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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Da imobilidade à transposição

Com propostas narrativas e de direção muito diferentes entre si, a oposição de Lua Vermelha (2020) e Sibéria (2020), presentes na seleção desta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, se encontra justamente no uso do imaginário para enfrentar uma escuridão coletiva ou pessoal. Na produção espanhola do cineasta galego Lois Patiño, são as lendas que assombram fantasmagoricamente e imobilizam uma vila costeira da Galícia marcada por um clima funesto. Já na nova empreitada do cineasta norte-americano Abel Ferrara, a transposição metafísica do protagonista vivido por Willem Dafoe pelos extremos do globo terrestre exterioriza a sua jornada individual por suas memórias e pecados. Confira mais a seguir.

 

Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020)


Cena do filme espanhol Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020), do cineasta galego Lois Patiño | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

As lendas antigas ainda imobilizam os atuais habitantes de uma vila litorânea na Galícia, chamada Costa da Morte, a qual o diretor Lois Patiño já retratou em um documentário de 2013, que levava o nome do local, e agora revisita em seu segundo longa, a ficção experimental Lua Vermelha. Ponto de vários naufrágios que alimentaram a crença de que monstros habitam o mar daquela região, o filme exibido na seção Fórum do Festival de Berlim e no IndieLisboa mergulha nessa mitologia que, para alguns pensadores, acabou por moldar a identidade do povo galego. Por isso, a ideia de que os mortos ali permanecem entre eles move o jovem cineasta a fazer um estático retrato fantasmagórico desse cenário, a partir de um mínimo fio narrativo. No caso, trata-se da morte de Rubio (Rubio de Camelle), um marinheiro experiente no resgate de náufragos, mas que desapareceu no mar que conhece tão bem.


Inspirando-se tanto no trabalho de pintores e escritores galegos sobre esse imaginário mitológico quanto no cinema do russo Andrei Tarkovsky, Patiño estabelece uma mise-en-scène imóvel. Os habitantes, sozinhos ou acompanhados, permanecem imóveis em meio às rochas e a areia à beira-mar ou no centro da pequena vila e a voz em off traz as suas conversas e pensamentos para completar esse quadro. A dádiva do movimento só é dada às três bruxas (Ana Marra, Carmen Martínez e Pilar Rodlos) que vem socorrê-los dos perigos que vem do mar e da Lua de Sangue que vem banhar o lugarejo de vermelho.


A fotografia e o desenho de som evocando esses elementos fantásticos de seres subaquáticos são belos, mas é sensível o quanto a narrativa padece de uma dinâmica que a sustentasse em um longa-metragem, já que a proposta de alegorias poéticas caberia bem um curta. É como se os personagens e o próprio discurso ficassem também imobilizados pelo monstro de um determinismo estético do diretor. Ainda assim, o filme suscita outras reflexões além da reconstituição mitológica, seja na menção à questão ambiental com a presença da barragem sendo a construção humana monstruosa a trazer a morte de uma parte da natureza, embora a força desta ainda lhes seja inatingível; ou no comentário político, talvez involuntário, de uma inércia no retrato da Galícia, bem como a citação aos mil anos de escuridão no ventre da besta, que bem poderia ser uma hipérbole metafórica para o domínio espanhol na região, pouco desenvolvida em relação a outras comunidades autônomas do fragmentado país.

 

Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020)

Duração: 84 min | Classificação: 16 anos

Direção: Lois Patiño

Roteiro: Lois Patiño

Elenco: Ana Marra, Carmen Martínez, Pilar Rodlos e Rubio de Camelle (veja + no site)

Produção: Espanha

 

Sibéria (Siberia, 2020)


Willem Dafoe em cena do filme Sibéria (Siberia, 2020), do cineasta Abel Ferrara | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Em seu último trabalho de ficção, o sempre provocativo cineasta Abel Ferrara promove uma exploração geográfica que se torna um espelho da jornada psicológica, inspirada pel’O Livro Vermelho (2009) do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961), dentro dos devaneios de memórias, sonhos e/ou ilusões do protagonista de Sibéria. Mais uma vez, ele é interpretado por Willem Dafoe, em sua sexta parceria com o diretor norte-americano. Após uma sequência de biografias não-ortodoxas com Pasolini (2014) e Tommaso (2019), o ator surge mais como um alter ego do autor, em um papel que dificilmente se encaixaria com outro intérprete.


Presente na competição do Festival de Berlim, o filme inicia apenas com a voz de Dafoe contando a lembrança de infância de um garoto nos momentos em que acampava com o pai e o irmão no norte do Canadá. Quando a imagem surge à tela, o cenário não é menos gélido, já que o público encontra Clint no frio extremo da Sibéria, onde o seu personagem cuida de um bar. Se o espectador tenta estabelecer a lógica de uma narrativa formal quando uma senhora e uma moça grávida (Cristina Chiriac) vão até o local e ele tem relações sexuais com a jovem, logo Ferrara “puxa o tapete” e joga o protagonista e o público dependurados em um desfiladeiro.


Começa, então, uma viagem onírica pela mente de Clint que, ao mesmo tempo em que busca um sentido psicanalítico, pede ao espectador que se desprenda da razão. Há a exploração de seus recônditos inconscientes, exteriorizada pela caverna que ele adentra e se depara com um “outro eu” clamando os seus pecados ou no encontro com a figura semelhante do pai que o assombra. E existe uma excursão aos extremos da Terra em que o personagem se cruza com as pessoas que fazem parte de sua vida, às quais ele magoou pelo caminho.


Neste sentido, ainda que este homem seja questionado quanto a sua masculinidade, Ferrara faz do corpo feminino ainda um mero instrumento para a construção abstrata de seu protagonista. Trata-se, portanto, da típica obra divisiva do autor, que pode se conectar com parte do público nessa busca para saber quem é, mas não deixar de viver e dançar como na bela cena ao som de Runaway, de Del Shannon. Contudo, para o resto, essa fuga de Clint não vai escapar de ser somente um filme autocentrado que não faz questão de se comunicar com eles.

 

Sibéria (Siberia, 2020)

Duração: 92 min | Classificação: 16 anos

Direção: Abel Ferrara

Roteiro: Abel Ferrara e Christ Zois

Elenco: Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina Chiriac e Daniel Giménez Cacho (veja + no site)

Produção: Itália, Alemanha e México



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