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  • Foto do escritorNayara Reynaud

CINE CEARÁ 2020 | Recordações das eternas crises latino-americanas

Atualizado: 8 de abr. de 2021


Entre os filmes latinos que integraram a competição de longas ibero-americana da 30ª edição do Cine Ceará, é possível enxergar na escolha da curadoria, em pelo menos três deles, uma ligação em meio a propostas tão distintas: as duradouras ou recorrentes crises socioeconômicas nos países da América Latina servindo de pano de fundo ou sendo o ponto de discussão dessas diferentes produções. É o que se observa no retrato intimista das cineastas cubanas exiladas Patricia Pérez Fernández e Heidi Hassan, no premiado A Meia Voz (2019); na observação de um microcosmo venezuelano no documentário Era Uma Vez na Venezuela (2020), de Anabel Rodríguez Ríos; e no contexto do coming of age argentino As Boas Intenções (2019), de Ana García Blaya, que são destacados logo abaixo. Fica aqui, aliás, o mea culpa por termos perdido a sessão virtual do chileno Branco no Branco (2019), longa de Théo Court que também estava na seleção, e por isso não integra essa cobertura do festival no NERVOS.

 

A Meia Voz (A Media Voz, 2019)


Heidi Hassan e Patricia Pérez Fernández em foto apresentada durante o documentário dirigido pelas duas cineastas cubanas, A Meia Voz (A Media Voz, 2019) | Foto: Divulgação (Cine Ceará)

Logo nas primeiras palavras ditas em A Meia Voz, a narração pessoal das amigas cineastas Patricia Pérez Fernández e Heidi Hassan busca o tom e se acomoda justamente naquele informado pelo título. O volume entre o normal e o sussurro confere a locução o nível de uma pretensa intimidade buscada pelas realizadores, que fazem deste trabalho conjunto um documentário confessional sobre a amizade de ambas, desde a infância e juventude em Cuba, passando pela quebra na relação causada pela partida de uma delas, até este momento em que ambas estão no mesmo continente, mas em partes diferentes da Europa, tentam diminuir a distância pelas situações, sentimentos e desejos que as unem. Premiado no ano passado no IDFA, o Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, e também o grande vencedor deste Cine Ceará 2020, a produção tem nesse aspecto personalista o seu chamariz para agradar subjetivamente parte da plateia e, igualmente, desagradar à outra, com um artesanato cinematográfico mais artificial do que, de fato, imaginado para a imersão em uma experiência particular.


O público vê imagens em VHS das duas ainda crianças, em 1988, entre outras passagens fragmentadas e/ou simbólicas, como a dos pés, para então, ser introduzido em uma narrativa mais cronológica da história de vida e amizade das duas. Os bastidores do último curta-metragem que as estudantes de cinema estavam rodando antes da separação são revelados e as vozes das duas revelam os sentimentos ambíguos daquele momento: Pérez Fernández acreditava que deveria ficar para fazer a mudança que tanto sonhavam para Cuba, mas Hassan já não aguentava mais e, na primeira oportunidade que teve de sair da ilha, em um festival justamente em Amsterdã, fugiu para a Espanha, por onde vagou por muito tempo até se estabelecer na provinciana cidade litorânea de Finisterre. Uma fuga que seria repetida, anos depois, pela amiga, quando já perdida a esperança, acompanhou o marido e foi morar em Genebra, na Suíça.


Ambas divagam sobre a sensação de sentir-se estrangeiras no país em que são imigrantes e a saudade do país natal ao qual estão impossibilitadas de retornar tão cedo por terem se exilado, ao mesmo tempo em que se mostram cientes de que há nisso também uma nostalgia de um lugar e um tempo que não existem mais. Outra camada acrescentada posteriormente é a da maternidade desejada, mas não alcançada por ambas, porém, é neste ponto em que um incômodo já latente se revela ainda maior. A proposição poética, sensorial e experimental, especialmente da parte de Patricia, mas também presente quando Heidi quer demonstrar sua “compulsão por filmar” rompendo barreiras éticas com o próprio companheiro, soa tão calculada que tira qualquer espontaneidade dos registros e relatos, sabotando a possibilidade de um envolvimento emocional maior com as personagens além da bem sucedida reflexão sobre questões universais abstratas, já que o verdadeiro íntimo das duas escapa ao espectador. Fica a impressão, portanto, de mais um documentário personalista, em que a narrativa e abordagem pessoais são apenas um dispositivo estético e não um estímulo narrativo.

