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VINGADORES: ULTIMATO | Entre o dever da fantasia e o direito à realidade

Atualizado: 1 de mai. de 2021


Ser ou não ser?: o capacete do Homem de Ferro em destaque na cena de Robert Downey Jr. no filme-evento Vingadores: Ultimato (2019) | Foto: Divulgação (Disney)

Uma década atrás, enquanto o grande público, incluindo os fãs de quadrinhos, repetia suas idas ao cinema diante do feito cinematográfico de Batman: O Cavaleiro das Trevas, na sobriedade com que a obra encarava um universo super-heroico naquele longínquo verão norte-americano de 2008, uma pequena revolução no gênero havia iniciado do lado oposto sem que a maioria das pessoas notasse. Conforme o Tony Stark de Robert Downey Jr. dizia “eu sou o Homem de Ferro”, o Universo Cinematográfico Marvel (UCM) nascia.

A frase dizia muito. Não era só a autoafirmação de seu protagonista – “gênio, bilionário, playboy, filantropo” – como um inusitado super-herói que revela seu alter-ego numa coletiva de imprensa, mas também a autoafirmação de seu intérprete, desacreditado por muitos em sua contratação inicial como o protagonista por conta de seu passado conturbado com drogas que quase acabou com sua carreira. Com essa frase quase metalinguística, Downey Jr. reafirmava seu lugar no panteão dos grandes: dentro e fora das telas, ele era um Homem de Ferro (2008).

O ano é 2012 e, quatro filmes depois – O Incrível Hulk (2008), Homem de Ferro 2 (2010), Thor (2011) e Capitão América: O Primeiro Vingador (2011) –, a Marvel finalmente lança o fenômeno Os Vingadores. Mais uma vez, um lançamento do estúdio bate de frente com o tom sombrio e realista do homem morcego, com Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), o fim da trilogia de Christopher Nolan que abriu um caminho para estas produções e, para o bem e para o mal, cimentou os planos de um universo sombrio para o vindouro Universo Estendido da DC. Quem redefinia o gênero desta vez, no entanto, era a própria Marvel ao completar seu grande plano de realizar filmes solos de heróis para que pudesse uni-los num grande filme evento. Agora, era o Nick Fury de Samuel. L. Jackson que dava a letra metalinguística: “havia uma ideia de reunir um grupo de pessoas extraordinárias para ver se eles poderiam se tornar algo mais”.

Enquanto os excepcionais filmes de Nolan racionalizavam o material de origem, procurando sempre uma explicação orientada no mundo real para uma matéria-prima essencialmente fantasiosa, muitas vezes parecendo se envergonhar de sua fonte, o filme da primeira super-equipe da Marvel abraçava o ridículo dos quadrinhos, mantendo, é claro, algum nível de gravidade, mas fazendo uma mistura muito consciente – e eficiente – de drama e comédia. Mais importante, Os Vingadores de Joss Whedon possuía uma sensação constante de diversão. Mais do que referências obscuras aos quadrinhos, o fan service visto no filme vinha escarrado no personagem vivido por Clark Gregg, Phil Coulson, e o conceito se resolvia ali mesmo. Com sua coleção de figurinhas do Capitão América, o agente da S.H.I.E.L.D. era o fã inserido na ação, a homenagem definitiva ao fã que cresceu lendo esses personagens icônicos com seus ideais de altruísmo, justiça e bondade a serem seguidos, e que ganhavam vida nas telonas.

Nada menos do que 11 anos e 22 filmes se passaram, com o estúdio apenas depurando seu estilo de se fazer “filmes de quadrinhos” e pavimentando o que muitos chamam de "fórmula Marvel". É inegável que tais longas possuem, sim, semelhanças de tom e estrutura que atribuíram ao decorrer dos anos um caráter genérico as obras, consideradas por muitos descartáveis do ponto de vista cinematográfico e episódicas no próprio universo criado. Nunca deixaram de ser as típicas produções "para toda a família”, que promovem um escapismo dos tempos difíceis em que vivemos, mas se provam, muitas vezes, esquecíveis passados alguns dias após suas exibições. Se existem, é claro, os especiais Guardiões da Galáxia (2014) e Pantera Negra (2018), há também filmes como Thor: O Mundo Sombrio (2013) e Homem de Ferro 2O Incrível Hulk e Doutor Estranho (2016) permanecem até hoje como títulos injustiçados neste universo maior. Apesar dessas críticas, o estúdio sempre possuiu um constante sucesso financeiro, provando que esta fórmula funciona. Assim, os Vingadores e os heróis vistos nas produções da "Casa das Ideias" se tornaram um marco na cultura pop, marcando uma geração e estabelecendo padrões seguidos até hoje por estúdios, mas que nem todos conseguem, vide o patético Universo Sombrio que a Universal tentou lançar com o fraco A Múmia (2017).

