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  • Foto do escritorCauê Petito

MOSTRA SP 2017 | Repescagem do NERVOS

Atualizado: 18 de mai. de 2021

A Repescagem oficial da 41ª Mostra, que ofereceu uma última chance ao público de conferir um pouco mais da programação do evento, está chegando hoje ao seu final, mas o NERVOS não poderia deixar passar certos filmes que foram vistos nesta edição e que acabaram não entrando aqui antes, no meio da maratona da Mostra. Por isso, a Repescagem do NERVOS resgata agora um dos destaques brasileiros deste ano, o novo longa fantástico – em ambos os sentidos – de Juliana Rojas e Marco Dutra, As Boas Maneiras (2017); a outra figura lendária do conto adolescente suíço Blue My Mind (2017), de Lisa Brühlmann; o premiado e disputado – até demais – Loveless (2017), do russo Andrey Zvyagintsev; e o impactante documentário de Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor sobre canibalismo, Caniba (2017).

 

Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em cena do filme nacional As Boas Maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra | Foto: Divulgação (Mostra SP)

A fábula é, por excelência, um tipo de fantasia à prova de ironias. As figuras que o habitam, mesmo que alegóricas, representam um compasso moral claro, com propósito educativo, em uma eterna e simplória batalha do bem contra o mal. O irônico é, no máximo, reservado para seus vilões.


Daí vem a surpresa com este As Boas Maneiras, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Locarno e multipremiado no Festival do Rio, o mais novo trabalho de Juliana Rojas e Marco Dutra, depois da dupla seguir caminho solo após Trabalhar Cansa (2011), que apontou os dois como nomes do cinema de gênero no país. Dutra construiu seus melhores filmes à base da ironia, do provocador, atingindo o ápice no subestimado Quando Eu Era Vivo (2014) e no maravilhoso O Silêncio do Céu (2016). Neste mais novo trabalho, no entanto, vemos uma obra sincera, sem sarcasmo, que não pisca para a audiência, abraçando o fantasioso e o potencial ridículo com honestidade. E é a partir dessa honestidade que seu conto de fadas paulistano ganha vida.


Acompanhamos Clara (Isabél Zuaa), uma humilde enfermeira – nossa gata borralheira – da periferia de São Paulo, que é contratada por Ana (Marjorie Estiano), para ser babá de sua criança que está para nascer. Com uma expressão sempre fechada que parece imposta de forma disciplinar, numa autodefesa que sugere anos de dificuldades e sofrimento, a enfermeira é um contraposto de Ana, agitada, alegre e de sorriso fácil, mesmo que esconda claros ressentimentos e melancolia. Ambas, através das grandes interpretações de suas intérpretes, encontram uma na outra um porto seguro, um ombro amigo, uma amante. Conforme a criança cresce dentro de Ana, no entanto, se desperta na mulher uma fome incomum, a sede por sangue e um sonambulismo que significam mais do que aparentam.


As Boas Maneiras é bem elaborado em toda sua lógica visual. A cidade vista ao horizonte é composta por prédios sobre uma paisagem expressionista e artificial, tornando tudo uma colagem que remete realmente ao fabulesco e ao onírico. O vidro da janela do apartamento de alta classe de Ana evidencia isso, separando aquele mundo chapado da ação que ocorre na tela, contraste que é aparente, também, na favela em que Clara mora.


É interessante que, tal como Blue My Mind e a sua fábula da sereia, As Boas Maneiras alcance o auge de seu potencial artístico quando se entrega de vez à sua própria fantasia, como no parto da criatura. O uso do boneco animatrônico merece aplausos por trazer um cinema oitentista de nicho, abraçando o horror absurdo de forma ousada. A cena, inclusive, é uma das mais atmosféricas do longa, precedendo um momento que promete ser o divisor de água para muitos membros da audiência, que podem abraçar ou renegar a ideia: uma passagem musical, completa com coral e simbolismos visuais que remetem totalmente à contos de fadas da Disney, quando mais se vê a "mão" de Rojas, que já explorou o gênero completamente em seu musical mórbido imobiliário Sinfonia da Necrópole (2014) na direção – embora o filme tenha ainda mais da influência dela ali implícita. O cenário da periferia contrasta com a canção, e a obra alcança o sublime de suas pretensões criativas. É desde já um dos momentos mais poderosos e belos do cinema nacional em 2017.


