama parecem fadadas à inércia, a duo de diretores e roteiristas se volta ao cinema fantástico, já parte integrante de sua filmografia, bem ao final. Nada é muito revelado neste desfecho com toques de ficção científica, que até podem remeter ao afrofuturismo, ou neste caso, um transfuturismo, mas tais estéticas não são explorada além da sugestão de ideia utópica de futuro ou um lugar habitável para Roberta, sua mãe e quem mais estiver livre de preconceitos.


Cena do curta de animação gaúcho Subsolo (2020), de Erica Maradona e Otto Guerra | Foto: Divulgação

No curta seguinte, a animação gaúcha Subsolo, a alusão à violência física dá lugar à psicológica, que recai sobre os diversos corpos frustrados pela impossibilidade de alcançar o ideal imposto pelos padrões de beleza atuais – até porque, no início do século passado, a noção de beleza feminina, por exemplo, era bem diferente de agora. Sendo assim, a animadora Erica Maradona soma a sua experiência pessoal no ambiente opressor de uma academia à ideia original de Fernando Graña neste trabalho, em que partilha a direção com o famoso nome do gênero no Brasil, o cineasta Otto Guerra, de A Cidade dos Piratas (2018), repetindo a parceria da recente série Rocky & Hudson – Os Cowboys Gays (2020), exibida no Canal Brasil.


Ao som de Estrelar, de Marcos Valle, o filme apresenta o ecossistema dessa academia, com tipos bem caricaturais que habitam o lugar em que três amigos suam e se frustram repetidamente. A partir da metade, a narrativa começa a revelar que a energia e a gorduras gastas no local tem destino certo no subsolo, onde a indústria engendra uma nova maneira de fazer isso retornar aos clientes/consumidores dali, em um ciclo sem fim. A crítica a um sistema capitalista que abusa da saúde alheia é direta na alegoria usada por esta sátira, mas também simplória em um curta que poderia explorar mais o tema proposto.

 

Duração: 19 min

Direção: Matheus Farias e Enock Carvalho

Roteiro: Matheus Farias e Enock Carvalho

Elenco: Luciana Souza, Sophia Williams e Erlene Melo (veja + no site)

Produção: Brasil (Pernambuco)

Subsolo (2020)

Duração: 8 min

Direção: Erica Maradona e Otto Guerra

Roteiro: Erica Maradona e Vinícius Perez

Elenco: Paulo Tiefenthaler, Alfredo Rollo e Carol Valença (veja + no site)

Produção: Brasil (Rio Grande do Sul)

 

Mawusi Tulan e Agyei Augusto em cena do filme Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra | Foto: Divulgação (Dezenove Som e Imagens)

Exibido sem grande comoção ou repercussão na competição do último Festival de Berlim, Todos os Mortos chega agora ao público que lhe diz respeito, com todos os acertos e falhas que o novo filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra traz ao tocar em feridas ainda latentes no Brasil. Enquanto os sacos de café no fundo dos créditos iniciais já remetem o espectador para uma época de outrora, o letreiro especifica que a viagem no tempo retorna à São Paulo, setembro de 1899, durante as comemorações da Independência do país que, naquele ponto, passava por um intenso processo de transformação e, paradoxalmente, manutenção de certas hierarquias com apenas uma década da recém-criada República e da Abolição da escravatura. Passando por outras datas comemorativas, como Finados e Natal daquele ano e o Carnaval de 1900, o período escolhido é a chave para o longa cruzar as trajetórias das famílias Soares e Nascimento.


De um lado, uma aristocracia falida que se mostra arraigada ao passado “glorioso” na fazenda, na qual Isabel (Thaia Perez), a atormentada filha caçula Ana (Carolina Bianchi) e a rígida Irmã Maria (Clarissa Kiste) se encontram presas, com exceção da última, na casa que lhes restou na capital – a locação é a da histórica Casa Ranzini que, na realidade, só foi construída em 1924. Do outro, Iná Nascimento (Mawusi Tulani) e seu filho João (Agyei Augusto), membros de uma família escravizada por gerações pelos Soares e que enfrentam as dificuldades dos escravos libertos naquele primeiro momento: trocados por imigrantes italianos nas lavouras, se sujeitando a subempregos na cidade. Os dois são chamados para irem a São Paulo pela religiosa católica a fim de encenar um ritual que possa aplacar as dores físicas da mãe e mentais da irmã.


O ato, sabiamente, não é um dispositivo para Gotardo, de O Que Se Move (2012), e Dutra, de O Silêncio do Céu (2016) e parcerias com Juliana Rojas nos filmes de terror As Boas Maneiras (2017) e Trabalhar Cansa (2011), mergulharem no cinema de gênero que tanto lhes é caro. O conceito fantasmagórico é evocado pela dupla através, somente, do choque entre passado e presente para pontuar como as resoluções de outrora assombram o agora – isso não apenas quanto ao racismo estrutural, mas relativo a outras questões. Essa mistura entre elementos de época e contemporâneos foi utilizada recentemente no excelente Em Trânsito (2018), do alemão Christian Petzold, mas diferente deste, o longa nacional demora a mostrar essa faceta.


Entre os figurinos do final do século XIX e uma interpretação presa a uma polidez enunciativa no linguajar culto que soa estranha em alguns momentos, até para quem está acostumado com novelas de época, é o trabalho de som que traz uma ruptura temporal para, aos poucos, se revelar também nos quadros alguns detalhes da São Paulo do início do século XXI. Os barulhos da cidade, como do amolador, o carro do ovo e um helicóptero rasante, quebram o cenário idílico ou contradizem as falas das personagens, como na esperança de uma Belle Époque para o Brasil entrecortada pelo soar das sirenes de polícia. Uma pena que a remasterização realizada para a exibição do filme na televisão, nesta parceria do festival com o Canal Brasil, tenha apresentado uma mixagem na qual a ambientação sonora se sobrepõe aos diálogos e prejudique os efeitos que o desenho de som pretendia, já que o mesmo problema não foi observado na sessão em Berlim.