O que mais prejudicava as produções do estúdio, talvez, era justamente a falta de consequência nas vidas e jornadas daqueles personagens. Mesmo em Capitão América: Guerra Civil (2016), um dos momentos neste universo onde questões políticas foram introduzidas de forma mais evidente e os protagonistas principais da franquia, Steve Rogers (Chris Evans), vulgo Capitão América, e Tony Stark / Homem de Ferro colidiam com suas ideologias distintas, os efeitos dos conflitos vistos nas telas que prometiam mudar o status quo nunca se realizaram de fato e de coração. Desta forma, foi apenas lógico que o maior problema de Vingadores: Guerra Infinita (2018), terceiro filme do grupo que precede este Ultimato, era justamente essa falta de peso dramático. As consequências do ato vilanesco de Thanos (Josh Brolin), o grande vilão desta série cinematográfica, ao dizimar metade da população do universo, não eram sentidas porque sabíamos que muitos dos heróis dizimados, introduzidos apenas recentemente neste UCM, eram donos de suas próprias franquias de sucesso, com sequências já confirmadas.

Ultimato conta com o peso da responsabilidade de concluir não só a narrativa de Guerra Infinita, mas também uma jornada iniciada no primeiro Homem de Ferro, quando o único elemento extraordinário deste universo habitado por deuses, aliens e árvores falantes era apenas uma armadura com tecnologia avançada. Para isso, uma metragem inchada para filmes do gênero – três horas de duração – e o foco nos seis personagens que compunham a formação inicial do grupo: Homem de Ferro, Capitão América, Thor (Chris Hemsworth), Hulk (Mark Ruffalo), Viúva Negra (Scarlett Johansson) e Gavião Arqueiro (Jeremy Renner), enquanto eles tentam de alguma forma reverter o estrago feito por Thanos, fazendo jus à alcunha de "vingadores". Assim, enquanto a aventura coletiva anterior saltava – sem nunca entediar, vale dizer – entre núcleos de vários personagens e as situações bombásticas nas quais se encontravam, a mais recente possui uma quantidade maior de momentos íntimos até mesmo pelo número modesto de personagens em comparação com o capítulo anterior. Tanto se falou de fórmulas, comentários metalinguísticos e fan services, mas é curioso como Ultimato chega também com o dever de representar o "serviço" final, onde toda a promessa de clímax das produções anteriores, sempre com ganchos para o próximo capítulo, se consumam.

Mais do que isso, o filme dos irmãos Joe e Anthony Russo, que comandaram o excelente Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014), Guerra Civil e Guerra Infinita, utiliza o roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely para, literalmente, viajar no tempo, passando pela história do estúdio nos últimos dez anos como um “Marvel´s Greatest Hits”. Se nesse clima de retrospectiva seria fácil cair numa jornada nostálgica, mas vazia, o quarteto formado pelos diretores e roteiristas consegue integrar tais momentos numa narrativa coesa, que se justifica, servindo não só como uma revisão de momentos do Universo Cinematográfico Marvel, mas também de velhos tropos e arquétipos do super-herói.

Para isso, os irmãos Russo começam com a desconstrução, onde finalmente sentimos, junto com nossos heróis, a consequência dos atos do vilão Thanos – e ambientar a trama cinco anos após a dizimação é essencial para que essas mudanças sejam notadas. Encontrar estas figuras, outrora sempre triunfantes, em pleno luto é eficaz e as lições continuam já no surpreendente primeiro confronto, onde todas as expectativas são subvertidas: nossos protagonistas se vingam de forma gráfica, num desespero não característico dos mesmos; o vilão está sereno, pacífico e consegue até mesmo provocar uma espécie de empatia para audiência. Os papeis se invertem: heróis e público logo aprendem que vingança nem sempre vem como uma recompensa emocional. É a velha carta tão utilizada nos quadrinhos de herói, “não mato meus vilões, pois sou melhor que eles”, colocada à prova.

Nesse jogo de consequências, talvez a jornada de Thor seja a mais fascinante. O personagem, que certamente será encarado pela maioria como um mero alívio cômico – em grande parte, por conta de um novo e inusitado visual – sempre foi, em essência, um ser unidimensional. Hemsworth e seus diretores, no entanto, optam por utilizar a veia cômica explorada em Thor: Ragnarok (2017) como um mecanismo de defesa, e o ator merece créditos por pequenos momentos como aquele em que escuta o nome de Thanos e muda sua postura, aparentemente de um bon vivant, para um estado de melancolia que desarmam as expectativas da audiência. Assim como não deveria haver nada de divertido na bebedeira e decadência do mesmo. Ao mesmo tempo, acompanhamos Steve Rogers em grupos de terapia, Clint Barton – o Gavião Arqueiro – como um executor e o estado de negação que o fato impõe em sua amiga Natasha Romanoff – a Viúva Negra. É o mais próximo que vemos, finalmente, destas figuras lidando com “problemas de adulto”.

