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OLHAR 2025 | Entre memórias familiares e de um país

  • Foto do escritor: Nayara Reynaud
    Nayara Reynaud
  • 7 de ago.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 7 de ago.

A memória foi o grande guia do recorte selecionado pela curadoria neste 14º Olhar de Cinema, sendo tema, questão ou ferramenta recorrente na construção narrativa de diversos títulos desta edição – alguns deles já abordados em outros textos aqui no NERVOS e também no site da Abraccine. Dentre os longas da Competitiva Nacional, há de se destacar três filmes que são, por essência, memorialísticos: o resgate da história familiar, em vários sentidos, de João Vieira Torres na sua estreia no formato com Aurora (2025); uma reimaginação do passado e do futuro do país a partir de momentos históricos pouco lembrados nacionalmente na primeira animação de Letícia Simões, Glória & Liberdade (2025); e as contradições da memória e dos mitos fundadores brasileiros em Paraíso (2024), novo trabalho da documentarista Ana Rieper. Leia um pouco mais sobre estas obras nos comentários a seguir:

Aurora (2025)


João Vieira Torres e a prima em cena do seu filme Aurora (2025). Na imagem, um homem e uma mulher estão sentados em cadeiras de balanço de palha à frente de uma árvore de troncos e galhos laterais e copa baixa, mas bem horizontalizada. Sentado de lado para a câmera, o homem negro com cabelos cacheados veste uma camiseta preta, calça marrom e tênis preto, além de segurar uma caneca branca na mão direita. De frente para a câmera, está sentada a mulher parda, cabelos pretos longos e lisos, bermuda, chinelo de tira rosa e também segura uma caneca branca na mão esquerda. Ao lado esquerdo dela, há uma grande caixa d'água azul.
João Vieira Torres e a prima em cena do seu filme Aurora

Talvez, nenhum outro filme da mostra competitiva sintetize mais a produção cinematográfica contemporânea no Brasil e no mundo do que Aurora. O retrato autocentrado a partir das experiências pessoais e familiares de João Vieira Torres, multiartista brasileiro radicado na França, é narrado em primeira pessoa e entregue na bela embalagem de excelência técnica e discurso narrativo que agrada curadorias e plateias de festivais internacionais. Se muitas dessas escolhas têm se tornado clichês nas produções atuais, o cineasta usa essas ferramentas para fazer da sua jornada íntima em busca de suas raízes algo que ecoa amplamente a quem do público encontra tantas familiaridades em questões ancestrais ou problemas endêmicos no país e, a partir deste caráter genuíno, acaba trazendo certo frescor a esses recursos tão repetidos que soam enfadonhos em alguns casos.


Nascido em Recife e tendo, como reflexo de uma família migrante, morado também na Bahia, Nova York e se estabelecido em Paris, Torres narra o seu retorno ao sertão baiano onde sua avó paterna que dá nome ao filme construiu a sua família e ajudou a dar vida a tantas outras. Parteira de mão cheia, a falecida Aurora também tinha o dom herdado da mãe, vulgarmente chamada de “índia”, de conhecer bem as plantas e saber como usá-las contra todo o mal do corpo, como tentam recordar seu filho e neto em uma bela passagem do primeiro longa do diretor dos curtas A Dupla Coincidência dos Desejos (2013) e Mal di Mare (2021), este último premiado no Olhar 2022. Mas é justamente a partir daí que a personagem-título se complexifica e, por consequência, a obra em si.


A mesma pessoa capaz de trazer tantas crianças à vida foi também uma mãe muito dura, especialmente para as suas filhas. Essa maternidade marcada por um machismo arraigado serve de ponto de partida para João investigar um passado de violência contra as mulheres da sua família e a luta destas para se libertar deste jugo, em que todas as histórias escondidas ou mal contadas dentro do seu clã espelham tantas outras ao redor do país e cujas marcas passadas ainda reverberam no presente. Por isso, neste jogo de intimidade e universalidade, Aurora vem para o(a) espectador(a) – aberto(a) a isso, é claro – como um franco encontro com a nossa própria ancestralidade, que tanto nos guia em sua sabedoria quanto nos castra em espécies de carmas familiares, para nos convidar a subverter ciclos geracionais de dor.

