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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Entrevista com Jeremy Hersh, diretor de “Mãe de Aluguel”

Atualizado: 2 de ago. de 2021


O cineasta norte-americano Jeremy Hersh, que estreou o seu primeiro longa-metragem Mãe de Aluguel (The Surrogate, 2020) | Foto: Divulgação (Visit Films / Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

“Eu não quero ver representação queer positiva, eu quero ver representação queer interessante”. Esse é um dos lemas que move o jovem cineasta norte-americano Jeremy Hersh, que colocou em prática a sua vontade de desenvolver personagens mais complexos, bem como os debates levantados por eles, em seu primeiro longa-metragem, Mãe de Aluguel (The Surrogate, 2020). O filme que acabou de ter a sua atriz principal Jasmine Batchelor indicada ao prêmio de Atriz ou Ator Revelação no Gotham Awards, uma das mais prestigiadas premiações do cinema independente dos Estados Unidos, esteve presente na seleção da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, onde o público brasileiro pode conferir online à história de uma amiga que se oferece para ser a mãe de aluguel de um casal de amigos homossexuais, mas o diagnóstico de que o bebê tem Síndrome de Down gera dúvidas nos futuros pais e vários sentimentos na protagonista grávida. Em uma entrevista também virtual, exclusiva para o NERVOS, por e-mail e áudios, o diretor e roteirista detalhou o ponto de partida para seu trabalho, o seu interesse nos temas tratados e em desafiar o público, o processo de filmagem com o elenco, o lançamento digital da produção e a recepção dos espectadores brasileiros, entre outros assuntos que você confere a seguir.

 

Qual foi o ponto de partida para você criar o seu primeiro longa? A dificuldade da relação de mãe/barriga de aluguel na realidade, o tema da Síndrome de Down, os dilemas morais ou outra ideia?


Jeremy Hersh: Acho que a semente inicial da ideia foi este tropo (um clichê narrativo) que cresci assistindo e, na realidade, foi a primeira representação queer que eu cresci vendo, que é a da relação entre homens gays e mulheres heterossexuais. Por um tempo, eu queria fazer algo sobre essa relação, porque é algo real: as amizades que tive com mulheres heterossexuais foram muito importantes para mim. E, ainda assim, sinto que, na tela, eles geralmente perpetuam um jeito simplista, unidimensional... Um jeito que eles tentam mostrar de maneira divertida, como se fossem “dois positivos”. E, como sempre digo: “eu não quero ver representação queer positiva, eu quero ver representação queer interessante”, porque interessante, complicada e confusa é real.


Então, esse foi o princípio e tive que ir a vários festivais de cinema queer com meus curtas – o primeiro, chamado Natives (2013), que foi meu trabalho de conclusão da faculdade, e o outro chamava-se Actresses (2015). Acho que é muito legal nós termos esses festivais que começaram como o único modo, underground, que as pessoas poderiam se reunir para ver filmes queer e, agora, não temos mais eles como o único jeito de vê-los, mas é um lugar onde eles podem ser celebrados. E, mesmo assim, antes de tudo, achava o público desses festivais demograficamente homogêneas: basicamente, eram homens gays, brancos e de meia-idade. E também sentia que muitos filmes reforçavam o que a plateia queria ver, retratando os personagens queer como heróis lutando contra a homofobia, algo que certamente é uma narrativa válida, mas queria fazer algo diferente. Tentar segurar um espelho para este público e tentar desafiá-lo, pois, como espectador, gosto de ser desafiado.


Antes de tudo, como uma pessoa queer, cresci pensando que quero filhos um dia, ponderando que a barriga de aluguel pode ser um modo de fazer isso e, quando mais aprendi sobre isso e me dei conta de quão complicado é. Ao mesmo tempo, há esse padrão de pessoas que estão lutando contra a Roe vs. Wade [caso judicial histórico, de 1973, pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao aborto ou interrupção voluntária da gravidez] nos Estados Unidos, meio que usando a comunidade de pessoas com deficiências como um artifício para tentar o acesso limitado ao aborto. É necessário as pessoas pensarem nisso quando fazem o pré-natal, há muita desinformação sobre a Síndrome de Down e as pessoas com ela são igualmente valiosas como qualquer um. Mas penso que as pessoas na Direita estão, cinicamente, usando essas pessoas e essa ideia como uma desculpa para limitar o acesso ao aborto. Sou muito apaixonado pela questão da escolha e o fato de ser perigoso ou não um acesso fácil ao aborto, sem restrições, e também pela ideia de que pessoas com deficiências são valiosas e que a nossa sociedade não as valoriza suficientemente. Então, achei que essas duas coisas diferentes que tenho interesse poderiam ser colocadas em uma conversa na qual parece existir probabilidades entre si.



Uma das coisas mais interessantes em Mãe de Aluguel é como a representação está presente, mas sem caracterizações simplistas. Foi seu desejo inicial desvendar essas fissuras mesmo nos campos considerados mais progressistas? Existe um pouco de sua própria experiência nisso?