 

A Meia Voz (A Media Voz, 2019)

Duração: 80 min | Classificação: Livre

Direção: Patricia Pérez Fernández e Heidi Hassan

Roteiro: Patricia Pérez Fernández e Heidi Hassan (veja + no site)

Produção: França, Suíça e Cuba

 

Era Uma Vez na Venezuela (Érase Una Vez en Venezuela, Congo Mirador, 2020)


A menina Yoaini Navarro em cena do documentário venezuelano Era Uma Vez na Venezuela (Érase Uma Vez em Venezuela, Congo Mirador, 2020), de Anabel Rodríguez Ríos | Foto: Divulgação (Cine Ceará / Créditos: John Márquez)

Selecionado pela Venezuela para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional no próximo ano, Era Uma Vez na Venezuela é um documentário que resume a encruzilhada em que se encontra o país com a grave crise sociopolítica que o assola nos últimos anos, através da observação das dinâmicas de uma única comunidade local, que enfrenta a ameaça de desaparecimento. Exibido nos festivais de Sundance e Toronto, o primeiro longa de Anabel Rodríguez Ríos foca sua lente na cidade aquática de Congo Mirador, localizada ao sul do Lago Maracaibo, que é a maior reserva petrolífera nacional. E é justamente o “grande tesouro da nação” que está colocando em risco a vila de pescadores, pois os dejetos da extração do petróleo estão se acumulando na água e provocando a sedimentação do lugarejo, cada vez mais cercado por lama e, consequentemente, vegetação, animais e doenças decorrentes disso.


Junto com a câmera, o espectador submerge no idílico local, que, com suas casas de palafitas, lembra muito a paisagem amazônica brasileira, justamente pela água, sendo apresentado a algumas figuras proeminentes da comunidade e representativas do impasse nacional no campo político-partidário, assim como vítimas dele enquanto principais pessoas afetadas pela ingerência e simultânea omissão estatal nas necessidades cotidianas da população. A diretora, que também roteiriza a produção ao lado de Sepp Brudermann, confere um protagonismo feminino a esta história, destacando Tamara, a líder local que é uma chavista ferrenha, mas tem dificuldades em obter a atenção dos governantes para seu povoado; Natalie, uma professora que enfrenta represálias por se opor ao governo de Nicolás Maduro e a falta de investimento para manter a escola do vilarejo funcionando; e a pequena Yoaini, que representa a nova geração sem muita perspectiva de crescer em um lugar que está desaparecendo e onde as meninas já casam aos 13 anos de idade. Dentro desse microcosmo, Rodríguez Ríos consegue obter um panorama da Venezuela, desde aspectos culturais muito presentes, a exemplo do concurso de beleza com as pequenas misses e as festas religiosas, até o quanto as eleições parlamentares de 2015 movimentaram a comunidade, com as costumeiras e corruptas compras de votos sendo registradas, assim como a festa pela vitória da oposição que dava aos moradores a esperança de mudança – mas os raios no horizonte daquela noite já prenunciavam que aquele seria o último respiro de democracia que o país veria desde então.


