MOSTRA SP 2020 | As mulheres em uma África dividida
Atualizado: 7 de jan. de 2023
A produção cinematográfica de países africanos foi destaque nesta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com o júri premiando o filme nigeriano Eyimofe (Esse é o Meu Desejo) (2020) como Melhor Ficção Internacional – veja aqui a lista completa de prêmios – e o lesotiano Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição (2019) sendo um dos favoritos entre a crítica e os “mostreiros”. Assim como este último, a perspectiva feminina é colocada à frente de problemas locais em Nossa Senhora do Nilo (2019), coprodução entre França, Bélgica e Ruanda em que o cineasta Atiq Rahimi adapta o livro homônimo de Scholastique Mukasonga que prenuncia o conflito entre hutus e tutsis no ambiente de um colégio interno ruandense; e do documentário Impedimento em Cartum (2019), de Marwa Zein, no qual as mulheres jogadoras de futebol no Sudão precisam enfrentar as proibições do regime islâmico do governo do país, recentemente dividido com a independência do Sudão do Sul em 2011. Confira mais sobre esses dois longas-metragens a seguir.
Nossa Senhora do Nilo (Notre-Dame du Nil, 2019)
Em 1994, o mundo foi pego de surpresa com o genocídio em Ruanda, no qual os governantes e a população hutu promoveram, por meses seguidos, massacres contra os cidadãos da etnia tutsi. Surpresa, porque pouco se dá atenção, a nível mundial, aos problemas que assolam as nações africanas – um exemplo recente é o aumento de massacres realizados por jihadistas no norte de Moçambique, em uma questão bem urgente também em outros países do continente. No entanto, não só os sinais do conflito étnico poderiam ser observados antes, como foi provocado pelos colonizadores europeus, particularmente os belgas, algo apresentado pelo filme Nossa Senhora do Nilo.
Vencedor do Urso de Cristal da seção Geração 14plus do Festival de Berlim, o novo longa de Atiq Rahimi se difere dos anteriores porque o cineasta afegão, radicado na França, não está adaptando o seu próprio livro, como em Terra e Cinzas (2004) e A Pedra de Paciência (2012). O roteiro escrito por ele e Ramata Toulaye-Sy se baseia no romance Nossa Senhora do Nilo (2012), da escritora tutsi Scholastique Mukasonga, que costumeiramente coloca em suas páginas as experiências pessoais vividas no país natal, onde já não mais vive desde o momento que sobreviveu ao genocídio. Esta história se volta aos eventos pregressos, em 1973, que não originaram, mas ajudaram a pavimentar a disputa entre hutus e tutsis em Ruanda, além de vislumbrar uma faceta da influência que os colonizadores tiveram em criar uma diferenciação na população, que pouco existe de fato, seja originalmente ou depois de séculos de miscigenação – na realidade, eles acirraram ainda mais por questões políticas, ao apoiar o governo tutsi no início e depois fortalecer os hutus.
A trama, no entanto, se concentra em um lugar que, supostamente, deveria estar protegido desses conflitos externos, se passando no Nossa Senhora do Nilo, um colégio interno católico, exclusivamente feminino. Dirigido por uma madre superiora europeia (Carole Trevoux), a escola afastada no alto de uma colina abriga a elite ruandense, com filhas de políticos entre as estudantes, mas a segregação já estava presente, mesmo que disfarçada pela igualdade dos uniformes, na cota de 10% de alunas tutsis. Ainda assim, a primeira das quatro partes da narrativa foca mais nessa inocência juvenil, que logo seria perdida, na convivência entre as garotas amadurecendo na rigidez daquele ambiente religioso, onde se ensina que “África é Geografia e Europa é História”.
