MOSTRA SP 2020 | Devaneios lusitanos
Atualizado: 12 de nov. de 2020
O cinema português veio forte nesta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, justamente com duas produções que tem o seu “pezinho no Brasil” e desmistificam as ideias nacionalistas de grandeza lusitana, sejam pelos delírios coloniais de Mosquito (2020) ou devaneios fascistas de O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020). O mito do bom colonizador e as fragilidades portuguesas são expostos durante a empreitada de um jovem enviado a Moçambique durante a I Guerra Mundial no filme de João Nuno Pinto, enquanto as aspirações de uma Portugal salazarista frente a ascensão do fascismo na Europa servem de pano de fundo para o jogo literário entre Fernando Pessoa e seu heterônimo, realizado por José Saramago e adaptado à tela por João Botelho. Leia as críticas dos dois títulos a seguir.
Mosquito (Mosquito, 2020)
A colonização e a própria guerra são um delírio febril para Portugal, na empreitada de um dos seus jovens soldados que desembarca em Moçambique, no ano de 1917, em plena I Guerra Mundial, observada visceralmente pelo filme Mosquito. Tal qual Sam Mendes em 1917 (2019), o cineasta João Nuno Pinto, nascido em Moçambique, mas de origem portuguesa, se inspira nas memórias de seu avô, combatente do grande conflito para retratá-lo ficcionalmente. Contudo, é com outros clássicos do gênero que sua proposta mais se assemelha, sendo muito comparado à experiência do soviético Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, e do norte-americano Apocalipse Now (1979), e, por consequência, ao livro que inspirou a insanidade tropical do longa de Francis Ford Coppola, No Coração das Trevas (1899), romance de Joseph Conrad ambientado também na África e de tom anticolonialista.
Em seu segundo longa, o diretor de América (2010) conta com a brasileira Fernanda Polacow e o português Gonçalo Waddington no roteiro para transformar sua ideia original na trama que revolve o passado colonialista lusitano. A produção exibida no Festival de Roterdã acompanha Zacarias (João Nunes Monteiro, como um grande destaque e revelação), um jovem português de 17 anos que se alista durante a Grande Guerra, esperando lutar na frente de batalha na França, mas o exército lhe manda para as tropas que vão defender a então colônia Moçambique dos poderosos ataques alemães. A primeira imagem dos negros locais sendo usados para carregar os soldados do barco até a praia é muito significativa para romper já a princípio a ideia que Portugal vendeu de si como um “bom colonizador”, frente à fama das outras nações europeias imperialistas, em um período no qual a escravidão já não existia oficialmente.
Talvez, o principal trunfo de Mosquito, e igualmente seu maior problema, seja colocar o filme em estado delirante desde as primeiras cenas, quando o protagonista contrai malária e a febre causada pela doença transmitida justamente por um mosquito deixa tudo o que vem a seguir sob a dúvida se é realidade ou mera alucinação dele. A proposta permite a Nuno Pinto investir em uma estética que transmita isso, desde o uso do desfoque e da profundidade de campo na fotografia de cores tropicais do brasileiro Adolpho Veloso ao desenho de som acentuando os barulhos dos animais e conferindo este aspecto sensorial à experiência do rapaz de partir selva adentro, acompanhado somente de dois moçambicanos, para tentar alcançar o seu pelotão no front de batalha. No entanto, como Zacarias é apenas um veículo para representar uma Portugal aventureira que se confronta com a verdade da guerra e de sua própria impotência, especialmente quando ele, como um homem branco português, tenta se impor com os habitantes nativos negros, por julgá-los inferiores, mas os mesmos revelam a sua fraqueza e da fantasia do Império Português que a República mantinha, falta conhecer um pouco do personagem além deste arquétipo para embarcar completamente nesta jornada desvairada. Ainda assim, isso não impede o espectador brasileiro de se regozijar ao ver seus antigos colonizadores, finalmente, escarafunchando as máculas de sua História.
