INVENCÍVEL | Reconstrução do mito do super-herói
Atualizado: 1 de mai. de 2021
Demorou algumas décadas para que os super-heróis fossem desconstruídos nos quadrinhos, com obras como O Cavaleiro das Trevas (1986) de Frank Miller e Watchmen (1986-87) de Alan Moore servindo, em meados dos anos 80, como precursoras para óticas que desafiavam os mundos de arquétipos pautados numa moralidade considerada muito juvenil e idealista. Elas pavimentaram o caminho para materiais como o Homem-Animal (1988-1990), Brat Pack (1990-91) e os famosos The Boys (2006-12) e Kick-Ass (2008-14). "O que aconteceria se super-heróis existissem no mundo real?"; "se fossem centro de intrincadas conspirações políticas?"; "se soubessem que não são reais?"; "se fossem otários?".
Como o tempo em Hollywood corre diferente, na década que marcou a Era de Ouro dos filmes de super-heróis nos cinemas, junto com Vingadores – produto da Marvel que por muito tempo foi o carro-chefe deste filão –, temos várias séries e longas que combatem o que enxergam como pueril nos blockbusters diversificando o olhar para estas figuras. São maneiras cada vez mais satíricas, desconstrucionistas e críticas, sendo o exemplo atual mais famoso a ótima The Boys (2019-), série da Amazon, adaptada da citada HQ de Garth Ennis, um material de origem que critica as convenções do gênero de forma juvenil e mal-intencionada. Também chegará O Legado de Júpiter (2021), vindoura produção seriada da Netflix a partir da obra homônima de 2013 escrita por Mark Millar, outra história satírica do autor de Kick-Ass e Nemesis (2010), conhecido justamente pelo cinismo com que olha para o mundo desses heróis.
Olhando superficialmente para Invencível (Invincible, 2021-), nova série adulta animada original da Amazon, que se aventura neste formato baseando-se na HQ criada e escrita por Robert Kirkman – responsável por outra história em quadrinhos que migrou para a telinha, no outrora fenômeno The Walking Dead (2010-) –, pode-se facilmente confundi-la com alguma das licenças citadas acima, que, em breve, irão saturar o mercado enquanto o público clama pela volta da inocência raimiana.
Por que não ambos? A cada um dos oito episódios de Invencível, o título colorido, de logotipo triunfante, é aos poucos manchado de sangue, prenunciando – e se adequando – a trama que se desenrola para caminhos e consequências cada vez mais tangíveis e humanas... mas também sangrentas de fato. Porque, se em séries como The Boys, que abusam da violência, por vezes, estilizada para provar um ponto maior ou tirarem qualquer dignidade que estes ideais poderiam ou deveriam possuir justamente pelo abuso gráfico imposto sobre os mesmos, eventualmente, tal qual um torture porn, esse sangue e violência explícita se torna menos um elemento narrativo com potencial transformador e mais uma preferência estilística. A violência perde o peso porque está em todo o lugar, para aqueles dentro da tela, mas também escancarada para nós.
Entretanto, quando esse sangue todo dá as caras ao final do primeiro episódio de Invencível, o que temos é um efeito chicote de expectativas. Até o chocante momento final do episódio, o que se vê é um universo clássico do gênero: vilões cartunescos com planos frustrados, seus equivalentes heroicos, coloridos, acrônicos como os arquétipos que são, numa sociedade acostumada com os confrontos entre estas figuras. Dentro desse universo, o adolescente Mark Grayson (voz original de Steven Yeun), filho do super-herói mais poderoso da terra, Omni Man (J.K. Simmons). Com o surgimento dos poderes de Mark ao melhor estilo coming of age, ele deve aprender a lidar com esse "dom" e a responsabilidade que vem junto do peso do legado de seu pai.
Numa conversa com Frank Miller, o autor Robert Kirkman conversou sobre suas influências e inspiração para suas histórias. O quadrinista diz que a maioria delas surge de conceitos como "o que aconteceria se o Superman ou Batman fizesse tal coisa?". Como ele não possuía os direitos para contar tais histórias com estes personagens clássicos, ele simplesmente criava novos, inspirados nos pré-existentes, mas a partir de histórias originais, sem as imposições de amarras criativas das editoras grandes. Então, assim como em The Boys, a nova produção possui o seu equivalente para cada herói Marvel e DC.