A segunda metade do filme, ambientada alguns anos no futuro é mais irregular, abandonando pontualmente a fantasia para apostar num núcleo familiar mais realista de periferia, onde uma Clara mudada, mais alegre e estabelecida cuida do garoto/criatura como se fosse seu. A relação entre ela e Joel (Miguel Lobo, um nome sugestivo) se torna o foco. Os elementos fabulescos vêm, aqui, com o shopping que representa um castelo, a vizinha de Clara que serve nesse sentido quase como uma madrasta má e as relações entre o pecado e o correto.


As Boas Maneiras consegue ser, então, uma obra que abraça a fábula sem medo, contando uma história que do ponto criativo é elaborada, misturando o horror de criatura – com efeitos práticos magníficos que se intercalam com efeitos visuais mais capengas que, surpreendentemente, atribuem um certo charme à narrativa de conto de fadas – com o fabulesco na realidade paulistana. O melhor de tudo: é um filme que nunca olha para seus temas com sarcasmo ou maldade, contando uma história de forma sincera e honesta, como se fosse um conto de ninar.

 

Luna Wedler e Zoë Pastelle Holthuizen em cena do filme suíço Blue My Mind (2017), de Lisa Brühlmann | Foto: Divulgação (Mostra SP)

O suíço Blue My Mind, da estreante em longas metragens Lisa Brühlmann, é uma produção curiosa. Mesclando Aos 13 (2003), Cisne Negro (2010) e até mesmo o recente Raw (2017), a obra é um coming of age com elementos de body horror (o horror de transformação corporal), utilizando os elementos deste ultimo subgênero para retratar as mudanças físicas e emocionais de sua protagonista, a jovem de 15 anos Mia (Luna Wedler), que acabou de ter sua primeira menstruação. O problema é que tal mudança, a "passagem de garota para mulher", se manifesta de forma monstruosa, aliada ao desejo incontrolável de comer peixes. Confusa e assustada, a jovem recorre ao álcool, drogas e à necessidade de aceitação de novas amizades, com as garotas populares de sua escola.


Se tais simbolismos acabam sendo óbvios, Brühlmann ao menos os conduz com segurança, explorando as atitudes errôneas da garota de forma jovial, alternando estética videoclíptica com uma mais naturalista do fotógrafo Gabriel Lobos. Tópicos bem conhecidos são explorados por este tipo de filme: o sexo como agente transformador, as drogas alucinógenas como expansão de perspectiva e a pura autodestruição juvenil.


No meio desta crise, o laço. Blue My Mind se eleva quando o relacionamento de Mia e sua nova amiga, a impulsiva Gianna (Zoë Pastelle Holthuizen), entra em foco e é aprofundado, fazendo com que as metáforas, por ora carregadas, fiquem em segundo plano para que essa exploração do amadurecimento feminino possa ser trazida de forma sensível.


Entregando-se à pura fábula em seu final, Blue My Mind alcança seu ápice, transformando o fantástico no usual, ancorando tais temas num mundo que soa real mesmo com o elemento sobrenatural e estranho. A moral da história vem com o crescimento de ambas, com o ato de "deixar ir", ser levada pela onda da vida onde Mia, que passou toda a projeção com expressões de desconforto e confusão, pode esboçar um sorriso e seguir em paz.

 

Matvey Novikov em cena do filme russo Loveless (2017), de Andrey Zvyagintsev | Foto: Divulgação (Mostra SP)

Se em Feio (2017) havia um temor pela vida de uma criança que seria "trazida a um mundo de dificuldades e angústia, habitado por pessoas infelizes", esse receio é concretizado em outro título desta Mostra: Loveless, retrato cruel e doloroso do russo Andrey Zvyagintsev, diretor do indicado ao Oscar Leviatã (2014) – sua nova produção tenta o mesmo caminho –, sobre a falta de conexão, compaixão e humanidade enraizados na sociedade russa, mas ocultos por uma fachada superficial de unificação, promovida por redes sociais e até mesmo conexões empresariais.


Zvyagintsev e seu diretor de fotografia Mikhail Krichman adotam uma abordagem narrativa de contemplação, que se inicia com acordes sistemáticos de piano enquanto registram um rio e os galhos das árvores cobertas pela neve do gélido clima russo. O crescendo das notas que acompanham tais imagens culmina no desconforto e instala a sensação de urgência, prenunciando o pior que está por vir, antes mesmo de que saibamos exatamente o que é ou de onde vem. Após estes créditos iniciais, presenciamos a saída do jovem Alyosha, de 12 anos, de sua escola. O diretor acompanha o percurso do garoto, que não parece ter pressa para voltar para casa. Introspectivo, ele sobe nestes galhos e explora o mundo ao seu redor.