Aurora (2025)

Duração: 130 min | Classificação: 14 anos

Direção: João Vieira Torres

Roteiro: Marcelo Caetano, João Vieira Torres e Deborah Viegas (veja + no site)

Produção: Brasil, Portugal e França


A personagem Azul em cena da animação brasileira Glória & Liberdade (2025), de Letícia Simões. Na imagem desenhada, a personagem negra de cabelos azuis, blusa branca e calça escura parece flutuar, ao mesmo tempo que também pode parecer que está caindo sobre uma cidade toda em tons de lilás. Uma fumaça rosa rodeia a cena e um barco navega um curso deixado por ela.
A personagem Azul em cena da animação brasileira Glória & Liberdade, de Letícia Simões

Segundo longa de Letícia Simões lançado nos festivais nacionais neste ano – em janeiro, A Vida Secreta de Meus Três Homens (2025) estreou na 28ª Mostra Tiradentes –, Glória & Liberdade, na realidade, é mais um dos projetos que levaram 10 anos para serem concluídos que estavam nesta edição do Olhar de Cinema. Fruto do desejo da cineasta e do produtor Maurício Macêdo de fazer um trabalho que pudesse ser exibido nas escolas do país, muito em razão da então entrada em vigor da Lei nº 13.006/2014 que obriga a exibição de filmes nacionais dentro do currículo da Educação Básica, o projeto sofreu todas as intempéries do contexto sociopolítico brasileiro na última década. Chegando ao festival curitibano ainda longe do seu público-alvo infanto-juvenil, a produção cearense da diretora baiana, radicada antes em Recife, veio alinhada com o debate sobre memórias da competição nacional de longas e de toda a seleção, ao relembrar e redesenhar o passado e o futuro do Brasil.


Nesta proposta retrofuturista, o ano é 2031 e a protagonista Azul (voz de Larissa Góes) viaja pelos países que um dia integraram o Brasil, mas se separam dois séculos atrás com as Revoltas Regenciais ocorridas, de fato, no período em que D. Pedro I retornou a Portugal e o Império Brasileiro teve regentes até a maioridade do sucessor D. Pedro II. Da Cabanagem, surge um reino ecossustentável de povos indígenas amazônicos com sua capital em Belém. Da Balaiada, vem um país que une o antigo Maranhão e o Ceará e guarda todas as suas tradições, mas que sofre com bloqueios e sanções econômicas internacionais. Da Revolução Praieira, nasce uma tecnológica nação em Pernambuco, que faz uso das mesmas armas que lhe trazem progresso para impedir a insurreição das populações de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, as quais subjugou em sua autocracia. E da Sabinada, origina-se a República da Bahia, da qual vem a personagem documentarista que guia o público e cuja família se alterna no poder, sem garantir a segurança dos cidadãos locais que agora se rebelam.


A narrativa carrega um didatismo, compreensível pelo seu caráter educativo prioritário e também pelo desconhecimento de grande parte da população brasileira sobre estas e outras revoltas populares que tenham acontecido além do seu próprio estado, embora se revele exacerbado na repetição do mesmo conteúdo em textos ao final. No entanto, tanto ela quanto a animação, coordenada por Esaú Pereira e que apresenta diferentes aspectos para cada um dos países visitados, vai ganhando contornos mais interessantes conforme a progressão dos segmentos. Se o primeiro apresenta problemas técnicos na sincronização labial bem rudimentar dos personagens, questão que é driblada e melhor trabalhada nos capítulos seguintes, além de uma utopia amazônica mais planificada, o segundo já traz um vislumbre de problematização para a simpática e colorida representação maranhense-cearense imaginada. Mas são nos dois quartos finais que o filme adentra em questões sociais e políticas do presente que dão um tempero para este jogo especulativo entre passado e futuro, seja na cyberpunk Recife que acentua um discurso impositivo que vai além do já conhecido e folclórico bairrismo pernambucano ou na Salvador que perde suas tão famosas cores frente à violência urbana e do Estado.


