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  • Foto do escritorNayara Reynaud

OS MISERÁVEIS | A incompleta Revolução Francesa

Atualizado: 3 de ago. de 2021


Issa Perica e elenco em cena do filme Os Miseráveis (Les Misérables, 2019), de Ladj Ly | Foto: Divulgação (Diamond Films)

As bandeiras nas ruas e o hino La Marseillaise entoado em coro pela população. É assim que começa Os Miseráveis (2019), mas isso não é sinal de um patriotismo cego da premiada produção francesa indicada ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Esse orgulho francês exalado durante as comemorações pela vitória da seleção nacional de futebol na Copa do Mundo de 2018, que ocupam o prólogo do primeiro longa de Ladj Ly, vem justamente do grupo mais atacado por um pensamento nacionalista excludente vigente na França e em outros países: os imigrantes e seus descendentes.

A escolha não é a toa, bem como o título, até porque o jovem cineasta franco-malinense estende as discussões de seu curta-metragem Les Misérables (2017), voltando a um dos cenários do clássico homônimo do escritor Victor Hugo: Montfermeil, uma comuna localizada nos subúrbios de Paris. Não se trata de uma adaptação de Os Miseráveis (1862) e, sim, uma relação de contemporaneidade que a obra estabelece com o livro que retratava a realidade da nação após a Revolução Francesa, ao demonstrar uma repetição ou permanência dessa miséria na atualidade. Mesmo com as mudanças na região, hoje habitada prioritariamente por famílias de imigrantes de vários países africanos antes colonizados pela França, o lugar em si e sua população continuam relegados à margem da sociedade.

O espectador é apresentado ao local junto com Stéphane Ruiz (Damien Bonnard), policial recém-chegado do interior para integrar a Brigada Anti-Crime de Montfermeil. Narrativamente, o novato serve como os olhos do público, enquanto seus colegas de equipe, o esquentado Chris (Alexis Manenti, que também roteiriza o filme junto de Ly e Giordano Gederlini) e Gwada (Djibril Zonga), lhe explicam as intrincadas dinâmicas daquele subúrbio, que se encontra mais “pacificado” que outrora, e a relação, por vezes questionável, que a força policial estabelece com elas. Assim, surgem tanto as figuras de poder dali, a exemplo do “Prefeito” (Steve Tientcheu) e o antigo criminoso convertido ao Islã, como tantos outros ali, Salah (Almamy Kanouté), quanto os jovens em busca de lazer, assim como o ladrão de galinhas Issa (Issa Perica) e Buzz (Al-Hassan Ly) com seu drone.

Com quase toda a trama concentrada no primeiro dia de Ruiz no novo trabalho, esses e outros personagens vão ganhando importância gradualmente na história, a partir do momento em que ações tolas geram reações de proporções maiores e a ronda policial se torna cada vez mais estressante. Essa escalada da tensão do roteiro é acompanhada pela direção dinâmica de Ladj Ly, que traz tanto o realismo social do drama inerente quanto alimenta a adrenalina do thriller com sua câmera colada, especialmente, nos agentes policiais. Além disso, o cineasta integra o drone não apenas na sua estética, mas o transforma em um importante instrumento narrativo.

O tema não é inédito no cinema, mas carrega ares de novidade dentro da cinematografia francesa, particularmente pela mudança de ótica, transferindo o eixo do olhar sempre externo para as periferias para a representação vinda de alguém que, de fato, vivencia esta rotina. Isso significa que o filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, dividido com o brasileiro Bacurau (2019), traz nuances a esses retratos suburbanos, em especial para o tema em voga da abordagem policial. Os agentes de segurança aqui são tratados como frutos do mesmo ambiente, por vezes imbuídos do espírito caubói de justiceiros ou da covardia do corporativismo, não sendo simploriamente vilanizados.

Em uma conversa, Chris e Ruiz revelam conhecerem o clássico literário, mas não terem lido. É fácil apontar o dedo e dizer que este desconhecimento os leva à falta de compreensão do lugar onde trabalham, porém, eles são reflexo de uma sociedade que, mesmo lendo, não aprendeu a mensagem da obra de Victor Hugo. Por isso, o mito da união que o futebol trouxe no país, com uma seleção formada majoritariamente por descendentes de imigrantes, é confrontado pelo cotidiano de marginalização desse grupo ao longo da narrativa.

Assim, a juventude que comemora o campeonato e brada a sua identidade legitimamente francesa no início é a mesma que ressurge a revolta popular nunca arrefecida naquela nação, no epílogo que complementa o sentimento geral de insatisfação que marcou os filmes da última edição de Cannes. Simbolicamente sem rostos, esses jovens desejam se libertar não só dos olhos e das mãos pesadas de um Estado, ao mesmo tempo, repressor e ausente, mas também das forças de poder local que perpetuam uma situação de subdesenvolvimento por gerações. Deixando mais um dilema do que uma resposta em seu final, Os Miseráveis de 2019 sintetiza, episodicamente, a Nova França que a Velha não enxergar tanto quanto os rotineiros problemas de outras periferias pelo mundo.

 

Os Miseráveis (Les Misérables, 2019)

Duração: 104 min | Classificação: 14 anos

Direção: Ladj Ly

Roteiro: Ladj Ly, Giordano Gederlini e Alexis Manenti

Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga, Issa Perica, Al-Hassan Ly, Steve Tientcheu, Almamy Kanouté, Nizar Ben Fatma, Raymond Lopez, Luciano Lopez, Jaihson Lopez, Jeanne Balibar, Sana Joachaim e Lucas Omiri (veja + no IMDb)

Distribuição: Diamond Films

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