Mosquito (Mosquito, 2020)
Duração: 122 min | Classificação: 14 anos
Direção: João Nuno Pinto
Roteiro: Fernanda Polacow e Gonçalo Waddington
Elenco: João Nunes Monteiro, João Lagarto, Filipe Duarte, Josefina Massango, Aquirasse Nipita, Sebastian Jehkul, Miguel Moreira, Alfredo Brito, Miguel Borges, João Vicente, Messias João, Hermelinda Simela, Gigliola Zacara, Gezebel Mocovela, Ana Magaio e Camané (veja + no site)
Produção: Portugal, Brasil e França
O Ano da Morte de Ricardo Reis (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 2020)
Chovia naquele domingo de 29 de dezembro de 1935, em Lisboa, quando Ricardo Reis, médico português que já estava há 16 anos no Brasil, desembarca na capital lusitana. Trata-se de um prenuncio para o ano novo que virá e será tão sombrio quanto o preto e branco empregado por João Botelho em seu novo filme O Ano da Morte de Ricardo Reis. Se o retorno à terra pátria de um dos famosos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935) é visto com desconfiança, o mesmo também observa reticente os elogios ao Estado Novo em Portugal e à figura de seu líder nacionalista António de Oliveira Salazar, enquanto rompe a Guerra Civil Espanhola no país vizinho em mais uma forma de ascensão do fascismo na Europa.
Esse é o pano de fundo do terceiro trabalho no qual o experimentado cineasta mergulha no universo do prestigiado escritor e poeta português, tendo já realizado os longas Conversa Acabada (1981), no início de carreira, e, décadas depois, Filme do Desassossego (2010). Agora, o diretor e roteirista faz esse mergulho por intermédio do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), romance no qual o compatriota José Saramago imagina um fim para a biografia do médico poeta, meses após a morte de seu ortônimo, com o fantasma do criador vindo visitar o seu heterônimo antes de desaparecer tal qual o tempo de uma gestação. Na adaptação cinematográfica, o ator brasileiro Chico Diaz encarna Ricardo Reis e Luís Lima Barreto faz um Fernando Pessoa bem mais envelhecido e diferente da figura que se conhece do autor.
O protagonista se hospeda em um hotel, onde atrai a atenção das mais variadas pessoas. Se envolve com a camareira Lídia (Catarina Wallenstein), um amor possível e palpável, e se apaixona por Marcenda (Victoria Guerra), que por ser uma jovem nobre se torna um sonho distante. Mas o fato do monarquista ter saído de Portugal logo após uma revolução – em 1919, teve fim a contrarrevolução da Monarquia do Norte que visava reestabelecer o reinado de D. Manuel II na recente República –, e ter voltado do Brasil justamente depois de outra – em 1935, ocorreu a Revolta ou Intentona Comunista contra o governo Getúlio Vargas –, o coloca sob o rígido olhar da Polícia de Defesa do Estado.
Botelho filma como se fosse uma produção da época, optando por um tom teatral que pode causar estranheza em parte do público, mas a escolha por construí-lo como um noir cabe ao contexto histórico de 1936, não só em termos estéticos, mas especialmente para reforçar o clima da Europa naquele período pré-II Guerra Mundial. Junto do personagem principal, o espectador vê o apoio português aos falangistas na Espanha durante a eclosão do conflito civil no país e igualmente a aspiração lusitana, tanto comprometedora quanto patética, de se espelhar nos regimes totalitaristas vizinhos. Nesse sentido, a obra vem desmistificar a ideia vendida pelo salazarismo de que Portugal se manteve neutro na época, quando, na realidade, a posição oficial escondia as semelhanças e o desejo por controle iguais aos do franquismo espanhol que apontava ao lado, do fascismo italiano e do nazismo alemão.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 2020)
Duração: 128 min | Classificação: 14 anos
Direção: João Botelho
Roteiro: João Botelho, baseado no livro “O Ano da Morte de Ricardo Reis” de José Saramago
Elenco: Chico Diaz, Luís Lima Barreto, Catarina Wallenstein, Victoria Guerra, João Barbosa, Rui Morisson e Hugo Mestre Amaro (veja + no site)
Produção: Portugal
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