Como disse, cada personagem ser imperfeito e complexo é o que penso que devo fazer para senti-los reais, para tornar a história interessante. E sim, definitivamente, queria apresentar um grupo de pessoas que consideram a si mesmos progressistas, parecem progressistas e são progressistas e olhar para os pontos cegos que estão ali, porque todos nós temos esses pontos cegos. Estava, definitivamente, olhando pra mim mesmo e tentando achar meus próprios pontos cegos. Acho que, de novo, estou interessado em desafiar o público que vai assistir a filmes independentes.



Leon Lewis, Brooke Bloom e Jasmine Batchelor em cena do filme Mãe de Aluguel (The Surrogate, 2020), de Jeremy Hersh | Foto: Divulgação (Visit Films / Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Como foi o processo de pesquisa sobre Síndrome de Down para o roteiro com o auxílio de associações especializadas?


Sim, comecei a ir a um centro comunitário para pessoas com Síndrome de Down. A maioria das pessoas que eles atendem tende a ser muito jovens, mas é para todas as idades. Fico contente que tive muito tempo até que o filme fosse financiado, porque comecei a ir nesse centro no Harlem e, primeiro, pensei que iria apenas algumas vezes, apenas para observar, mas logo eles: “já que você está aqui, não quer nos ajudar? Levar aquela criança no banheiro? Pode ajudar a tirar essas coisas do carro?”. Eles foram me incluindo, acabei voltando e ficando amigo com um número de pessoas lá. Uma coisa é ler sobre, outra coisa é encontrar com pessoas, mas realmente conhecer as pessoas por um período de tempo, para mim, foi a melhor forma de pesquisa que poderia ter. E, por um lado, tive uma relação com algumas pessoas que trabalham lá, algumas que são atendidas por esse centro, que me possibilitaram ter o que considero um feedback honesto sobre os diferentes tratamentos do roteiro.


E qual foi a recepção da comunidade com a abordagem do filme?


Acho que, no geral, as pessoas a quem enviei o roteiro apreciaram que eu não estava sendo ser didático, tentando apresentar uma versão complicada das coisas e manter espaço para vários pontos de vista no filme. Sinto que a comunidade não é uma coisa só. Várias pessoas leram o roteiro ou assistiram algumas cenas ou, agora, ao filme e elas não têm o mesmo olhar, mas, em geral, tem sido uma recepção positiva. E, de novo, acho que elas apreciaram que não era uma espécie de propaganda.



Falando sobre o processo de filmagem em si, como foi a experiência de realizar seu primeiro longa? Principalmente, no desafio de trabalhar com os atores nessa escolha para tomadas longas e um estilo muito naturalista.


Foi uma experiência incrível e me considero sortudo por tê-la e de ter a possibilidade de ter esses incríveis atores. Só confiei, tomei responsabilidade e cuidado com essas longas cenas. Minha procura foi que, quanto mais responsabilidade dava a eles, pois é claro que quando você está filmando longas tomadas você está dando aos atores muita responsabilidade, porque eles não podem cometer qualquer erro... E eles foram inteiramente responsáveis pelo ritmo da cena; você não pode consertar isso na edição. E acho que estava correto: quanto mais responsabilidade dava às pessoas, mais confiava nelas, mais amplificava o melhor nelas. Quanto às longas tomadas, não gosto de fazê-las somente para um resultado estético; realmente, gosto de fazer por uma perspectiva de processo. Prefiro passar o tempo que temos fazendo vários takes diferentes de uma marcação de cena [e plano de câmera] do que gastar tempo mudando a marcação. E sim, foi difícil fazer meu primeiro longa, não por causa do elenco, mas tentei trabalhar com pessoas mais experientes do que eu: certamente, minha diretor de fotografia [Mia Cioffi Henry], meu diretor de arte [D'Vaughn Agu], a figurinista [Lauren Tanchum]... Todos os departamentos tinham pessoas que sabiam o que estavam fazendo. Então, não era a primeira vez deles e só tentei diferir o quanto podia.



Sullivan Jones, Jasmine Batchelor e Chris Perfetti no filme Mãe de Aluguel (The Surrogate, 2020), de Jeremy Hersh | Foto: Divulgação (Visit Films / Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Então como foi essa parceria com a Jasmine Batchelor para construir uma personagem como a Jess, que sempre tem seu otimismo confrontado com a realidade e leva o público a refletir sobre essas questões complexas?


