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  • Foto do escritorNayara Reynaud

PICO DA NEBLINA | Jogando a fumaça pro alto do debate

Atualizado: 27 de fev. de 2021


Luis Navarro e Henrique Santana em cena da série brasileira Pico da Neblina (2019) | Foto: Divulgação (HBO Brasil / HBO Latin America)

Depois de um amigo de faculdade levantar a ideia de uma história em que se imaginasse a maconha sendo legalizada no Brasil, Quico Meirelles pensou que isso poderia render uma série e viabilizou a produção com o seu pai, ninguém menos do que o cineasta Fernando Meirelles, e as produtoras da O2 Filmes. No entanto, o jovem ficou preocupado quando estavam desenvolvendo os roteiros em 2015 e a discussão sobre a legalização da erva, mais para fins medicinais do que recreativos, avançava. O medo de que ficasse datado logo se dissipou com os rumos que a política e a sociedade brasileiras tomaram nos últimos anos, tanto que, “agora, parece impossível o exercício de futurologia” de Pico da Neblina (2019), afirma o diretor.

A equipe e o elenco estiveram presentes em São Paulo, na quarta retrasada (24), comentando na coletiva de imprensa sobre o processo de realização e os temas da atração que estreia na HBO, simultaneamente em 70 países neste domingo, 4 de agosto, às 21h. “Nosso compromisso com a produção cultural brasileira começou quando nem existia isso”, atestou Roberto Rios, vice-presidente de produções originais da HBO Latin America, quando questionado sobre a atual instabilidade da permanência da Ancine e das leis de incentivo para o audiovisual, explicando que este último lançamento conta com 100% de recursos próprios da HBO, enquanto outros projetos nacionais contam com o auxílio do fomento do Fundo Setorial do Audiovisual – o executivo do braço regional do canal ainda defendeu que eles criaram este conceito de “original” e revelou que, atualmente, recebem cerca de 250 projetos na América Latina, por ano. “As drogas de Brasília não afetam as drogas da série”, brincou Fernando, que atua como produtor e diretor de alguns episódios.

A polêmica temática dominou as perguntas dos jornalistas, mas o filho aproveitou para frisar que Pico da Neblina não se posiciona claramente, nem que sim nem que não, sobre a questão da legalização da maconha; apenas “aviva a conversa através das opiniões de personagens”, o que, em si, já é importante. Os modelos de legalização do Uruguai, com uma estrutura mais estatal, dos Estados Unidos, mais de mercado – onde, na Califórnia, os pequenos empreendedores estão perdendo espaço para as grandes empresas que entraram no ramo, exemplifica Quico –, e em países europeus serviram de estudo para ele e os roteiristas, mas o realizador acredita que o Brasil adotaria um modelo mais parecido com o norte-americano, com todas as peculiaridades que teria aqui, pelo fato do comércio ilegal da erva estar dentro do tráfico no país. Ele ainda ressaltou a pesquisa feita por jornalistas e a consulta com especialistas sobre esses detalhes técnicos e de conjuntura social para conjecturar sobre a situação.

“Isso é mais um ponto de partida do que a discussão”, declarou o diretor, explicando que Biriba, vivido por Luis Navarro, e todos os outros personagens são transformados através dessa mudança de legislação. “A série não é sobre a maconha, é sobre essas pessoas”, ressaltou Henrique Santana, intérprete do amigo do protagonista e traficante Salim, falando da importância da produção em mostrar este outro mundo que ele, habitante de Ermelino Matarazzo, bairro da zona leste paulistana onde é chamado de “artista”, conhece pela vivência e não por estereótipos. Neste sentido, Quico até explicou a escolha pelo retrato desse outro lado de São Paulo, do cotidiano da classe média baixa e não das favelas, que o pai levou às telas do cinema no cenário carioca de Cidade de Deus (2002) e se tornou um filão muito explorado na filmografia nacional.

Do outro lado, está Vini, que se oferece como sócio do Biriba no projeto de uma loja especializada, mas apesar do seu berço abastado, o rapaz acumula sucessivos fracassos em seus empreendimentos anteriores. “As pessoas têm que gostar dele”, explicou o seu intérprete Daniel Furlan, que comentou sobre a visão equivocada do personagem, quase como um “rapper de condomínio”. Segundo o diretor, o ator “deu uma humanidade para o cara, que podia ser só um filhinho de papai”.

Por isso, para Luís Navarro, “a maconha é uma grande isca” para atrair o público a uma história que não vilaniza, mas sim humaniza seus personagens. O ator que interpreta o Biriba, jovem que deseja legalizar o seu negócio com a erva, também destacou o retrato familiar de um clã negro estar no centro da trama, já que isso fica sempre relegado aos figurantes, enquanto Leilah Moreno, que faz a sua irmã Kelly, ressaltou a representatividade de ser uma “família feminina” que rodeia o protagonista, algo próximo da realidade da própria atriz e cantora. Além de elogiar a presença de Teca Pereira no papel da mãe da dupla, Fernando também revelou que um consultor ligado ao movimento negro auxiliou na revisão dos roteiros, escritos por “um monte de playboy”, e a exigência interna de que “cada departamento da produção tivesse um negro ou mestiço” mudou a configuração da própria produtora O2 – ele ainda adiantou a entrada de uma atriz trans dentro dos próximos episódios.