O medo dos males futuros de Feio é refletido aqui já num ponto crítico: nos estados finais do divórcio de Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin), um casal de classe média que claramente despreza um ao outro. Ambos estão ao ponto de estabelecerem uma nova vida. Ele, num relacionamento claramente problemático com uma jovem que engravidou. Ela, com um senhor mais velho e rico. O único empecilho é justamente Alyosha, o filho do casal. Fica claro em uma das discussões entre Zhenya e Boris que nenhum dos dois possui a mínima intenção de ficar com o garoto – e, nesse sentido, o filme é um contraponto temático curioso à Custódia, vencedor do Prêmio da Crítica de melhor filme internacional na Mostra –, empurrando-o um para o outro com desculpas esfarrapadas.


"Você é a mãe, ele precisa de você", diz o pai; "O mandarei para o internato até que ele esteja velho o bastante para ir para o exército", diz a mãe. São declarações cruéis de pessoas que vêem sua prole como um empecilho em suas vidas. E é essencial, então, que comecemos essa história ao lado do jovem Alyosha, já que, a partir de um tempo, passamos a acompanhar o cotidiano de seus pais. Boris luta para conseguir uma posição boa em seu emprego e para que seu chefe, religioso, não note que ele está num processo de divórcio, confortando sua jovem namorada nos estágios finais de sua gravidez no processo. Zhenya dedica-se a seu namorado mais velho, demonstrando uma vivacidade não vista no resto da projeção. É acompanhando Zhenya, inclusive, que se pode ver melhor o que houve de errado. Enquanto Boris é um homem de poucas palavras e trata sua namorada como uma criança, dizendo frases baratas para amenizar a insegurança da pobre garota, mas apenas refletindo a sua própria nestas tentativas, Zhenya se abre totalmente para seu confidente.


Após uma cena de sexo sensual e intensa, a mãe desabafa para seu confidente sobre Alyosha, fruto de uma gravidez indesejada. "Eu nunca o quis. Ele quase me matou. Fiquei quase 24 horas em trabalho de parto. Quando o trouxeram pra mim, eu não conseguia nem olhar para ele. Tudo que eu via no desgraçado era o rosto do pai dele". O desabafo da mãe choca tanto por ser dito em um momento plenamente íntimo, sereno, de forma calma e numa nudez que evidencia a transparência de Zhenya, sem máscaras, que possui entre os motivos de seu ódio pelo próprio filho o simples fato de ele ter nascido de forma complicada. Da mesma forma, é nesta cena que os evidentes paralelos e raízes do problema são traçados, na cena que dá o título ao filme: "Eu nunca amei ninguém. Apenas minha mãe, quando eu era mais nova. Ela era tão má comigo... uma vadia má e solitária". A tragédia dessa declaração, é claro, se dá no fato de que Zhenya é também uma péssima mãe, tratando Alyosha com indiferença e glacialidade, e ressaltando a natureza cíclica da desumanidade. O celular da mãe se torna quase um personagem, visto que ele está presente na maioria das cenas na mão da mulher, que exibe sua felicidade fabricada no Instagram.


Quando os espectadores, e os pais, se dão conta de que Alyosha não está mais presente na narrativa, já é tarde demais, e o garoto simplesmente desapareceu. Não se sabe se ele fugiu ou foi sequestrado, mas, decorrente do que presenciamos até então, não fica muito difícil de imaginar motivos. Ao decorrer do seu filme, seu diretor nos apresenta, de forma descarada, os sinais de uma corrupção que não é só emocional. A polícia de Moscow é burocrática nas tentativas de achar o garoto. As rádios anunciam o clima de apocalipse – o filme é ambientado em 2012 – e incerteza política. A real tragédia de Loveless decorre de sua triste obviedade. Inicialmente apresentado como uma criança introspectiva e revoltada, não demora para que entendamos o porquê da criança ser assim. A real pergunta é: quem não desapareceria num alicerce desses?


Já que Custódia foi mencionado, há, ao final de ambas as produções, um esgotamento similar. No filme francês, tal exaustão era decorrente da tensão construída diante da situação grotesca que presenciávamos. Em Loveless, no entanto, ela vem através do desamparo, da frustração, da cada vez mais sólida sensação de que a busca por Alyosha é em vão. Ao mesmo tempo, é curioso perceber como o desespero de Zhenya parece surgir não por preocupação com seu filho, mas sim por motivos puramente narcisistas que envolvem sua "eficiência" como mãe. Boris sequer menciona para sua namorada o desaparecimento, já que ele ocultou dela o fato de que tinha um filho.


