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Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2019 | Dia 1 – Resistindo às opressões

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Mostra SP 2019 - Dia 1: o filme argelino Papicha (2019) | o norte-americano A Maratona de Brittany (2019) | o macedônio Honeyland (2019) | o peruano Mataindios (2018) | Fotos: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Já no seu primeiro dia, a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo é marcada pela resistência feminina a diversos tipos de opressões nos filmes Papicha (2019), candidato argelino para a próxima corrida do Oscar, bem como no representante macedônio, o documentário Honeyland (2019), premiado em Sundance igual à comédia dramática A Maratona de Brittany (2019). Em um registro próximo e, ao mesmo tempo oposto, ao longa europeu, há também o peruano Mataindios (2018) entre os destaques do início desta maratona cinéfila.

 

(Papicha, 2019)

Amira Hilda Douaouda, Zahra Manel Doumandji, Shirine Boutella e Lyna Khoudri em cena do filme argelino Papicha (2019), de Mounia Meddour | Foto: Divulgação (Pandora Filmes)

Exibido na mostra Un Certain Regard do último Festival de Cannes, o primeiro longa da argelina Mounia Meddour tem uma dose autobiográfica de como foi a sua juventude e de tantas outras mulheres no seu país natal, duas décadas atrás. A então garota que era uma universitária no final dos anos 90 tal qual sua protagonista Nedjma (Lyna Khoudri), precisou mudar com a família para a França, aos 18 anos, já que a repressão e ameaças de morte aos intelectuais – seu pai era um cineasta – se intensificou durante a Guerra Civil da Argélia, que durou de 1991 a 2002, embora os conflitos não tenham cessado totalmente na região. Apesar da diretora colocar o dedo em uma ferida que sua nação prefere esconder, Papicha (2019) foi escolhido para ser o representante argelino para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar.

O potencial da produção está em como uma história tão particularmente regional se comunica com as vivências femininas universais, apesar das diferenças em seus dramas semelhantes. Os grupos rebeldes islâmicos apoiados no fundamentalismo e com apoio de parte da população insatisfeita com o governo desejam impor as rígidas leis da sharia que confrontam justamente a liberdade que Nedjma e suas colegas de faculdade buscam ao procurarem ali o estudo e uma vida fora da casa dos pais. A estudante ainda soa mais rebelde neste ambiente conservador por fugir junto com sua melhor amiga Wassila (Shirine Boutella), de vez em quando do campus, para vender os vestidos que cria, ou indiretamente pelo seu sentimento contrário à juventude da época de querer fugir do conflito, ao não desejar uma vida melhor apenas para si, mas fazer uma vida melhor em seu país.

A tentativa de indiferença ao que está ao seu redor, porém, é atrapalhada constantemente por esta pressão exterior, que se manifesta desde a primeira sequência no táxi. A tensão é sempre iminente e, gradualmente, se torna crescente com a fisicalidade dos símbolos por Meddour no microcosmo da universidade, indo desde os cartazes intimidatórios aos muros repressores. Conforme a própria diretora afirma, seu roteiro comprime a evolução de uma repressão que levou anos em apenas algumas semanas, o que potencializa alguns clichês da narrativa, embora, nem por isso sejam menos verdadeiros para a representação deste contexto.

A direção da cineasta argelina vai da sensibilidade e potência da cena da tragédia familiar que marca a protagonista à drenagem dessa eficiência em um flashback desnecessário que ao invés de reforçar, mina a emoção imediata ao ponto crítico do clímax. No entanto, essa derrapada final não tira a marca criada por Mounia ao filmar, com uma intimidade ímpar nos planos fechados, o cuidado dessas mulheres com o corpo das outras, esteja ele vivo ou morto, se opondo à tentativa dos fundamentalistas de cobri-los ao impor o hijab, conhecido popularmente aqui como burca. E nenhuma diferença para o nosso cenário, onde a culpa é transferida a Ela pelas abordagens insistentes e machistas que Eles fazem, sintetizadas no “elogio” à garota bonita que dá nome à produção e que Nedjma escuta direto ao andar na rua.

