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Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Um casamento e incontáveis funerais

Atualizado: 27 de out. de 2020


Naian González Norvind

O cinema de 2019 foi marcado por filmes que levam a luta de classes e suas variáveis raciais para situações extremas, como o sul-coreano vencedor do Oscar Parasita (2019), o francês Os Miseráveis (2019) e o brasileiro Bacurau (2019). E se 2020 não diminuiu, ao contrário, só aumentou o clima de instabilidade política e social em todo o globo, Nova Ordem (2020) é o exemplar mexicano desta onda para este ano. Contudo, sendo uma obra do sempre contestador e contestado Michel Franco, é uma espécie mais violenta e niilista sobre a questão.


Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Veneza e integrante da seleção do Festival de Toronto, o longa abre esta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo alterando o ponto de vista que os citados títulos usaram para abordar essa problemática que não é de hoje. Trocando as letras dos créditos, a fragmentada sequência inicial apresenta um cenário de caos e a simbólica tinta verde que, depois, será contextualizada, para mostrar vários feridos chegando ao hospital e corpos amontoados no chão. Após este prólogo, tão abstrato quanto a pintura que inspirou a produção cinematográfica, Solo Los Muertos Han Visto El Final de la Guerra (2019), do mexicano Omar Rodriguez-Graham, a agitação vem só da ansiedade dos noivos Marianne (Naian González Norvind) e Alan (Dario Yazbek Bernal), prestes a se casarem em uma cerimônia na casa da família dela.


Com o olhar centrado no evento social, igual ao dos personagens desse ambiente, o filme apresenta o casamento como um evento corriqueiramente luxuoso, mas são os pequenos detalhes que passam a transmitir a impressão de que se trata quase de um Baile da Ilha Fiscal. A alta sociedade mexicana reunida no local misturam presentes nupciais e propinas, enquanto a questão racial se torna nítida na divisão social entre os empregados, de origem indígena nativa, e os patrões e seus convidados, brancos de origem hispânica. E surgem então os indícios de que uma grande manifestação popular está acontecendo ao redor e, provavelmente, se aproximando, como na mencionada tinta verde, cor presente na bandeira nacional do país e que, originalmente, simbolizava a independência do México e hoje carrega mais o significado de esperança.


Em meio a isso, um antigo funcionário da família, Rolando (Eligio Meléndez), bate à porta pedindo a ajuda deles para pagar o custoso tratamento de saúde de sua esposa, que também trabalhou com eles. Marianne é a única que dá atenção ao caso e, acaba escapando do coquetel com outro empregado, Cristian (Fernando Cuautle), para tentar auxiliá-lo, mas o caos já está instaurado nas ruas e acaba invadindo também a festa. Assim, o que seria o clímax dos referidos longas de Bong Joon-Ho, Ladj Ly, Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, surge como uma surpreende virada para uma segunda parte, não menos violenta, na qual Franco vislumbra ceticamente as consequências da insurreição da população, com efeitos trágicos para ambos os lados, como se observa na nova rotina da moça e desses trabalhadores, incluindo a mãe do jovem, Marta (Mónica del Carmen).


As imagens com efeitos computadorizados de uma Cidade do México sitiada, no entanto, não estão longe da história mexicana, que já presenciou sangrentas repressões a manifestações estudantis, como nos massacres de Tlatelolco, em 1968, e de Corpus Christi, em 1971 – este, encenado em uma cena memorável da produção compatriota Roma (2018), de Alfonso Cuarón –, ocorridos na capital do país, ou no recente em Iguala, no ano de 2014, sem contar o massacre asteca durante a sua colonização. E o cenário distópico que se segue também não está distante da realidade do resto da América Latina ou das tensões a nível mundial da atualidade. Por isso, o olhar cínico do cineasta sobre como uma revolução pode fugir do controle, trocando-se apenas alguns atores, mas para a manutenção do mesmo status quo e contínua submissão das massas, se mostra muito pertinente, porém, equivocado por escolhas artísticas que provocam ruídos na mensagem.


O realizador de Chronic (2015) e Depois de Lúcia (2012) apresenta uma direção mais dinâmica que em seus trabalhos anteriores por conta do conteúdo da história, mas segue com o prazer já demonstrado pela violência, seja ela física, explícita, irrestrita e amoral ou no puro choque narrativo que deseja causar no público. Soma-se a isso um roteiro de arquétipos, sem desenvolvimento dos personagens, que faz com que determinadas atitudes venham sem contexto, dependendo do entendimento do espectador para compreender, mas que podem ser facilmente mal interpretadas. Se a obra soa mais como uma crítica aos levantes populares ou um alerta para a apropriação delas por forças com outros interesses vai depender muito de cada um, entretanto o resultado final é igual em ambos os casos: o verde se esvai da bandeira mexicana, bem como as suas duas acepções de significado somem do horizonte da população.

 

Nova Ordem (Nuevo Orden, 2020)

Duração: 88 min | Classificação: 18 anos

Direção: Michel Franco

Roteiro: Michel Franco

Elenco: Naian González Norvind, Diego Boneta, Mónica del Carmen, Fernando Cuautle, Eligio Meléndez e Darío Yazbek (veja + no site)

Produção: México e França

> Disponível no Mostra Play, por 24 horas, da 0h01 às 23h59 do dia 23/10/2020 (sexta), com limite de até 1.000 visualizações



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