Loveless é um filme poderoso, com imagens fortes e simbólicas, como aquela em que vemos Boris desolado, chorando encostado em uma parede deteriorada que reflete o estado emocional no qual se encontra, seja na relação com Zhenya ou Alyosha, até o plano que talvez seja o mais assustador e marcante da obra: o de Alyosha (Matvey Novikov, sensacional) chorando descontroladamente, enquanto a porta do banheiro se fecha, revelando que ele esteve presente durante uma discussão de seus pais.


A obra termina, ao mesmo tempo, de forma pessimista, elegante e cíclica, revisitando os galhos secos, decorrentes da frieza natural do ambiente no qual foram impostos, que vimos no início. Galhos que representam uma árvore genealógica de frieza tão característica dos estereótipos russos, mas que retratam uma história que poderia ter acontecido em qualquer lugar. É um filme que te esgota, que rouba sua força vital não através da tensão, mas do desamparo. Se Alyosha é encontrado ou não, no final, não importa. Ele é um sintoma, desde sempre um fantasma, um equívoco, e essa constatação vem no meio da projeção, quando nos ocorre de que o garoto nem ao menos chegou a existir.

 

Issei Sagawa em cena do documentário Caniba (2017), de Lucien Castaing Taylor e Verena Paravel | Foto: Divulgação (Mostra SP)

Um close na mão tremula. O olhar desfocado. Tossidos e arrotos. Os focos em pontos específicos de sua fisionomia causam estranheza, como se documentasse menos um homem e mais uma criatura. Entre grunhidos e coceiras, um monstro. E, no consenso geral, é mesmo e essa criatura atende pelo nome de Issei Sagawa, um japonês que, em 1981, assassinou e devorou uma mulher chamada Renée Hartevelt. Os motivos: um desejo sexual que deu lugar à obsessão, que veio com a necessidade animalesca de devorá-la. Issei foi julgado e considerado insano perante a lei, sendo por esse motivo solto eventualmente. Sem conseguir empregos devido ao terrível ato que cometeu, ele ganha a vida justamente em cima do ato que cometeu, participando de documentários, programas de TV, filmes e até escrevendo livros e mangás sobre o crime. Para o que muitos seria uma revoltante recompensa, para Sagawa é uma condenação eterna. Isso não é, no entanto, uma tentativa de humanizar ou exigir simpatia para este assassino, e nem Caniba, o documentário vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza.


"Não posso explicar, é apenas minha fantasia". "Eu quero ser comido por Renée. Eu sei que isso soa louco". "Eu queria ter sido obediente". São esses tipos de frase que permeiam toda a projeção, na qual repulsa, ódio e pena se confundem. As declarações de Sagawa acabam elevando Caniba à mais que um relato de um caso específico e macabro. É a luta do homem contra seus desejos mais primais. A aversão de Issei pelos atos que cometeu é clara, assim como sua incontrolável e repulsiva fome.


A abordagem adotada pelos documentaristas e ativistas Lucien Castaing Taylor e Verena Paravel é curiosa: transformando a própria pele de Sagawa em algo repulsivo já em seu início, com zooms desconfortáveis, o diretor e a diretora optam por jamais situar o espectador geograficamente, adotando os zooms extremos e desfoque ao fundo durante toda a projeção, intercalando com imagens das produções adultas na qual o japonês participou após seu crime, com imagens de seu também problemático irmão e seus atos de automutilação.


O aspecto gráfico chama atenção em Caniba. O número de pessoas que saíram antes do fim da projeção era grande. Devo admitir que senti um misto de dó e graça do casal ao meu lado, que entrou com comida na mão e quase não tocou nela. Estamos falando de uma produção que possui um homem enrolando arame farpado em seu braço. "Não está divertido ainda", ele diz antes de pegar algumas facas. Sagawa se masturba enquanto uma garota de programa urina em sua face, após uma cena de sexo de um de seus filmes. Em certo momento, nas imagens gráficas do mangá, escrito pelo próprio personagem do documentário, em que ele mutila, devora e faz sexo com o cadáver da garota, ele diz que o cheiro da vagina dela era melhor que em sua fantasia.


Imagens que dificilmente sairão da cabeça daqueles que presenciarem Caniba. O documentário não procura entender menos os motivos do crime ou traçar um perfil psicológico mais objetivo e já explorado deste psicopata. Mantendo seu foco nas conversas entre os irmãos, que mencionam gostar, ironicamente, de Disney, o que vemos então é o cotidiano desfocado, mas íntimo de um monstro e a sua relação fraterna. Nesses relatos, tão próximos de nós, é quase encontrada a humanidade. É este o caminho que Caniba parece estar sempre tentado a cruzar, a do aproximamento que é impedido pelos atos monstruosos de seu protagonista, que são esfregados de forma íntima e artística na face da audiência.



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