Por isso, o melhor caminho tomado pela roteirista em sua obra é pegar justamente a moda como forma de resistência direta a este pensamento conservador. Não só a liberdade feminina de se vestir como quiser funciona como uma transgressão, mas também a relação que a protagonista estabelece com seus esboços e tecidos é colocada como uma reação imediata à violência em seu entorno. Contudo, tal qual o belo e trágico filme turco Cinco Graças (2015), a amizade e sentimento de irmandade que emana entre essas mulheres de diferentes idades e origens, mesmo em um ambiente cada vez mais sufocante a elas, é a melhor resposta que Papicha poderia dar a tudo isso.

 

Duração: 106 min | Classificação: 16 anos

Direção: Mounia Meddour

Roteiro: Mounia Meddour

Elenco: Lyna Khoudri, Shirine Boutella, Amira Hilda Douaouda, Yasin Houicha, Zahra Manel Doumandji, Marwan Zeghbib, Aida Ghechoud, Meriem Medjkrane, Samir El Hakim, Amine Mentseur, Khaled Benaïssa e Abderrahmane Boudia (veja + no IMDb)

Produção: França, Argélia, Bélgica e Catar

Distribuição: Pandora Filmes

> Petra Belas Artes 1 Villa-Lobos – 17/10/2019, quinta às 21h45

> Espaço Itaú Frei Caneca 3 – 19/10/2019, sábado às 19h20

> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 22/10/2019, terça às 17h30

> Espaço Itaú Augusta 1 – 26/10/2019, sábado às 14h00

> Cinesala – 28/10/2019, segunda às 19h45

 

(Honeyland, 2019)

A apicultora Hatidze Muratova em cena do filme macedônio Honeyland (2019), documentário de Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska | Foto: Divulgação (ABMIC)

O equilíbrio das relações humanas com seus iguais e com o meio ambiente tal qual a sua fragilidade iminente movem o retrato intimista e universal de Honeyland (2019), filme que é o candidato da Macedônia do Norte na disputa por uma vaga no Oscar. Em seu primeiro longa, a dupla Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska conquistou nada menos do que o Grande Prêmio do Júri da seção World Cinema de documentários no Festival de Sundance. A produção também recebeu outra menção especial do júri pelo seu impacto e foi agraciada pela fotografia de Fejmi Daut e Samir Ljuma, que mergulha no cotidiano da solitária apicultora Hatidze Muratova, desde a busca dela por colmeias nas montanhas da bela paisagem dos Balcãs captada por suas lentes.

Os diretores passaram três anos filmando esta mulher que pratica uma cultura e criação de abelhas de modo tradicional no interior macedônio, sob o lema de pegar apenas a metade do mel a fim de preservar o resto para os animais e continuar colhendo no futuro, indo ocasionalmente vender o seu produto natural na capital Escópia (Skopje). Se ela cuida das colmeias sem medo, algumas ferroadas surgem na relação, por vezes, conflituosa e, em outras, amorosa com sua mãe Nazife, que se encontra acamada e quase cega aos 85 anos. Sua pacata rotina, porém, é afetada pela chegada de uma numerosa e barulhenta família turca – ela tem a mesma origem, como boa parte da comunidade local – que se instala ao seu lado, embora Hatidze se afeiçoe logo ao casal Hussein e Ljutvie Sam e, especialmente, aos seus filhos.

Mas é a partir de, então, que o documentário observacional ganha uma narrativa de contornos mais ficcionais na dinâmica que se estabelece entre sua protagonista e seus vizinhos. Hussein passa a copiá-la e a experiente apicultora até tenta ensiná-lo sobre o cultivo, mas se estabelece ali um parasitismo predatório que destrói a natureza, seja a do meio ambiente ou a humana, que antes havia ali. Mais do que opor o modo sustentável dela frente ao exploratório dos recém-chegados, existe uma ruptura do senso de coletividade tão bem exemplificado pela vida das próprias abelhas em um paralelo bem pontuado pela montagem de Atanas Georgiev.

De qualquer maneira, por mais que seja fácil criar antipatia por Hussein e sua prole, Stefanov e Kotevska evitam a sua vilanização. O desconhecimento daquele pai de família é latente e, sem saber o que está fazendo – vide as crianças expostas às picadas –, quem o guia é a necessidade somada à ganância externa do comprador para um caminho (auto)destrutivo. Trata-se de um estudo de um microcosmo que amplifica problemas macro, como os de diversos apicultores no Brasil, por exemplo, que sofrem com os agrotóxicos utilizados na agricultura matando consideravelmente a população de abelhas, prejudicando não só o seu trabalho, mas a manutenção dos ecossistemas. No entanto, a intimidade conquistada pelos cineastas e transmitida através do filme é mais elucidativa do qualquer exposição didática sobre o tema.