Fora esta questão técnica, a obra se complica dentro do grande escopo que deseja abarcar em seu olhar para as mazelas perenes do país e de como estrutura seus seres viventes dentro disso. Se personagens como Eduardo (Thomás Aquino), filho de fazendeiro com uma escrava que “nem parece mestiço”, e Rosa (Livia Silva), a aluna promissora que é podada para não ser melhor que todas as colegas brancas, são apenas ilustrativos para mostrar tais pontos – e no caso dele, também acenar a outra problemática –, também as figuras das famílias protagonistas ficam atadas aos seus papéis alegóricos. E o tom declaratório do texto, por vezes, funciona na narrativa, a exemplo do momento em que Iná rebate a visão de raízes e tradições africanas únicas, naquele pensamento generalista e racista da África ser vista como um país em vez do continente cheio de diversidade em suas nações; porém, não soa orgânico em falas como a de menino com a percepção de que a separação da população negra era uma forma de enfraquecê-la.


Os cineastas se saem melhor naquilo que trabalham no subtexto, como no imaginário aludido recorrentemente dos rios que, continuamente, enterrados por canalizações ou poluídos pelo descaso, ao longo desses 120 anos do intervalo da trama, são fantasmas que vagam pela cidade de São Paulo, tais quais os corpos negros violentados e de seus agressores em um história que nunca muda, apesar da paisagem diferente. Da mesma forma, na trilha sonora, com o trabalho de pesquisa de Salloma Salomão sobre música afro-brasileira aplicado na seleção, mas especialmente na maneira como as composições do pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) são usadas. Logo no início, Isabel repreende a filha por tocar uma de suas polcas e Ana rapidamente inicia uma valsa do mesmo autor, para mais tarde, a mãe pedir por uma polca, justificando a origem europeia do gênero musical e apagando toda a brasilidade que o compositor empunha nas suas músicas.


É um fragmento que resume a representação de Todos os Mortos sobre um Brasil que não quer se enxergar como brasileiro. Talvez, por isso, conscientemente ou não, a própria obra não é um retrato da realidade daqueles que mal tem a chance de ir aos teatros Politheama – teatros de variedades comuns em algumas cidades, sendo que o paulistano era localizado na rua São João entre 1892 e 1914 – de ontem e hoje, nem tampouco contar suas histórias nele.

 

Duração: 120 min

Direção: Caetano Gotardo e Marco Dutra

Roteiro: Caetano Gotardo e Marco Dutra

Elenco: Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Agyei Augusto, Rogério Brito, Andrea Marquee, Thomás Aquino, Gilda Nomacce, Teca Pereira, Leonor Silveira e Alaíde Costa (veja + no site)

Produção: Brasil (São Paulo)

Distribuição: Vitrine Filmes

 

Daylin Vega Moreno em cena do filme colombiano La Frontera (2019), de David David | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

La Frontera é o representante colombiano da disputa de filmes latino-americanos desta edição do festival, mas se tem uma coisa que o primeiro longa do diretor e roteirista David David vai contra é justamente às limitações territoriais e de outras espécies. A trama se situa na fronteira entre Colômbia e Venezuela, bem no momento em que ela foi fechada entre os dois países – uma crise política internacional que estourou no início de 2019, mas que ainda não está completamente resolvida. Contudo, o fato de ser protagonizado por uma mulher indígena já rompe simbolicamente essa divisão, ao remeter aos povos originários de uma América sem demarcações imperiais e nacionais, além de apresentar uma realidade pouco vista no cinema.


Diana Ipuana (Daylin Vega Moreno) não mora em uma comunidade, mas tão somente com seu marido (Nelson Camayo) e seu irmão (Yull Núñez), na terra onde cresceu com seus pais. O trio sobrevive assaltando os viajantes, mas em um dos ataques no qual a mulher grávida não estava, seu companheiro é morto e ela, fichada pela polícia e sem apoio do Estado, volta para casa, sem ninguém para apoiá-la – o abandono das figuras masculinas é uma constante para ela, já que seus outros irmãos também saíram de lá para tentar a vida nas grandes cidades. A jovem precisa sobreviver sozinha, se defendendo de investidas torpes e ainda despistar o exército que ronda a região em conflito, quando socorre um bandido ferido, chamado Miguel (Alejandro Aguilar).


Propositadamente, os limites territoriais não são visualizados no cenário, apesar da ostensiva presença militar ao redor de sua casa; somente mencionados, assim como a notícia sobre a política imigratória do governo Trump na TV da mercearia. O jovem cineasta também borra as fronteiras cinematográficas e narrativas: o naturalismo do registro do duro cotidiano de Diana se mescla às sequências oníricas de seus sonhos enigmáticos. Seus dramas são confrontados e aliviados, até certo momento, pela quebra cômica ocorrida pela entrada da falante venezuelana Chalis (Sheila Monterola) na trama, formando um novo e inusitado trio.


Essa adição dá novo ritmo ao filme no encontro de opostos de personalidades dessas mulheres, tal qual de suas atrizes em grande forma, resultando na resiliente força feminina como mensagem final.

 

Duração: 89 min

Direção: David David

Roteiro: David David

Elenco: Daylin Vega Moreno, Sheila Monterola, Nelson Camayo, Alejandro Aguilar e Yull Núñez (veja + no site)

Produção: Colômbia

Distribuição: Garabato Cine (Colômbia)



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