É neste caminhar que foge da "linha reta", no qual Simões evita as respostas fáceis que viriam de uma emancipação do Norte e Nordeste que transformariam as regiões em paraísos na Terra ou de uma reunião salvadora desses países com o antigo/atual Brasil, que Glória & Liberdade também educa a plateia a partir da reflexão, para sair de um filme com menos explicações prontas e mais perguntas a si mesmo(s). No caso, sobre esta nação ao qual pertencemos e contribuímos na sua contínua construção, muitas vezes, sem conhecê-la em toda a sua pluralidade e história – ou em casos mais extremos, fazendo questão de apagá-las.

Duração: 73 min | Classificação: 14 anos

Direção: Letícia Simões

Roteiro: Letícia Simões e Pablo Nóbrega

Elenco: Larissa Góes, Iara Campos, Oldair Soares Ammom, Yumo Apurinã, Armando Praça, Mateus Honori, Matheus Franklin, Rafael Melo, Ana Vitória Almeida, Juliana Maia, Jaene Mariá, Vinicius Augusto Bozzo, Nilvaldo Nascimento, Alcântara Costa, Vitor Sampaio, Monique Cardoso, Edglê Lima e Robério Diógenes (veja + no site)

Produção: Brasil

Paraíso (2024)


Uma casa grande abandonada em cena do documentário brasileiro Paraíso (2024), de Ana Rieper. Na imagem, a habitação tem as paredes brancas internas pichadas, janelas e portas caídas e somente a estrutura do telhado sem telhas.
Uma casa grande abandonada em cena do documentário brasileiro Paraíso, de Ana Rieper

A imagem que se constrói sobre um país é muito baseada em quem detém o discurso sobre as memórias desta nação. Paraíso, o novo longa da cineasta carioca Ana Rieper, de Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina (2023) e outros trabalhos documentários musicais, tenta desconstruir o(s) mito(s) fundadores do Brasil paradisíaco, relembrando as memórias de violência do povo que forma esta república, com um foco maior nas populações majoritariamente marginalizadas, mesmo em maioria demográfica: indígenas, negras e femininas. Para tanto, a diretora e o montador Pedro Bronz se fazem valer de uma edição videoclíptica irônica que opõe esse contraste da imagem nacional vendida internamente e a todo o mundo com a realidade de opressão a estes corpos que se acumulam em livros de história e telejornais, mas que passivamente são toleradas por muitos.


Rieper registra a luta de alguns personagens que representam estes grupos marginalizados e também de alguns de seus algozes, mas o tom das entrevistas junto ao slow motions destas figuras parece mais uma reportagem especial de revista eletrônica dominical da TV aberta do que, por exemplo, o seu mosaico polifônico de depoimentos genuínos obtidos em seu mais famoso filme, Vou Rifar Meu Coração (2012). Não que a abordagem da realizadora precisasse ser a mesma, mas estes fatores somados a uma reiteração das imagens de violência que geram um efeito contrário à crítica desejada por ela, colocam Paraíso em um pedestal de condescendência insípida. Mesmo que aparentemente incisivo, o discurso do documentário é tão abrangente e superficial que apenas traz um problema já constatado ou, por vezes, vivenciado na pele do próprio público sem qualquer reflexão, infelizmente, causando a mesma consequência do noticiário: uma avalanche de informações que anestesia e, por fim, somente banaliza os abusos e o ódio denunciados.

Paraíso (2024)

Duração: 76 min | Classificação: 14 anos

Direção: Ana Rieper

Roteiro: Ana Rieper

Elenco: Elisa Lucinda (veja + no site)

Produção: Brasil


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