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FERRUGEM | A humilhação e a culpa viralizadas

Atualizado: 28 de dez. de 2020


Tifanny Dopke em cena do filme Ferrugem (2018) | Foto: Divulgação (Olhar Distribuição)

Com dois terços da trama passados em uma praia paranaense nublada, a maresia é só uma alegoria para a humilhação e a culpa que corroem os dois protagonistas de Ferrugem (2018), novo filme de Aly Muritiba, que levou três Kikitos no último sábado (25), no Festival de Gramado, como Melhor Filme, Roteiro – escrito por ele e Jessica Candal – e Som – cujo desenho é assinado por Alexandre Rogoski. Com cada um dos eixos guiando, respectivamente, a primeira e a segunda partes da produção, a história traz novamente a imagem como catalizadora do cinema ficcional do baiano radicado em Curitiba. O poder do registro está presente no premiado Para Minha Amada Morta (2015), o primeiro de uma trilogia que aborda “este universo da imagem, enquanto construtor de identidade, mas também enquanto elemento de desconstrução, de desfalecimento de crenças” e que se completará com o futuro longa Deserto Particular, explicou o cineasta durante a coletiva de imprensa do recente trabalho, em São Paulo, na última segunda (27).

O estudante de cinema que fazia jornada tripla, também como agente penitenciário e professor de História, usou o conhecimento carcerário em seus primeiros documentários e agora traz a experiência da sala de aula para Ferrugem, que teve como origem a preocupação dele como pai sobre em qual momento o seu filho poderia ter seu próprio celular. Muritiba caracteriza este admirável mundo novo logo na abertura do filme, quando o fascínio digital está na palma da mão de seus personagens, estudantes em uma excursão ao aquário. Porém, não demora muito para que as facilidades de propagação das informações no ambiente virtual seja utilizada para fins escusos e perversos, pois se a prática do bullying é muito mais antiga do que o uso de tal termo, novidade é a impossível contenção do cyberbullying, levando a exposição pessoal da vítima para além dos muros da escola.

É do céu do flerte com o novo crush Renet (Giovanni de Lorenzi) através das curtidas ao inferno do vazamento e viralização de um vídeo íntimo seu com o ex-namorado – que assim como outra gravação sensível não é explorada pelo diretor, para não contradizer seu próprio discurso sobre o tema – que é traçada a trajetória da adolescente Tati ao longo de todo o primeiro ato do longa. A estreante Tifanny Dopke, que filmou com os mesmos 16 anos de sua protagonista, afirmou aos jornalistas que viver a Tati fez ela “ver o que a mulher passa”, notando mais facilmente atitudes negativas ao seu redor. Sem o mesmo tempo para discernir que a sua intérprete, a jovem fictícia que representa tantas outras que passam pelo mesmo drama toma uma atitude drástica – que, como Aly lembrou, foi surpreendente para o público norte-americano no Festival de Sundance, onde a obra fez a sua estreia mundial, por eles estarem já acostumados com certo tipo de tragédia – que leva a história do ambiente escolar para a tal praia citada no início.

Tifanny Dopke e Giovanni de Lorenzi em cena do filme Ferrugem (2018) | Foto? Divulgação (Olhar Distribuição)

A narrativa, então, toma Renet como protagonista desta segunda parte, que engloba o segundo e o terceiro atos e quase os transformam em outro filme, no qual o garoto silenciosamente sofre as grandes consequências das pequenas ações tomadas no primeiro momento. Se antes não são revelados os rostos dos pais de Tati, como uma forma de representar este isolamento sentido pelo adolescente e pôr o público adulto na pele deles, os progenitores do rapaz ganham destaque a partir daí, com o professor da escola, tão quieto quanto o filho, Davi (um ótimo Enrique Diaz) e a mãe Raquel (Clarissa Kiste também precisa), que ele rejeita por motivos que são pincelados no decorrer da trama. A história familiar pregressa vem tanto contribuir para a construção do jovem tímido que, apesar de apaixonado pela colega, passou a rejeitá-la depois do vídeo vazado quanto o machismo é tão corrosivo quanto os outros elementos-chave deste conto moral. É esta figura materna, da outra “mulher que também está sendo julgada”, como descreveu a própria atriz Clarissa Kiste, que considera o papel um presente, que vê “como esses homens estão se protegendo, ignorando e não comunicando” e traz o questionamento moral que move este outro longa.