A diferença é que o criador de Invencível não pretende ridicularizar e despir estes personagens. Não existem aqui comentários sobre a banalidade das ações dos heróis, não existe a piscadela metalinguística da consciência de que é tudo ridículo. Se a metalinguagem é um dos males do cinema irônico e metalinguístico dos anos 2010 na cultura pop, que sacia a sede dos espertinhos numa masturbação vazia, Kirkman carrega um comprometimento narrativo à sua história, a este universo e aos personagens que o habitam com uma honestidade muito louvável.
Honestidade essa que não deve ser confundida com inocência. Nesse sentido, a obra se revela mais como uma reconstrução do super-herói – junta-se à HQs como a igualmente "bem intencionada" Astro City (1995-), de Kurt Busiek e Brent Anderson – do que um deboche. Todos os tropos e convenções estão presentes: os vilões sempre voltam com os planos falhos e discursos verborrágicos, os super-heróis insistem nos discursos e frases de efeito, e isso se estende espertamente para cada episódio, que possui o "problema da semana", geralmente um arquétipo do universo dos quadrinhos, intercalado com os dilemas nada super-heroicos e puramente humanos de Mark e das pessoas que habitam esse mundo.
O que Kirkman e o showrunner Simon Racioppa fazem aqui não é ridicularizar as convenções para depois contar uma história "do mundo real, com consequências reais"; é abraçar o ridículo e adicionar camadas dessas consequências muito reais, que sentem-se reais justamente por não haver ironias. É ouvir Broken Boy do Cage The Elephant e não enxergar sarcasmo porque, enquanto o personagem-título voa pela cidade ao som da música, temos minutos prévios de comprometimento ao seu desenvolvimento como personagem. Tais momentos soam verdadeiros, como a construção do rico universo e mitologia vistos aqui, o que torna a série muito atraente. O elenco de vozes estrelado composto por nomes como Steven Yeun, J.K. Simmons, Sandra Oh, Zachary Quinto, Mahershala Ali e Seth Rogen ajuda nessa construção de personagens, atribuindo personalidade e presença.
Se muitas das desconstruções das obras citadas neste texto presta suas ironias ao contraponto da noção de que super-heróis são os deuses modernos, a exemplo de Zack Snyder e a condição de "primeiro figuras divinas, depois seres humanos", chegamos ao fim de uma temporada que culmina numa história típica de tragédia grega, de pais contra filhos, do peso e legado do poder, o medo da mudança desse status quo que vem com o moderno e a responsabilidade individual corrompida pelo dever do destino que só os deuses olhando para os mortais abaixo possuem.
Quando chega-se ao oitavo episódio, o título após o prólogo aparece banhado de sangue. Essa ainda é uma obra de Robert Kirkman, que sempre pesou a mão no seu The Walking Dead (2003-19) com o mote de que "ninguém está a salvo, todos podem morrer", com resultados irregulares em seus anticlímaxes forçados. Mas em Invencível o que se tem é o equilíbrio desse mote. A violência nunca é bonita e se ficamos receosos até pelo destino de figurantes humanos, é por sabermos o peso que essas mortes carregam não só na jornada de Mark, mas como indivíduos. Os derradeiros episódios finais se rendem ao embate de intriga familiar grego, mas dentro desse confronto temos o âmago humano de todos os lados, o que torna a série o equilíbrio perfeito entre revisionismo de convenções e coração, numa história sem cinismos, comprometida totalmente com a honestidade de si mesma. É esse coração que torna o choque da violência tão eficaz.
Invencível (Invincible, 2021)
Série ficcional animada | 1ª temporada: 8 episódios, de 26 de março a 30 de abril de 2021
Plataforma: Amazon Prime Video (streaming)
Criação: Robert Kirkman, Ryan Ottley e Cory Walker, baseada na HQ "Invencível", de Robert Kirkman | Roteiro: Robert Kirkman, Ryan Ottley, Simon Racioppa, Chris Black, Curtis Gwinn, Christine Lavaf e Ryan Ridley
Direção: Jeff Allen e Robert Valley
Elenco: Steven Yeun, J.K. Simmons, Sandra Oh, Grey Griffin, Kevin Michael Richardson, Walton Goggins, Gillian Jacobs, Andrew Rannells, William Clockwell, Chris Diamantopoulos, Zachary Quinto, Jason Mantzoukas, Mark Hamill, Mahershala Ali, Jon Hamm e Seth Rogen (veja + no IMDb)
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