Essa sensação é obtida através da observação, no estilo “mosca na parede” do cinema direto de Grey Gardens (1975). Contudo, a dupla, já ciente que o público percebe a ficcionalização natural dos personagens sob o efeito de uma câmera, tem o desejo declarado de borrar esses limites, como fica evidente em elementos como a recorrência de You Are So Beautiful no rádio. O efeito dessa combinação é a empatia do público pela jornada da heroína solitária em questão, mais ainda quando Hatidze passa a reavaliar a sua própria vida no terceiro ato, sem perder sua essência e ética.

 

Duração: 85 min | Classificação: 12 anos

Direção: Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska

Roteiro: Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska

Elenco: Hatidze Muratova, Nazife Muratova, Hussein Sam e Ljutvie Sam (veja + no IMDb)

Produção: Macedônia do Norte

> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 17/10/2019, quinta às 18h10

> Cinearte 1 – 19/10/2019, sábado às 14h30

> Cinesala – 21/10/2019, segunda às 17h45

> CineSesc – 23/10/2019, quarta às 22h15

> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 26/10/2019, sábado às 20h15

 

(Mataindios, 2018)

Cena do filme peruano Mataindios (2018), de de Oscar Sánchez Saldaña e Robert Julca Motta | Foto: Divulgação (ABMIC)

Se vistos na sequência no meio da maratona da Mostra, é curioso como, em um comparativo natural, o peruano Mataindios (2018) funciona em uma chave totalmente inversa do documentário macedônio com ritmo de narrativa ficcional Honeyland (2019). O primeiro longa de Oscar Sánchez Saldaña e Robert Julca Motta é uma ficção apresentada sob a forma documental na observação da rotina ritualística de uma comunidade andina – no caso, filmado no distrito de Huangáscar onde o primeiro nasceu. O grande problema do filme premiado no Festival de Cine de Lima é a sua dependência do conhecimento prévio ou posterior do espectador sobre a sua sinopse e temas locais para compreendê-lo.

A ideia é mostrar como a religiosidade serve como escape para a dor do luto pelos parentes e conhecidos desaparecidos. No entanto, a narrativa segue lentamente mostrando os detalhes da preparação de um culto ao padroeiro, em capítulos demarcados: depois do Prólogo, vem as Flores para o Padroeiro, seguido do referente à Capa, à Música e à Missa, além do Epílogo. O público acompanha esse passo a passo de costumes que reúnem tradições andinas ao catolicismo em uma paleta cinzenta que acentua este aspecto fúnebre, mas sem saber o porquê dessa celebração mortuária.

Para a plateia leiga, a razão por trás disso somente se revela bem ao final, com a chegada do padre e a realização da cerimônia em si no quarto capítulo. Se é difícil saber se a data na cruz – 24 de julho de 1987 – está ligada a algum massacre ou evento trágico específico, conhecendo o fato de que o Peru passou por período muito turbulento nos anos 80 e 90, é possível apontar que o tema transversal aqui são os conflitos internos entre grupos terroristas e o governo com políticas de abusos também contra a população durante essas décadas. Contudo, o que ressoa mais é a força da imagem, especialmente no epílogo, quando, após o esclarecimento de que o tal padroeiro é São Tiago, que na Espanha ganhou a devoção como “Matamouros” durante as Cruzadas e foi “exportado” para a América Ibérica para a catequização da população nativo sob o nome de “Mataindios”, as crianças exercem uma espécie de expurgação desse símbolo da Igreja Católica no país, menos em um sentido religioso e mais como ruptura do colonialismo.

A força de sua última impressão, porém, não é suficiente para apagar a avaliação negativa de uma obra que se sustenta hesitantemente mais nas suas interessantes ideias e importantes temas do que realmente como um filme por si só.