Os atores Leilah Moreno, Henrique Santana e Luis Navarro, o produtor-executivo da HBO Roberto Rios, o diretor Quico Meirelles, o ator Daniel Furlan e o diretor e produtor Fernando Meirelles na coletiva de imprensa da série Pico da Neblina (2019), realizada em São Paulo na semana passada (24) | Foto: Nayara Reynaud

Os atores Leilah Moreno, Henrique Santana e Luis Navarro, o produtor-executivo da HBO Roberto Rios, o diretor Quico Meirelles, o ator Daniel Furlan e o diretor e produtor Fernando Meirelles na coletiva de imprensa da série Pico da Neblina (2019), realizada em São Paulo na semana passada (24) | Foto: Nayara Reynaud

Efeitos colaterais

A habilidade do protagonista em tratar a maconha, vendendo-a em seus diversos tipos é o cartão de visitas da série Pico da Neblina. A introdução serve narrativamente a dois propósitos, sendo um deles mais efetivo: a apresentação de Biriba como um tipo diferente da figura a qual o senso comum define um traficante, por causa seu método particular de produção e comercialização fora do esquema do tráfico de drogas local. O outro é de funcionar como um guia básico para o espectador leigo adentrar neste mundo, porém, a rapidez prejudica um pouco essa elucidação, assim como os diálogos trazendo o falar periférico paulistano e as gírias relativas à erva e outros entorpecentes provavelmente restringirão o público da produção – o próprio Quico Meirelles brincou que seus “avós vão precisar de legenda” –, além desses tempos polarizados em que as pessoas não estão abertas ao diálogo.

Nesta sequência inicial, aliás, pode se ouvir O Guarani em som de reggae na trilha sonora, bem semelhante à versão em ska da Orquestra Brasileira de Música Jamaicana para a composição operística de Carlos Gomes que se tornou o indefectível tema de abertura do noticiário radiofônico estatal e obrigatório A Voz do Brasil. Marcando a decisão política que legaliza a maconha, a escolha artística é só uma das várias tentativas do diretor em aliar a estética ao tema proposto, a exemplo do desfoque alucinógeno na fotografia em determinados momentos ou a montagem reforçando isso em certo descompasso temporal. Às vezes, o movimento dado pela obra é inventivo, outras, acaba reforçando certos estereótipos de uma temática a qual oferece opiniões tímidas pela boca dos personagens neste primeiro episódio.

No roteiro assinado por Cauê Laratta, Chico Mattoso, Marcelo Starobinas e Mariana Trench, o mais interessante é a abordagem do peso racial, de classe e geográfico na trajetória de protagonista e os que estão ao seu redor. O amigo Samir, que tem na interpretação de Henrique Santana o destaque desta prévia, deseja sair dali quando conseguir bastante dinheiro com a sua promoção no esquema do tráfico, mas a saída desejada por Biriba é mais metafórica: ele quer fugir da sombra do pai, que era traficante, e de um caminho que parece imperativo nas periferias, mas certas armadilhas já lhe pegam e questionam a sua moral no último ato deste piloto. Não é um início arrebatador, mas instigante o suficiente para o público querer saber quais serão os rumos dos personagens e o tratamento da série a eles e ao assunto.

 

Pico da Neblina (2019)

Série ficcional (estreia) | 1ª temporada: 10 episódios, a partir de 4 de agosto de 2019

Canal: HBO | Exibição: domingos, às 21h

Horário alternativo: domingo, 04/08, às 22h (reprise na sequência, só nesta estreia) | segundas, às 21h na HBO Plus | terças, na faixa das 2h30 e das 22h às 23h na HBO Plus; e na faixa das 16h às 17h na HBO (veja estes e outros horários exatos no site)

Direção Geral: Quico Meirelles | Direção: Quico Meirelles, Fernando Meirelles, Luis Carone e Rodrigo Pesavento

Roteiro: Cauê Laratta, Chico Mattoso, Marcelo Starobinas e Mariana Trench

Elenco: Luis Navarro, Daniel Furlan, Henrique Santana, Leilah Moreno, Teca Pereira, Bruno Giordano, Sabrina Petraglia e Maria Zilda Bethlem

Produção: Luis F. Peraza, Roberto Rios e Eduardo Zaca (HBO Latin America); Andrea Barata Ribeiro, Bel Berlinck e Fernando Meirelles (O2 Filmes)

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