É certo que essa disposição das mulheres como representações mais amplas da questão venezuelana não permite ao filme adentrar nas particularidades delas. Ainda assim, o documentário ganha muito pelo tempo dedicado à observação da comunidade, que permite à cineasta não só ganhar intimidade com seus personagens, como observar, mesmo que silenciosamente, suas transformações dignas de um roteiro ficcional, vide o arco de desenvolvimento de Tamara na decepção crescente e aparente em suas expressões com o descaso de seus partidários, e da própria comunidade, cada vez mais chafurdadas em lamaçais. Junto com os citados relâmpagos, a imagem mais marcante e, cada vez mais constante, ao longo de Era Uma Vez na Venezuela é a de casa sendo levada embora, de barco, e vagando sobre a imensidão de água, sem horizonte de um novo lugar para ser chamada de lar.

 

Era Uma Vez na Venezuela (Érase Una Vez en Venezuela, Congo Mirador, 2020)

Duração: 99 min | Classificação: 12 anos

Direção: Anabel Rodríguez Ríos

Roteiro: Anabel Rodríguez Ríos e Sepp Brudermann (veja + no site)

Produção: Venezuela, Reino Unido, Áustria e Brasil

 

As Boas Intenções (Las Buenas Intenciones, 2019)


Amanda Minujín, Javier Drolas, Ezequiel Fontanela e Carmela Minujín em cena do filme argentino As Boas Intenções (Las Buenas Intenciones, 2019), de Ana García Blaya | Foto: Divulgação (Cine Ceará)

Antítese do conjunto de longas desta competição do Cine Ceará, o argentino As Boas Intenções foi um sopro de leveza dentre tantos temas tão densos nesta seleção. Até a forma como o primeiro longa como diretora de Ana García Blaya foge, intencionalmente ou não, do conflito, embora ele ainda permaneça adormecido na trama e também no contexto da Argentina nos anos 1990, difere da busca por confronto tão em voga na produção cinematográfica atual. É claro que isso é sentido, especialmente, quando se olha toda a obra em retrospecto, mas o clima familiar de nostalgia criado pela cineasta consegue ser bem eficiente e suficientemente prazeroso durante a projeção.


Partindo de suas experiências pessoais, a diretora e roteirista resgata não só a narrativa autobiográfica, como também registros em VHS de sua infância e pré-adolescência mescladas às filmagens texturizadas, em uma clara homenagem ao pai, mas também ciente do carinho materno. Isso porque a trama acompanha a rotina de Amanda (Amanda Minujín) e seus irmãos mais novos Ezequiel Fontanela e Carmela Minujín, filhos de pais separados, em particular, nos momentos em que ficam no apartamento de Gustavo (Javier Drolas), um pai amoroso, mas não necessariamente muito responsável. Dono de uma loja de CD’s não muito lucrativa e de uma banda de rock sem sucesso, a vida desregrada dele é um terror para a ex e mãe das crianças, Cecília (Jazmín Stuart), mas não para as próprias que aproveitam ao máximo o tempo de pizzas, brincadeiras e música.


Os conflitos surgem timidamente quando a mãe e seu atual marido (Juan Minujín) decidem ir para o Paraguai, pois a crise econômica na Argentina, entre outras coisas, torna insustentável manter as crianças na escola. No entanto, a protagonista fica em dúvida entre seguir a sua família e manter-se ao lado dos irmãos ou permanecer com o pai que ficaria sozinho, mas tendo de acumular responsabilidades para cuidar dos dois. Sem grandes arroubos e fugindo de algumas perspectivas importantes para o desenvolvimento da narrativa, Amanda chega a sua decisão no final, e mesmo que tais detalhes e certa complacência com os personagens possam ser discutidas, As Boas Intenções ficam em destaque na recordação noventista gerada com sucesso no público que cresceu naqueles tempos.

 

As Boas Intenções (Las Buenas Intenciones, 2019)

Duração: 86 min | Classificação: Livre

Direção: Ana García Blaya

Roteiro: Ana García Blaya

Elenco: Javier Drolas, Amanda Minujín, Ezequiel Fontanela, Carmela Minujín, Sebastián Arzeno, Jazmín Stuart e Juan Minujín (veja + no site)

Produção: Argentina





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