BRIGHTBURN – FILHO DAS TREVAS | A queda do Olimpo
Atualizado: 26 de fev. de 2021
Na mitologia grega, aquela que permanece sendo a mais difundida no mundo ocidental, deuses e semideuses, por vezes, eram capazes das maiores atrocidades para satisfazer seus desejos e punir seus desafetos. Tal desvirtuamento, porém, não é permitido às figuras mais próximas disso nas narrativas contemporâneas, justamente os super-heróis, que saíram das páginas dos quadrinhos e invadem cada vez mais as telas do cinema e da TV como representantes do Bem contra o Mal. Por isso, à primeira vista, a premissa do filme Brightburn – Filho das Trevas (2019) parece tão interessante ao apresentar uma perspectiva diferente para esses mitos modernos: imaginar o que alguém com grandes poderes faria se não tivesse grandes responsabilidades, ou melhor, nenhum compromisso com a humanidade.
Para tanto, une-se o gênero mais popular na cultura pop de hoje com o terror. Uma junção que não é inédita, mas que se torna instigante por questionar o culto atual a esses seres intocáveis no Olimpo hollywoodiano. Mais do que desconstruir o arquétipo do (super-)herói, o longa de David Yarovesky faz isso com o exemplo mais emblemático da pretensa retidão desses personagens, o Super-Homem, ao inverter a índole deste alienígena e reimaginar o seu universo a partir disso.
O horror não é novidade para o produtor James Gunn, que começou sua carreira de roteirista em filmes B do tipo e no remake Madrugada dos Mortos (2004), bem como o mundo heroico, já abordado por ele como diretor em Super (2010), ainda antes dos dois famosos Guardiões da Galáxia (2014 e 2017). Na realidade, era o cineasta que dirigiria este roteiro, escrito por seu irmão Brian Gunn e seu primo Mark Gunn, roteiristas de Viagem 2: A Ilha Misteriosa (2012) e As Apimentadas: Mandando Ver (2004). Entretanto, com as polêmicas sobre seus tweets contendo piadas pedófilas, que provocaram, no ínterim de um ano, mais ou menos, a sua demissão de Guardiões da Galáxia Vol. 3 (2020), sua ida à concorrência para fazer Esquadrão Suicida 2 (2021) na Warner / DC e depois a recontratação pela Disney para concluir a trilogia espacial que pavimentou no Universo Cinematográfico da Marvel, a direção do projeto foi delegada para o amigo David Yarovesky, que já havia realizado o terror A Colmeia (2014), enquanto James permaneceu apenas na produção.
Confusões à parte, o time criativo claramente se apropria da mitologia do Superman, alterando os nomes e colocando algumas situações, cenários e símbolos da história dele em outra circunstância, além de emular os planos e a trilha sonora de O Homem de Aço (2013), de Zack Snyder, em alguns momentos, com a fotografia de Michael Dallatorre e a música de Tim Williams. Tal qual o Kal-El caído em uma chuva de meteoros, o bebê alienígena é adotado por um casal do Kansas. Mas em vez de Smallville, o pouso é em Brightburn, na fazenda de Tori (Elizabeth Banks) e Kyle Breyer (David Denman), que há tempos tentando engravidar, como fica evidente nos livros na estante da casa, acreditam que a oportunidade é um presente dos céus para eles.
Imagens fofas dele ainda na primeira infância são mostradas e, então, apresenta-se o garoto Brandon Breyer (Jackson A. Dunn), prestes a fazer 12 anos. Aparentemente, uma criança gentil, muito inteligente, mas fechado e estranho o suficiente para receber o bullying dos colegas de escola, encontrando compreensão apenas na amiga de turma Caitlyn (Emmie Hunter), por quem é apaixonado. No entanto, a nave na qual ele caiu na floresta e que se encontra escondida começa a se comunicar com o menino e ele passa a descobrir suas habilidades e mudar o seu comportamento antes afável.
Há um pouco de semelhança com tantos filmes de terror que tratam da transformação de uma criança que seria o Anticristo, mas a fusão com a trajetória amplamente conhecida do sempre amável e justo Clark Kent traz um frescor para a plateia neste sentido. O que não quer dizer que a narrativa seja tranquila para o espectador. Manifestando-se, primeiro como um típico stalker, o horror psicológico é despertado em um segundo ato que demonstra traços da violência cotidiana contra as mulheres, mas logo o slasher toma conta da história, com Yarovesky e a montagem de Andrew S. Eisen e Peter Gvozdas fazendo questão de estender as cenas de violência gráfica, como a do olho.
Contudo, se a premissa é tão boa e a condução traz o suficiente para entreter o público, o saldo final é de que o filme nunca supera o seu ponto de partida, sem desenvolver a excelente questão que propõe e distraindo o público com o banho de sangue. Há diversas menções às transformações da puberdade e seria natural tentar fazer um paralelo direto com as consequências de uma educação sem limites, mas esta é uma metáfora que não se sustenta. Da mesma maneira, a possível alegoria sobre a decadência do modo de vida norte-americano, com a menção à cultura de armas, uma Casa Branca isolada naquela fazenda que não está em seus tempos áureos e a inversão de valores do herói que sempre foi símbolo da Justiça dos Estados Unidos, também não é capaz de entregar a mensagem – pior, abre margem a uma interpretação errônea de parte da plateia, que pode ficar com a ideia de que o desconhecido é sempre maligno, reforçando uma visão negativa contra os imigrantes.
Do ponto de vista da história do Superman, com a suspeita sobre o caráter sociopata de Brendon já ser inato nele, desde a analogia das vespas na explicação que ele dá na sala de aula, poderia se supor que o bebê enviado seria o filho de Zod ou uma visão mais cética mesmo sobre a possibilidade do próprio Kal-El se transformar em um tirano, a exemplo do game Injustice: Gods Among Us (2013). Todas essas dúvidas e deslizes acontecem porque, apesar de se anunciar como um desafio ao maniqueísmo existente no gênero dos super-heróis, Brightburn cai no mesmo erro, só que inverso, ao permanecer superficial no desenvolvimento apressado que faz do pequeno Breyer como um vilão, ainda que o jovem Jackson A. Dunn tente incluir mais camadas no personagem e Elizabeth Banks faça de tudo para convencer de sua cega proteção materna na escassa construção de relação entre eles que ocorre no primeiro ato e na rápida sucessão de eventos depois. Se o final deixa a sensação de que seria possível fazer muito mais com uma boa ideia, os créditos afagam o espectador com as boas sacadas de colocar bad guy de Billie Eilish, enquanto uma menção a um lado obscuro de outros heróis vem como fan service.
Brightburn – Filho das Trevas (Brightburn, 2019)
Duração: 91 min | Classificação: 16 anos
Direção: David Yarovesky
Roteiro: Brian Gunn e Mark Gunn
Elenco: Elizabeth Banks, David Denman, Jackson A. Dunn, Meredith Hagner, Matt Jones, Emmie Hunter, Becky Wahlstrom, Gregory Alan Williams e Annie Humphrey (veja + no IMDb)
Distribuição: Sony Pictures
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