E justamente esse desconhecimento da história africana e interferência do pensamento europeu sobre ele começam a aparecer, especialmente na figura do “homem branco” representada no proprietário de terra vizinho, o Sr. Fontenaille (Pascal Greggory), explicando à Veronica (Clariella Bizimana) e Virginia (Amanda Santa Mugabekazi) que os tutsis descendem dos faraós negros do Egito, vindo da região do Rio Nilo, assim como a imagem da Nossa Senhora que apareceu em suas águas e dá nome ao colégio. Enquanto isso, Gloriosa (Albina Sydney Kirenga) leva a submissa e dividida Modesta (Belinda Rubango Simbi) em suas ações sacrílegas para confirmar a superioridade dos hutus, destilando ideias generalistas e preconceituosas sobre feições que definiriam a etnia majoritária e a minoritária. Atitudes que culminarão em outras cada vez mais graves, em que é notável a perda de controle, o silêncio e isenção das personagens europeias quando a situação chega à barbárie e o local sagrado é banhado de sangue.
A direção de Rahimi se permite dois momentos de experimentação lúdica, emulando um filme francês em preto e branco e na animação das pinturas egípcias ganhando vida, mas, no geral, apresenta um caráter convencional, em que o principal trunfo da narrativa é justamente como é dada essa evolução dos acontecimentos, fazendo que com os espectadores percebam aos poucos ou nem se deem contam do rumo perigoso que aquela intolerância étnica pode chegar. O roteiro pode ser superficial na caracterização de algumas personagens, especialmente no antagonismo de Gloriosa, mas o elenco se apresenta bem nesta tarefa difícil de apresentar a História de um país africano para um desinformado público da “civilização ocidental”.
Nossa Senhora do Nilo (Notre-Dame du Nil, 2019)
Duração: 122 min
Direção: Atiq Rahimi
Roteiro: Atiq Rahimi e Ramata Toulaye-Sy, baseado no livro “Nossa Senhora do Nilo” de Scholastique Mukasonga
Elenco: Santa Amanda Mugabekazi, Albina Sydney Kirenga, Angel Uwamahoro, Clariella Bizimana, Belinda Rubango Simbi, Carole Trevoux e Pascal Greggory (veja + no site)
Produção: França, Bélgica e Ruanda
Impedimento em Cartum (Khartoum Offside, 2019)
Logo no início de Impedimento em Cartum, a cartela de entrada já avisa que, no Sudão, o governo de regime islâmico não permite que as mulheres joguem futebol, nem que realizem um filme. O documentário de Marwa Zein é, portanto, resultado de uma dupla insubordinação: primeiro, das jogadoras que desafiam a proibição, tentando mostrar a modalidade feminina do esporte e oficializá-la; e, consequentemente, da cineasta, que vive entre o país do norte da África e a Alemanha, ao filmar a trajetória dessas jovens. Trata-se de uma produção bem simples, mas é esse espírito de rebeldia que dá força e um caráter de excepcionalidade à obra exibida Festival de Berlim e em vários festivais especializados do gênero.
Talvez, por isso, a diretora, por mais que apresente o difícil contexto em que suas personagens estão inseridas – inclusive, mostrando como a independência do Sudão do Sul, fruto da secessão do antigo Sudão em dois, afeta a situação das jogadoras que vieram do novo país –, evita um tom sentimentalista e até busque um ar mais bem-humorado. Seja na menina que deseja também praticar o esporte e, mesmo tendo uma ideia mais rígida quanto ao uso do véu, diz que não vai se casar, mas vai ter filhos; ou no homem que completa o time e afirma gostar mais de jogar com mulheres. A esperança para elas vem com as eleições na federação nacional de futebol e, para o espectador, com as fotos nos créditos finais, relembrando os feitos da formação da equipe feminina de basquete sudanesa, em 1986; a figura da cineasta local Wesal Musa, em 1969; as mulheres pioneiras na linha de frente dos protestos no Sudão, em 1964; o grupo de irmãs cantoras Al Balabi, em 1970; e a delegação olímpica da nação, em 1968.
Impedimento em Cartum (Khartoum Offside, 2019)
Duração: 75 min
Direção: Marwa Zein
Roteiro: Marwa Zein (veja + no site)
Produção: Sudão, Noruega e Dinamarca
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