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  • Foto do escritorNayara Reynaud

DERRY GIRLS – 2ª temporada | Um estado de espírito

Atualizado: 27 de fev. de 2021


Jamie-Lee O'Donnell, Dylan Llewellyn, Nicola Coughlan, Saoirse-Monica Jackson, Louisa Harland e Siobhan McSweeney em cena do 1º episódio da 2ª temporada da série norte-irlandesa Derry Girls (2018-) | Foto: Divulgação (Channel 4)

Ao som de Caribbean Blue da irlandesa Enya e com imagens tão inspiradoras e pacíficas quanto à canção, se inicia a segunda temporada de Derry Girls (2018-), produção norte-irlandesa da Channel 4 que chega ao Brasil e outros países através da Netflix. Porém, o público que já conhece a série de comédia criada por Lisa McGee sabe que nada é tão tranquilo assim na cidade de (London)Derry ou na rotina de seus protagonistas adolescentes. Tanto que nesta abertura e em outra ocasião mais à frente, a roteirista se aproveita dos diálogos para tecer um comentário sobre o conturbado cenário da Irlanda do Norte naqueles anos 90, no qual a história se passa, para depois revelar comicamente que a intenção do personagem pouco tinha a ver com isso, apesar da fala sintetizar bem a situação que os rodeia.

A cena inicial também serve de anúncio para um segundo ano de confusões com a inseparável turma de amigos formada por Erin Quinn (Saoirse-Monica Jackson) e sua prima Orla (Louisa Harland), Clare (Nicola Coughlan), Michelle (Jamie-Lee O'Donnell) e seu primo inglês James (Dylan Llewellyn), no qual o contexto histórico, político e religioso do país afeta mais a vida deles, vindo mais à superfície para o público do que na primeira temporadaleia a nossa crítica. Na região que viveu décadas de conflito entre irlandeses católicos separatistas que queriam uma Irlanda unida e ingleses protestantes em defesa da permanência no Reino Unido, a terra natal de McGee foi palco de alguns dos episódios mais violentos do The Troubles, como o Domingo Sangrento de 1972 que inspirou o clássico Sunday Bloody Sunday da banda U2. E justamente por sua experiência em crescer na cidade durante a década de 1990, quando se vivia entre o temor de atentados terroristas e a esperança de paz nos períodos de cessar fogo dos grupos rebeldes e paramilitares, que a autora pincela mais a questão, usando a televisão como uma espécie de narradora dos fatos, mas ainda mantendo o espírito original em fazer da alienação de seus personagens, e da própria série por consequência, uma forma consciente de protesto.

Assim, logo no primeiro episódio da nova leva, Across the Barricade, há uma tentativa de integração entre as jovens estudantes católicas e o “estranho no ninho” James da escola comandada pela sempre impagável Irmã Michael (Siobhan McSweeney) e os alunos protestantes revelando a dificuldade de comunicação que se torna a tal barricada, porém, o quinteto protagonista tem interesses mais pessoais e juvenis nessa interação. McGee sabe tirar o humor das circunstâncias, sabendo que só em uma conjuntura de medo como a da Irlanda do Norte daquela época – e dos Estados Unidos pós-11 de Setembro – seria possível elevar uma piada ao nível que chega a subtrama da mala na terceira aventura do hilário The Concert, mas também momentos genuinamente emocionantes dentro do seu tom cômico, como no encerramento da temporada em The President. A produção se utiliza de clichês das tramas adolescentes como o baile em The Prom, ressignificando a clássica cena de Carrie, a Estranha (1976) ao pôr na trilha sonora Zombie, música que a banda irlandesa The Cranberries fez em protesto a um ataque do Exército Republicano Irlandês (IRA) que vitimou duas crianças, e intercalar na montagem a simbólica imagem falsamente sanguinária daqueles jovens com a família de Erin e a população celebrando um acordo de paz – as referências cinematográficas, aliás, estão presentes também no segundo capítulo, Ms De Brún and the Child of Prague, com o mistério de Os Suspeitos (1995) e uma professora ao estilo de Sociedade dos Poetas Mortos (1989).

Embora utilize, vez ou outra, como dispositivo narrativo o grupo de adolescentes tomando atitudes impensadas e se dando mal por isso, a roteirista explora novas dinâmicas, especialmente com as confusões na família Quinn, onde até o tio Colm (Kevin McAleer) ganha mais destaque. Isso rende situações ainda mais absurdas, em que um episódio como The Curse pode começar em um casamento ao som de Rock the Boat e ir depois para um velório, com outros elementos inusitados neste ínterim. O avanço mais perceptível, porém, se revela na direção de Michael Lennox, que agora acompanha eficientemente o ritmo sempre frenético do texto, que fazem os seis episódios de 20 e poucos minutos novamente passarem voando.

O novo ano também se beneficia da familiaridade do espectador com a caracterização caricatural dos personagens, que levava a certo estranhamento de início, mas depois torna o público como mais um da turma, por mais que o roteiro não aprofunde as questões mais íntimas de cada um. A revelação final da primeira temporada sobre a homossexualidade de Claire não leva a grandes desdobramentos, assim como as outras meninas, com exceção de James no último episódio, não ganham um desenvolvimento mais pessoal, infelizmente. No entanto, essa normalidade no cotidiano da garota, mesmo com a estranheza das outras pessoas manifestada em algumas falas, até naturais se tratando de um ambiente noventista e extremamente católico, tem um caráter de aceitação muito bem-vindo para este contexto.

A bem da verdade, este caminho segue a trilha principal da série, em que estes adolescentes só desejam fazer aquilo que tantos outros podem em outra época ou lugar, como assistir ao show dos seus ídolos, quando surge uma oportunidade única de ir à apresentação da boy band Take That na capital Belfast, já que “nunca vem ninguém bom porque estamos nos matando”, reclama Erin. Fazer de tudo para vê-los pode parecer uma bobagem da idade para alguns, mas é a manifestação da resiliência dos personagens e de sua criadora em manter-se na rotina de um típico coming of age cômico quando o entorno quer engoli-los em um drama de guerra. E em tempos nos quais, guardadas as suas particularidades, a polarização e sectarismo visto antigamente naquela região agora se torna latente em uma escala global, a obra ressalta a importância de ser uma “Derry girl” e conservar este estado de espírito para sobreviver em um mundo louco.

 

Derry Girls (Derry Girls, 2018-)

Série | 2ª temporada: 6 episódios, a partir de 2 de agosto de 2019 (no Brasil)

Direção: Michael Lennox

Criação: Lisa McGee

Elenco: Saoirse-Monica Jackson, Louisa Harland, Nicola Coughlan, Jamie-Lee O'Donnell, Dylan Llewellyn, Tara Lynne O'Neill, Kathy Kiera Clarke, Tommy Tiernan, Ian McElhinney, Siobhan McSweeney, Leah O'Rourke e Kevin McAleer (veja + no IMDb)

 

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