 

Duração: 76 min | Classificação: 14 anos

Direção: Oscar Sánchez Saldaña e Robert Julca Motta

Roteiro: Oscar Sánchez Saldaña e Robert Julca Motta

Elenco: Carlos Solano, Nataly Aures, Glicerio Reynoso, José Vivas e Faustina Sánchez (veja + no IMDb)

Produção: Peru

> Espaço Itaú Frei Caneca 5 – 17/10/2019, quinta às 18h50

> Espaço Itaú Frei Caneca 4 – 18/10/2019, sexta às 20h00

> Circuito Spcine Olido – 29/10/2019, terça às 17h00

> Circuito Spcine Lima Barreto / CCSP – 30/10/2019, quarta às 15h

 

(Brittany Runs a Marathon, 2019)

Jillian Bell em cena do filme A Maratona de Brittany (2019) | Foto: Divulgação (ABMIC)

Paul Downs Colaizzo, um dramaturgo da off-Broadway, como é conhecido o circuito de teatro alternativo de Nova York, se aventura pela primeira vez no cinema com A Maratona de Brittany (2019), um filme em que se inspira livremente na história da amiga de mesmo nome, cuja foto surge nos créditos. A Brittany da trama ficcional, interpretada por Jillian Bell, não pensa em desafios tão gigantescos, seja em uma prova esportiva ou qualquer outro aspecto da vida que vai levando sem grandes aspirações, aparentemente. A descoberta de um problema de saúde, porém, provoca uma crise existencial nesta jovem de 27 anos, já que a sua pressão arterial alterada não diz respeito apenas ao seu peso acima do IMC, mas ao seu estilo de vida.

Se a corrida surge como uma obrigação na opção mais barata para se exercitar e seguir as recomendações médicas, a metáfora vem como desafio ideal para motivá-la, bem como uma metáfora ideal para o longa abordar a sua transformação pessoal. Com Bell finalmente alçada ao protagonismo, depois de várias e boas participações em comédias como Anjos da Lei 2 (2014) e A Noite É Delas (2017), a personagem encontra no texto e na sua interpretação a desconstrução do estereótipo comum da “gordinha engraçada”. Brittany e o filme usam o humor como escape que esconde as inseguranças dessa mulher que, somente aos poucos, revela seus sonhos soterrados sob a rotina nova-iorquina e um comodismo natural que acomete as pessoas quando a vida leva para caminhos diferentes do inicialmente desejado.

Trata-se de uma protagonista que foge do óbvio e desafia o público tomando diversas atitudes errôneas, no entanto, capaz de gerar empatia justamente por se autossabotar não somente por orgulho, mas também por medo. Neste sentido, mesmo que a trama se encaminhe para situações inusitadas como a dinâmica que se estabelece entre ela e outro cuidador pet, Jern (Utkarsh Ambudkar), há algo realístico na forma como se desenrola essa transformação da personagem: não como uma corrida linear, mas uma caminhada em que se dá alguns passos para frente e volta-se algumas casas para trás até que se complete a maratona. No meio dessa trajetória, o roteiro ainda acha uma brecha para Brittany, na descoberta de novas amizades em Catherine (Michaela Watkins) e Seth (Micah Stock), reavaliar as relações tóxicas que estabelece, sendo a vítima ou sendo o algoz.

A direção de Colaizzo acompanha essa peregrinação dela oscilando seu tom entre uma típica comédia romântica na Big Apple, especialmente as produzidas pela Netflix, apesar de se tratar de uma produção original da Amazon, e um estilo mumblecore em sua parcela de dramédia e nos planos mais iniciais, além de abraçar de vez o discurso motivacional em seu último ato. É uma dicotomia que surge também na trilha sonora, que traz uma seleção pop e que vai de encontro com a ideia de empoderamento e autoconfiança com o próprio corpo do trabalho da cantora Lizzo, com Good as Hell, e uma escolha fora da curva no discreto uso da ótima e também certeira aqui Something On Your Mind, da cantora de folk blues Karen Dalton. Se a proposta funciona na parte musical, nem sempre acerta quanto ao ritmo da narrativa enquanto o cineasta estreante se desfaz de clichês e se aproveita de outros, mas é suficientemente eficiente para render ao filme o Prêmio da Audiência no Festival de Sundance.

 

Duração: 104 min | Classificação: 10 anos

Direção: Paul Downs Colaizzo

Roteiro: Paul Downs Colaizzo

Elenco: Jillian Bell, Michaela Watkins, Utkarsh Ambudkar, Micah Stock, Alice Lee, Lil Rel Howery e Kate Arrington (veja + no IMDb)

Produção: Estados Unidos

Distribuição: Diamond Films

> Cinesala – 17/10/2019, quinta às 15h30

> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 18/10/2019, sexta às 19h30

> CineSesc – 21/10/2019, segunda às 18h00

> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 23/10/2019, segunda às 18h00

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