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  • Foto do escritorNayara Reynaud

HEREDITÁRIO | As duas faces de um retrato familiar

Atualizado: 16 de out. de 2020


Milly Shapiro, Toni Collette, Gabriel Byrne e Alex Wolff em Hereditário (2018), de Ari Aster | Foto: Divulgação (Diamond Films)

Antes mesmo de assistir Hereditário (2018), o título autoexplicativo do longa de estreia de Ari Aster indica ao público que a herança de problemas familiares que passam de geração a geração será o objeto da alegoria principal do terror que foi aclamado pela crítica no último Festival de Sundance. Em entrevista, o jovem cineasta declarou, sem fornecer detalhes, que a experiência pessoal de três anos de provação enfrentados por sua família, dando a sensação de que eles estavam de algum modo amaldiçoados, serviu de inspiração para o sentimento do filme. No entanto, já em seus curtas-metragens, o drama familiar está presente, assim como um tom cômico em maior ou menor nível: Munchausen (2013) – um dos que traz Rachel Brosnahan no elenco –, por exemplo, tem o bordado no estilo dos tapetes de seu último trabalho e a maternidade doentia em um clima lúdico ao estilo Pixar em live action.

Aqui, a comédia não é evidente como na sátira social de Corra! (2017), mas os risos surgem, vez ou outra, na plateia: seja aqueles nervosos, típicos de quem procura um subterfúgio para evitar o medo, ou decorrentes de um aspecto bizarro que permeia a obra que acompanha a família Graham, de uma pequena cidade no interior de Utah, após a morte de sua matriarca. Essa estranheza é mais visível na figura de Charlie (vivida pela estreante Milly Shapiro, que foi uma das Matilda’s da montagem da Broadway, que também tinha a Oona Laurence), a neta caçula que tinha uma forte ligação com a avó falecida e cujo estalo de língua tem o mesmo efeito sonoro marcante que o toque da colher na xícara no longa de Jordan Peele. Porém, neste jogo narrativo, se a personagem é utilizada às vezes para servir a convenções do gênero, a sua trajetória subverte as expectativas geradas por elas – o mesmo não pode ser dito do papel de Ann Dowd, que por conta de sua participação em séries como O Conto de Aia / The Handmaid’s Tale (2017-), acaba sendo previsível a parte da plateia.

Assim, Aster constrói lenta e pacientemente, na primeira parte do filme, uma tensão na observação do drama dos Graham, com um passado e um presente de acontecimentos trágicos que os sobrevêm, mostrando que sentimentos reprimidos dentro de uma família podem ser mais aterrorizantes que jump scares. Voltando ao cenário do terror, quase duas décadas depois de O Sexto Sentido (1999), a australiana Toni Collette encarna todo o dilema de Annie, uma filha que não sabe bem o que sentir pela perda da mãe, de quem guarda ressentimentos, enquanto alimenta a culpa em relação a seu filho mais velho, Peter (Alex Wolff, de O Dia do Atentado, de 2016, e irmão de Nat Wolff). Trabalhando em um estúdio em casa nas suas maquetes de ambientes em miniatura, cada vez mais suas obras adquirem um aspecto macabro, além de externarem mais a analogia de que os membros daquela casa são peças a serem manipuladas. Da mesma maneira, o cineasta também joga pistas, apesar de até pássaros servirem de distrações ao espectador, e traça paralelos na aula de filosofia como se o adolescente tivesse fadado a algo maior que ele, do qual não tivesse controle, que vai de encontro a ideia, que desponta mais claramente com o desfecho, de uma sociedade patriarcal que sufoca até os homens que dela seriam teoricamente beneficiados.

Hereditário segue o mesmo filão que procura o terror através da contextualização e não necessariamente do susto – e se este estilo se popularizou comercialmente através das últimas décadas, não quer dizer que limite o gênero a ponto de se criarem novas nomenclaturas para essa tendência atual –, visto em exemplos recentes como A Bruxa (2015) e o também maternal O Babadook (2014), além é claro de ter o agora horror cinquentão O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, como referência básica a qualquer obra que trata a maternidade por esse viés. No entanto, Aster se rende a clichês mais conhecidos no decorrer da segunda parte, de maneira menos resolvida que o primeiro desses longas citados, por exemplo, por não conseguir atar todas as pontas deixadas entre suas alegorias e subtextos com o rumo cada vez mais sobrenatural que a trama toma. A bem da verdade, na construção deste que é, essencialmente, um drama familiar, o diretor evita alguns momentos essenciais neste processo, não para o entendimento, mas para o envolvimento do público com os personagens, e que fazem falta no seu quebra-cabeça.

Se a música de Joni Mitchell, na interpretação de Judy Collins, Both Sides Now, vem nos créditos de um modo igualmente irônico e sincero falar sobre enxergar ambos os lados, o bom e o ruim, das dificuldades na figura das nuvens, do amor e da vida – e por que não de si mesmo, com seus próprios anjos e demônios que o filme discute? –, Hereditário deixa um sabor parecido no espectador, com todos os temas que suscita a partir de um bom elenco e equipe técnica, mas a sensação de frustração por uma tapeçaria cinematográfica que poderia ser melhor costurada.

 

Hereditário (Hereditary, 2018)

Duração: 127 min | Classificação: 16 anos

Direção: Ari Aster

Roteiro: Ari Aster

Elenco: Toni Collette, Alex Wolff, Milly Shapiro, Gabriel Byrne, Ann Dowd e Mallory Bechtel (veja + no IMDb)

Distribuição: Diamond Films

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