top of page
  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Retalhos da Cortina de Ferro


Fragmentos da antiga Cortina de Ferro, como o Leste Europeu ficou conhecido durante a Guerra Fria que dividia os países comunistas deste lado europeu em relação às nações capitalistas da parte ocidental, são encontrados em O Charlatão (2020) e Walden (2020), dois filmes que estiveram presentes na programação desta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. No primeiro longa, dirigido pela prolífica polonesa Agnieszka Holland, se remonta a história de um herborista e curandeiro tcheco que passou pelas várias transformações políticas da Tchecoslováquia na primeira metade do século XX. No outro, a cineasta búlgara radicada na França, Bojena Horackova, relembra os momentos finais da Lituânia como uma república soviética, através da trama de um primeiro amor. Confira mais sobre ambos os títulos a seguir.

 

O Charlatão (Charlatan, 2020)


Ivan Trojan e Juraj Loj em cena do filme O Charlatão (Charlatan, 2020) | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Em um momento de grande produtividade em sua carreira, a cineasta polonesa Agnieszka Holland, que ganhou o Urso de Prata com Rastros (2017) e teve Mr. Jones (2019) na competição do ano passado e igualmente na seleção da Mostra anterior, retornou ao último Festival de Berlim e também a esta Mostra com O Charlatão. Se o primeiro longa citado se tratava de uma produção prioritariamente polonesa e o segundo tinha o inglês como idioma principal, bem como suas estrelas principais, seu trabalho mais recente resgata, de maneira bem livre, uma história da antiga Tchecoslováquia. O representante da República Tcheca na próxima corrida do Oscar de Melhor Filme Internacional é menos uma cinebiografia e mais um drama livremente inspirado na trajetória do herborista e curandeiro Jan Mikolášek (1887-1973).


O roteiro escrito pelo tcheco Marek Epstein inicia com a morte do então presidente Antonín Zápotocký, em 1957, que acaba colocando fim à tranquilidade do fitoterapeuta que conquistou uma fama nacional como um curandeiro, capaz de diagnosticar doenças analisando apenas visualmente a urina de seus pacientes e receitando-lhes compostos de plantas medicinais. Vivido pelo astro local Ivan Trojan, o protagonista quando jovem é interpretado pelo filho do ator, Josef Trojan, em um vaivém narrativo entre diversas passagens de sua vida. O público o vê como soldado na I Guerra Mundial, aprendiz de uma curandeira de sua região e, já mais velho, conhecendo o seu assistente Frantisek Palko (Juraj Loj), um rapaz casado e sem muita experiência no ofício, mas com quem inicia um caso.


Mesmo se abstendo de traçar um perfil biográfico fidedigno, a exemplo da suposição de Mikolášek ser homossexual, a liberdade criativa de Epstein e Holland esbarra no próprio desenvolvimento do personagem, pouco aprofundado, tal qual do panorama político que serve de fundo. A dupla busca um retrato positivo e heroico de sua figura, colocando como alguém a serviço dos pobres, mas sem mostra-lo a atender os mais abastados, a não ser quando coagido como durante a ocupação nazista, sendo que foram os diversos favores prestados aos governantes de diversos regimes que permitiram o funcionamento da sua clínica por anos, até que o governo comunista passou para as mãos do mais stalinista Antonín Novotný, tornando o herborista uma persona non grata, sendo chamado de charlatão pelos jornais e, depois, preso. Essa construção é apenas pincelada por acessos de raiva menos trabalhados pelo roteiro do que os momentos de penitência, algo que terá consequências quando o final demonstra um protagonista mais amoral do que apresentado antes. O formalismo do registro de época, ao menos, é infundido de alguns traços autorais da diretora, com uma câmera ágil e os planos dos rostos isolados no interrogatório, junto à fotografia de Martin Strba, com o filtro granulado e dessaturado de lembranças e da pressão da guerra ou do totalitarismo, com as cores de instantes mais felizes, que não garantem o respiro necessário ao filme.

 

O Charlatão (Charlatan, 2020)

Duração: 118 min | Classificação: 14 anos

Direção: Agnieszka Holland

Roteiro: Marek Epstein

Elenco: Ivan Trojan, Josef Trojan, Juraj Loj e Jaroslava Pokorná (veja + no site)

Produção: República Tcheca, Irlanda, Polônia e Eslováquia

Distribuição: A2 Filmes

 

Walden (Walden, 2020)



A cineasta Bojena Horackova nasceu na Bulgária, morou na antiga Tchecoslováquia e se estabeleceu em Paris, na França, mas sempre se manteve muita atenta às questões do Leste Europeu em seus filmes, como o recente Walden. Exibido no Festival de Locarno, seu terceiro longa de ficção viaja até a Lituânia, nos seus últimos momentos como república soviética, em paralelo com o país báltico atual, através das lembranças de um primeiro amor e de um lago. Assim, o público conhece os jovens Jana (Ina Marija Bartaité) e Paulius (Laurynas Jurgelis) na capital lituana Vilnius, em janeiro de 1989, no que seria o último ano sob o jugo da União Soviética.


Neste cenário, o rapaz desesperançoso, que, no mercado negro, troca rublo por dólar, com o intento de guardar dinheiro para ir embora para a Europa ocidental, através do amigo Lukas (Mantas Janciauskas), conhece a moça estudiosa, que sonha um futuro melhor para a Lituânia, mas acaba se envolvendo com ele amorosamente e em seus negócios ilegais. Apesar, de estar passando por mudanças, evidenciadas pela publicação de uma obra tão crítica quanto Vilnius Poker (1989), livro de Ričardas Gavelis, a vigilância da polícia soviética permanecia presente. Enquanto isso, a partir do segundo ato, já é introduzida a linha narrativa do presente, em que Jana (nesta parte, vivida por Fabienne Babe) parte da França de volta para sua terra natal, com um conhecido de seus amigos, o polonês Jakub (Andrzej Chyra), em busca do lago bem escondido que frequentava com Paulius e ao qual chamavam de “Walden”.


O grande problema do roteiro escrito por Horackova, ao lado de Marc Cholodenk e Julien Theves, é não estimular que o espectador desenvolva afeição pelos personagens, além de não desenvolver mais este pano de fundo político. Algo que será sentido no final, com a dúvida se o filme é genuinamente frustrante, ao trabalhar com essa idealização das memórias – neste caso, é muito assertiva a fala sobre as “pessoas que colocaram sua esperança no futuro e, agora, no futuro, depositam sua esperança no passado”, com peso tanto sociopolítico quanto emocional –, ou transmite isso sem querer, pela construção falha de sua narrativa e figuras humanas.

 

Walden (Walden, 2020)

Duração: 85 min | Classificação: 14 anos

Direção: Bojena Horackova

Roteiro: Bojena Horackova, Marc Cholodenko e Julien Theves

Elenco: Ina Marija Bartaité, Laurynas Jurgelis, Fabienne Babe, Andrzej Chyra, Mantas Janciauskas, Nele Savicenko e Povilas Budrys (veja + no site)

Produção: França e Lituânia



0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page