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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Predador de si mesmo

Atualizado: 8 de nov. de 2020


Mohammad Valizadegan em cena do filme iraniano Não Há Mal Algum (Sheytan Vojud Nadarad / There Is No Evil, 2020), de Mohammad Rasoulof | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo / Créditos: Claudia Tomassini)

Na primeira das quatro histórias que compõem o filme iraniano Não Há Mal Algum (2020), uma menina comenta sobre a sua lição de casa, na qual precisa escrever sobre animais que fazem mal ao ser humano. Durante todo o longa-metragem vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, o cineasta Mohammad Rasoulof responde a questão, mostrando como o ser humano é o maior predador de si mesmo. Se a ideia do “homem é o lobo do homem” pode evocar um pensamento hobbesiano, o diretor dos premiados Adeus (2011) e A Man of Integrity (2017) se opõe a ele ao não vilanizar o homem enquanto indivíduo, mas ainda cobrando a sua responsabilidade social, e, principalmente, ao mostrar os danos que um Estado de poderes absolutos pode causar em uma sociedade.


Algo que o realizador sabe, por experiência própria, por já ter sido preso trabalhando junto do também cineasta Jafar Panahi, em 2010, e estar impedido de deixar o Irã desde 2017. Por isso, é surpreendente que Rasoulof tenha conseguido driblar a censura local e realizar algo que não se assemelha a um típico trabalho “às escondidas”. Mesmo que tenha sido necessário que os assistentes de direção comandassem as filmagens mais suscetíveis à vigilância no espaço urbano, isso não transparece na ambiciosa produção que faz um grande manifesto contra o regime iraniano e a sua política de pena de morte, através de um olhar individual para os executores, aqueles que são designados a “apenas” fazer o serviço sujo, em contos morais sobre a possibilidade de liberdade de escolha deles.


É simbólica, portanto, a cena inicial do filme, na qual dois homens estão carregando um grande saco, que parece esconder um corpo, até o porta-malas do veículo de um deles. Quando Heshmat (Ehsan Mirhosseini) sai com seu carro da garagem e informa ao guarda que se trata da sua cota de arroz, o espectador ainda ficará com aquela imagem na mente, mas segue acompanhando a rotina daquele homem comum, enfrentando o trânsito para buscar a esposa (Shaghayegh Shourian) e a filha na escola, para fazer tarefas de um dia cheio com banco, compras no supermercado, uma visita à sogra e preparativos para o casamento que eles irão, no dia seguinte. A meia hora em que se acompanha sua rotina é o contraponto necessário para quando o funcionário volta ao seu trabalho, onde só apertar um botão tem um peso muito grande, ao qual o personagem, pelo que foi visto anteriormente, já abstraiu da sua consciência.


A força deste primeiro segmento, de mesmo nome do filme e com um timing certeiro ao mostrar a banalidade cotidiana como uma banalização nacional da morte de seus cidadãos, não é alcançada pelas histórias seguintes, mas a linha narrativa construída pelo conjunto antológico é bem consistente. A segunda parte, chamada “Você consegue”, foca justamente no questionamento do executor sobre a sua ação, ao acompanhar o desespero de Pouya (Kaveh Ahangar), prestes a cumprir sua primeira execução. A conversa do jovem soldado com seus colegas de alojamento levantam todos os questionamentos morais do fato de cumprir ordens e a lei que os obrigam a matar um ser humano e também de certa impossibilidade de escapar disso, já que se recusar a realizar a tarefa significa mais tempo preso ao serviço militar obrigatório, mandatório para se conseguir um passaporte no Irã.


A tensão da discussão é transmitida para um ritmo de ação na narrativa, que chega a um clímax arrefecido pelos segmentos subsequentes, que se debruçam nas consequências diferentes do ato de escolha dos executores. O terceiro, chamado “Nascimento”, que observa o soldado Javad (Mohammad Valizadegan) aproveitando a folga para visitar a namorada Nana (Mahtab Servati) e sendo confrontado com sua própria consciência quando a morte lhe vai cobrar a conta e questionar a sua crença de que todo preso executado era de fato um criminoso. O quarto, nomeado “Beije-me”, propõe um drama familiar envolto em mistério, na chegada da jovem expatriada Darya (Baran Rasoulof, filha do diretor) ao país que partiu ainda bebê, sendo acolhida pelos tios Bahram (Mohammad Seddighimehr) e Zaman (Jila Shahi), que moram bem isolados e revelam as marcas duradouras da repressão governamental.


No entanto, se Rasoulof, obviamente, deseja denunciar o caráter desumano do regime que o repreende, através do humanismo representado em suas histórias, Não Há Mal Algum tem muito a falar com os cidadãos de qualquer nação que observam o totalitarismo instaurado em seu lar ou sua perigosa crescente em todo o mundo, como comprovam os prêmios em Berlim e do público brasileiro na 44ª Mostra SP.

 

Não Há Mal Algum (Sheytan Vojud Nadarad, 2020)

Duração: 152 min | Classificação: 14 anos

Direção: Mohammad Rasoulof

Roteiro: Mohammad Rasoulof

Elenco: Ehsan Mirhosseini, Kaveh Ahangar, Mahtab Servati, Mohammad Valizadegan, Shaghayegh Shourian, Alireza Zareparast, Salar Khamseh, Darya Moghbeli, Mohammad Seddighimehr, Jila Shahi e Baran Rasoulof (veja + no site)

Produção: Irã, Alemanha e República Tcheca

> Disponível no Mostra Play, de 29/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 500 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play



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