E o apego a estas pessoas faz toda a diferença. Se pudemos acompanhar o crescimento literal e figurado dos personagens e intérpretes na série Harry Potter, por exemplo, o que presenciamos nesta conclusão soa mais ambicioso e recompensador, já que, devido aos diversos títulos da casa, não acompanhamos apenas um grupo de super-heróis, mas também suas possibilidades bem aproveitas de interações entre eles, como no encontro de Tony com o guaxinim espacial Rocket (dublado por Bradley Cooper). É curioso, também, como os coadjuvantes se saem melhor nestas interações. Os protagonistas das franquias individuais, por definição nessa lógica de histórias em quadrinhos, se assemelham muito uns com os outros. Nesses casos, a consistência deste universo se prova essencial, com poucas reescalações de atores em todos estes anos e um respeito à essência destes heróis, que não tomam atitudes contraditórias neste filme. Quando vemos Tony Stark sendo responsável, sabemos que ele amadureceu gradualmente em todos outros longas; quando Scott Lang (Paul Rudd) continua tomando atitudes estúpidas, sabemos que é porque seu personagem não consegue mudar. Essa coesão vem em pequenos instantes, nos quais os capítulos anteriores crescem em retrospecto, como naquele em que se percebe um simples gesto entre Rocket e Nebula (Karen Gillan) provocando emoções surpreendentemente intensas, justamente pelo histórico que estes personagens carregam consigo. É ótimo vê-los, então, sendo humanos.

Ainda assim, Ultimato equilibra-se muito bem nessa subversão das figuras heroicas enquanto caminha para um clímax que se entrega totalmente ao espírito dos quadrinhos, onde tudo se descomplica e, para o bem e para o mal, até mesmo Thanos regride a um estado de vilão cartunesco que tem prazer em ser simplesmente mal – e isso é um elogio nessa lógica da entrega definitiva aos arquétipos deste tipo de filme. Nesse ápice, há momentos desconexos ao da representatividade feminina que deve existir, mas que, neste caso, soa tão protocolar que causa uma espécie de vergonha alheia, enfiado na goela de um público que, talvez, até aplauda no calor do momento. Assim, o service feito aqui não parece se restringir ao UCM e sim à um gênero inteiro, na tradução da nona arte de todas as formas, e com a empolgação visual que ela carrega, à sétima arte.

O comentário metalinguístico – em meio à vários presentes na obra – da vez é feito em plena batalha final, quando determinado personagem solta um "como assim, você quer mais?", quando questionado se existem mais heróis para se juntar a eles, como se os próprios diretores reconhecessem que estão prestes a atingir o serviço máximo aos fãs, nesta culminação épica de anos. Em seu final, sem as habituais cenas pós-créditos, Ultimato se atenta para a essência destes personagens, fadados a voltar, apesar das consequências e do drama, a seus arquétipos por excelência. Se heróis deveriam sempre inspirar e representar ideais imutáveis, faz apenas sentido que Steve Rogers continue sendo este homem antiquado, acreditando em ideias como a mulher que foi o "amor da vida dele", e queira incessantemente voltar ao passado, a tempos mais simples aos seus olhos. Pois o que esta obra faz é tornar estes heróis, simplórios por definição, em pessoas reais para depois devolvê-los à zona de conforto, do bom e velho quebra pau com o vilão. A diferença é que, desta vez, há realmente uma conclusão. A recompensa emocional volta com Tony, o oposto de Steve; o herói futurista, nosso "Mister Fantasy" – como diz a música do Traffic que abre o filme – que, por razões egoístas, proferiu “Eu sou o Homem de Ferro”, lá em 2008.

Ao seu final, não restam dúvidas sobre os méritos de Vingadores: Ultimato e seu papel dentro da cultura pop e da produções baseadas em histórias em quadrinhos. No gênero, existem filmes melhores, mais relevantes, mais políticos, sociais e até mesmo mais ousados. Mas, dificilmente, existirá uma carta de amor tão definitiva a este universo de gigantes, heróis, monstros e batalhas; uma tradução tão eficaz nas virtudes e problemas vistos no próprio material de origem que fazem dele o maior filme de super-heróis já feito até então.

 

Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019)

Duração: 181 min | Classificação: 12 anos

Direção: Anthony Russo e Joe Russo

Roteiro: Christopher Markus e Stephen McFeely, baseado nas HQ's da Marvel de Stan Lee e Jack Kirby e em "O Invencível Homem de Ferro" #55 de Jim Starlin

Elenco: Robert Downey Jr., Chris Evans, Mark Ruffalo, Chris Hemsworth, Scarlett Johansson, Jeremy Renner, Don Cheadle, Paul Rudd, Brie Larson, Karen Gillan, Bradley Cooper, Josh Brolin e Samuel L. Jackson (veja + no IMDb)

Distribuição: Marvel / Disney

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