Nayara Reynaud
O QUEBRA-CABEÇA | A revolução de uma dona de casa
Atualizado: 17 de fev. de 2021
Assim como o pedaço que desaparece de um prato quebrado na abertura de O Quebra-Cabeça (2018), há uma peça que falta na vida da dona de casa interpretada por Kelly Macdonald no filme de Marc Turtletaub. Remake do benquisto longa argentino Rompecabezas (2009), de Natalia Smirnoff, a produção exibida no Festival de Sundance, no início do ano, estabelece através de algo tão corriqueiro como jogos de quebra-cabeça a ferramenta para romper o cotidiano dessa mulher que sempre viveu para os outros, assumindo de modo exemplar o papel de esposa e mãe, e a analogia da protagonista que busca os seus desejos e propósitos perdidos ao longo dos anos.
No roteiro adaptado pela estreante Polly Mann e o experiente Oren Moverman, de Não Estou Lá (2007), a personagem central ganha o nome de Agnes, é filha de imigrantes húngaros e mora em uma comunidade suburbana e muito religiosa em Bridgeport, no Connecticut, com o marido mecânico Louie (David Denman) e dois filhos adolescentes, o relegado Ziggy (Bubba Weiler) e o preferido do pai, Gabe (Austin Abrams). O longa inicia com uma festa de aniversário que a mulher dedicada organiza, sem aproveitar ou alguém sociabilizar com ela, sendo que a data é em sua comemoração. Mas é de um dos presentes, dado pela tia Emily (Audrie Neenan), que ela descobre um talento desconhecido ao completar rápido um quebra-cabeça de mil peças, que a fazem pegar um trem para Nova York, comprar novos jogos do tipo, se tornar parceira de um campeão – Robert (Irrfan Khan), um inventor de uma criação só, que aos poucos volta a ter inspiração ao conhece-la – para participar de uma competição e descobre um mundo novo.
Em seu segundo longa como diretor – o primeiro de Turtletaub na função foi Gods Behaving Badly (2013) –, o produtor de obras importantes do cenário indie norte-americano, como Pequena Miss Sunshine (2006), Distante nós Vamos (2009) e Loving (2016), evidencia a sensação de isolamento da protagonista em alguns planos, seja nos close ups, posicionamentos ou alterações de profundidades de campo. Com a trama se passando boa parte durante o período da quaresma, salvo suas devidas proporções, Agnes não passa esses simbólicos 40 dias no deserto, mas leva tal tempo para se reconectar consigo mesma. Aliás, esse é um dos vários símbolos e metáforas religiosas que ecoam durante a narrativa, a exemplo dos mosaicos na igreja traçando um paralelo visual direto com os quebra-cabeças.
Contudo, o mais interessante do filme é que este ambiente limitador para a personagem não é pintado em cores fortes que tornariam tudo simplista: Louie não é um marido abusivo, escroto ou encostado, mas tão somente um homem fiel e trabalhador que, educado desde a infância em uma cultura machista, a reproduz pelo simples e vital fato de não enxergar para a mulher como uma pessoa além de alguém que está sempre ali para lhes servir. De certo modo, esta falha no olhar também é comum no cinema, com essas figuras femininas sendo relegadas ao papel de suporte dos heroicos protagonistas masculinos, como bem ressaltou Peter Debruge em sua crítica na Variety ao comentar sobre as superproduções de super-heróis, mas que pode ser observado em longas dos mais diversos gêneros. Basta ver o quanto uma atriz do talento da escocesa Kelly Macdonald precisava de um papel que desse tal espaço para seu trabalho meticuloso e silencioso aqui, depois de tantas boas coadjuvantes.
Por isso, por mais que a figura total deste quebra-cabeça seja conhecida enquanto drama, ou na crise de meia-idade dessa mulher, ou no romance que se vislumbra entre ela e Robert, cada peça é trabalhada com tanta delicadeza e camadas pelo diretor e pelo elenco, que a obra ganha o público através da identificação com a pequena revolução doméstica e/ou pessoal ganhando forma na tela.
O Quebra-Cabeça (Puzzle, 2018)
Duração: 103 min | Classificação: 12 anos
Direção: Marc Turtletaub
Roteiro: Polly Mann e Oren Moverman, baseado no filme “Rompecabezas”, de Natalia Smirnoff
Elenco: Kelly Macdonald, Irrfan Khan, David Denman, Bubba Weiler, Austin Abrams, Liv Hewson e Audrie Neenan (veja + no IMDb)
Distribuição: Sony Pictures
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