Trabalhar com a Jasmine foi um completo sonho. Ela também é escritora e foi uma grande dramaturga para o roteiro. Como disse antes, imediatamente confiei nela e tentei não comandar, mas deixá-la fazer do “seu jeito”. E adorei a sua descrição dela ser uma personagem cujo “otimismo é confrontado com a realidade”, porque, definitivamente, essa era a essência do que estávamos tentando fazer. Ela [Jasmine] estava envolvida no projeto bem cedo, cerca de dois anos antes de começarmos a filmar. Mesmo no set, ela foi solícita... Uma noite antes de filmarmos algo, ela se atentou a uma parte do diálogo que ela achou que poderia ser aperfeiçoada e nós trabalhamos juntos. Sempre confiei se ela queria parafrasear ou mudar algo no texto. Não vejo o diálogo como algo sagrado e imutável, que o ator não pode brincar com ele. Então, tinha esse elemento de improvisação envolvendo o filme, mas o que sempre quero dizer às pessoas, porque, quando eles ouvirem isso, vão acreditar que os atores estavam adicionando coisas. A primeira coisa que elas pensam em improvisar é em adicionar piadas. E, pelo menos, com estes atores, especialmente a Jasmine, o jeito que eles improvisam é em tornar as coisas mais concisas. Então, se tinha uma fala excessivamente complicada ou algo assim, eles, às vezes, simplificavam e a tornavam mais justa e firme. Acho que isso ilustra a falta de ego da Jasmine, de sempre querer mais clara possível. E sabia que ela tinha entendido a personagem desde a audição. E diria que o perigo de um filme como esse é parecer como um debate ou um tratado, sendo meio teórico, e ela trouxe à mesa essa humana real e dimensional e, obviamente, isso foi essencial para o filme funcionar.



A trajetória do projeto foi interrompida pela pandemia: o SXSW teve suas exibições canceladas e Mãe de Aluguel teve um lançamento virtual nos Estados Unidos. Como foi para você lançar seu primeiro longa neste cenário novo e diferente e como tem sido a resposta do público?


Sim, foi uma frustração quando o South by Southwest foi cancelado. Ainda quero ver o filme no cinema, com o público. E, por mais que considere o filme bem dramático, há uns poucos momentos de comédia nele e acho que isso é a coisa que mais sinto falta: ouvir a plateia e ver se ela responde a esses momentos de leveza, se eles pensam que esses momentos são engraçados. Mas o filme ficou disponível online em junho, logo depois do que seria a nossa première, que deveria acontecer em março. Então, é ótimo que bem mais pessoas tiveram acesso ao filme, é algo democratizante.


E mesmo estando em um festival online como este em São Paulo... Nós estivemos em um monte de festivais que foram deste tipo online, por todo o mundo, e amo que qualquer um, em qualquer lugar do país, pode acessar a internet e assistir. Você não precisa morar na cidade; não é gratuito, mas você não precisa comprar uma credencial cara para entrar. Então, acho que isso é um benefício na situação em que nos encontramos: o fato de que quem, de outra forma, não teria acesso ao filme, de estar entre os primeiros a vê-lo, ter condições de assisti-lo. Você sabe que as pessoas queer costumam confluir para as cidades, mas muitas não vivem no espaço urbano, especialmente as mais jovens. Gosto da ideia de que pessoas queer de todos os lugares, que geralmente não poderiam assistir um filme, têm um festival em que podem vê-lo. E você diz neste “novo e diferente cenário” e, nos últimos 10 anos, houve muitas mudanças para o digital, então, estava, de algum modo, mentalmente preparado para isso.


Fiquei surpreso com a resposta do público e diria que, no Brasil, em particular, parece que as pessoas que assistiram na Mostra tenderam a responder de forma muito positiva. Vi algumas pequenas críticas que o pessoal escreveu online ou no Twitter e é muito legal saber que fiz algo que, de certo modo é um filme muito nova-iorquino, mas que pode se conectar com pessoas fora de Nova York. E acho que isso é outro benefício de como lançamos o filme: ainda não está disponível em uma plataforma de streaming, então você tem que buscá-lo em um festival como este ou nos Estados Unidos, tem que pagar por ele. E você pode ver que, na maioria, são cinéfilos que assistiram ao filme; são pessoas que, geralmente, não dão cinco estrelas se não de um modo bem pensativo. Então, na maior parte, tem sido uma coisa muito legal, parece que faz as pessoas pensarem, pesquisarem alguns dos temas trazidos e minha esperança é esta de fazer as pessoas terem uma noção da Síndrome de Down e essa tendência de acreditar que mãe / barriga de aluguel seria mais simples do que é, então espero que deixe as pessoas cientes disso.



E o que você pode adiantar dos seus próximos projetos?


Tem um monte de coisas que estou em uma espécie de desenvolvimento inicial. Uma é que estou trabalhando em uma peça, que é uma adaptação da peça do [dramaturgo norueguês Henrik] Ibsen, Um Inimigo do Povo (1882), ambientada no início dos anos 1980, e estou olhando para certo paralelo entre a pandemia atual e o início da crise da AIDS. E olhando, de novo, nisso para a relação entre homens gays e mulheres heterossexuais. Sou muito uma pessoa do teatro também, é um grande interesse meu.

 

Conexões Nervosas


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Banner do filme norte-americano Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (Never Rarely Sometimes Always, 2020), de Eliza Hittman | Divulgação

> o filme norte-americano Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (Never Rarely Sometimes Always, 2020), de Eliza Hittman


Minha dica, para este ano, é esse filme da Eliza Hittman, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre. É outro longa que lida com o aborto, mas, mesmo além desse paralelo, é uma incrível obra cinematográfica e, realmente, é um dos meus filmes favoritos nos últimos anos. Então, eu recomendo muito. É um longa muito importante, mas acho que é um ótimo exemplo de um filme político que é poderoso por ser muito intimista e focado no personagem.





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