Este universo masculino tóxico para todos os envolvidos é uma das várias discussões importantes que Ferrugem levanta para o público e com as quais se sustenta como uma obra de relevância. “É um filme para toda a família, Sessão da Tarde” dizia o diretor entre risos da plateia na coletiva, defendendo a conversa intergeracional que pode ser promovida a partir dele, além de apontar a campanha realizada para o lançamento, seja com os seis cartazes individuais em que o celular é uma arma ou a mobilização de influenciadoras locais sobre a questão do julgamento virtual e que, “na época da informação, não dá para usar mais esta desculpa” para ajudar a propagar a desinformação e exposição pública indevida. O produtor Antônio Júnior afirmou que além do site ferrugemofilme.com.br e das parcerias com os exibidores como o Espaço Itaú, escolas já estão pedindo a exibição da produção para debate, assim como a janela pequena – ele irá para a TV, dentro de cinco meses, estreando na Globo – permitirá o maior alcance dessa discussão que já chegou às aulas de Tiffany, que agora com 18 anos e ainda no ensino médio, fará um trabalho a partir do longa, pedido pelo professor de Sociologia.

Muritiba ainda atestou que, apesar jogar a “isca de quem é (o culpado)”, seu interesse recai muito mais na “tomada de consciência e responsabilidade: por que fez e o que vai fazer a partir disso”. Há, no entanto, uma dificuldade, que não está necessariamente no silêncio, do público de se aproximar de tal figura e embarcar na jornada ideal de histórias que se apoiam na culpa motor da trama, que é estabelecer com o espectador uma raiva empática, aquela que te leva a odiar o que o personagem fez porque, talvez, se estivesse no mesmo lugar, faria igual e, depois, torcer por sua redenção, mesmo que o perdão não seja possível como aqui, em que o cineasta sabiamente foge de convenções hollywoodianas. O desbotamento visível na bela fotografia do português Rui Poças, de As Boas Maneiras (2017) e Zama (2017), ocorre de modo similar com a narrativa de Ferrugem, que assim como os seus personagens, foge do confronto depois de um primeiro ato pungente e perde certos questionamentos – como será que ficou a amiga de Tati (Nathalia Garcia) que preferiu atender a exigência do namorado, por exemplo? – e, principalmente, a atmosfera claustrofóbica da escola que potencializa os dramas adolescentes, incluindo o tal sentimento evocado de maneira simbólica no título.

Da esquerda para a direita, o diretor de som Alexandre Rogoski, os atores Nathalia Garcia, Giovanni de Lorenzi e Tifanny Dopke, o cineasta Aly Muritiba, a atriz Clarissa Kiste e o produtor Antônio Júnior na coletiva de imprensa do filme Ferrugem (2018) | Foto: Nayara Reynaud

Da esquerda para a direita, o diretor de som Alexandre Rogoski, os atores Nathalia Garcia, Giovanni de Lorenzi e Tifanny Dopke, o cineasta Aly Muritiba, a atriz Clarissa Kiste e o produtor Antônio Júnior na coletiva de imprensa do filme Ferrugem, em São Paulo (Foto: Nayara Reynaud)

 

Ferrugem (2018)

Duração: 100 min | Classificação: 14 anos

Direção: Aly Muritiba

Roteiro: Aly Muritiba e Jessica Candal

Elenco: Tiffanny Dopke, Giovanni de Lorenzi, Enrique Diaz, Clarissa Kiste, Pedro Inoue, Dudah Azevedo e Nathalia Garcia (veja + no IMDb)

Distribuição: Olhar Distribuição

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