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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Solidão compartilhada

Atualizado: 4 de nov. de 2020


Realizado em fevereiro, às vésperas do decreto da OMS declarando a Covid-19 como uma pandemia mundial, o Festival de Berlim 2020 teve, em sua seleção, dois filmes que trabalham o tema da solidão e que reverberam ainda mais quando vistos agora, em outubro do mesmo ano na programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, após meses de quarentena. E justamente pelo fato de Dias (2019), filme de Taiwan realizado por Tsai Ming-Liang que estava na competição da Berlinale, e O Problema de Nascer (2020), produção austro-alemã dirigida por Sandra Wollner que integrava a mostra Encontros do mesmo evento, terem sido concebidos antes desse período de isolamento social é que o público se dá conta de quanto a vida já era solitária para algumas pessoas ou até para si mesmo, há tempos. Confira mais sobre esses títulos a seguir.

 

Dias (Rizi, 2019)


Lee Kang-Sheng e Anong Houngheuangsy em cena do filme taiwanês Dias (Rizi, 2019), de Tsai Ming-Liang | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

“Este filme é intencionalmente não legendado”, avisa a única legenda ou texto de Dias, logo em sua abertura do recente longa-metragem de Tsai Ming-Liang. Um dos principais nomes da cinematografia taiwanesa com filmes premiados como O Buraco (1998) e Cães Errantes (2013), o cineasta é um, particularmente, do slow cinema, gênero que busca a observação dos seus personagens e contemplação do cotidiano através de uma estética minimalista caracterizada pelos planos longos.


A sua escolha aqui se dá por um motivo claro: as palavras realmente não fazem parte da rotina de Kang (Lee Kang-Sheng) e Non (Anong Houngheuangsy), acompanhada pacientemente pela lente do diretor. A opção, contudo, também gera um efeito amplificador, ao tornar esse silêncio, nunca total, mas completado pelos sons da tranquilidade da natureza ou da agitação urbana, em um elemento universalizante. Mesmo que a proposta afaste parte do público não acostumado a este estilo de produção, as pouquíssimas palavras trocadas na tela não importam ao espectador que, independente do seu idioma ou local de origem, compreende as ações e sentimentos que preenchem os dias dos personagens.


O filme que recebeu a menção especial do Prêmio Teddy, dedicado aos filmes LGBT+ da seleção do Festival de Berlim, se inicia com um plano de cinco minutos observando Kang sentado à janela, ao som da chuva caindo, não sendo o maior da obra que usa essa distensão temporal dos longos planos e cenas para provocar a imersão do espectador no ritmo do cotidiano de ambos. Sua rotina solitária em uma casa grande em uma região afastada da cidade é, portanto, contraposta na montagem à de Non, que vive em um apartamento na metrópole, onde a sua principal atividade é cozinhar, preservando os métodos tradicionais de preparo de pratos típicos de sua aldeia. A oposição os coloca em pé de igualdade e retira qualquer julgamento prévio de que um estilo de vida ou outro propiciam esta solidão.


Quando Kang vai à cidade procurar tratamento para as dores que está sentindo – momento em que Ming-Liang se permite a ousadia estilística de um plano holandês, com a câmera na diagonal acompanhando a cervical do protagonista –, acontece o encontro desses dois mundos já na segunda hora do longa. A noite em um quarto de um hotel é registrada com igual delicadeza e erotismo pelo cineasta ao privilegiar o registro completo de cada toque em uma grande sequência. A vida dos dois segue, porém, não sem que a lembrança da solidão compartilhada e da que permanece solitária venham à mente na belíssima cena final, na qual uma caixinha de música com o tema instrumental de Luzes de Ribalta (1952), Terry’s Theme, composto pelo próprio Charles Chaplin, fala melhor do que mil palavras.

 

Days (Rizi, 2019)

Duração: 127 min | Classificação: 14 anos

Direção: Tsai Ming-Liang

Roteiro: Tsai Ming-Liang

Elenco: Lee Kang-Sheng e Anong Houngheuangsy (veja + no site)

Produção: Taiwan

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

> Sessão – Belas Artes Drive-in – 29/10/2020 (quinta), às 21h32

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play

 

O Problema de Nascer (The Trouble with Being Born, 2020)


Cena do filme austro-alemão O Problema de Nascer (The Trouble with Being Born, 2020), de Sandra Wollner | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo / Créditos: Panama Film)

Sons e falas indistintas que parecem saídas de algum meio eletrônico abrem O Problema de Nascer (2020), segundo longa da austríaca Sandra Wollner, que o concebeu como seu trabalho de graduação em cinema. Quando a imagem fragmentada se estabelece, surge a figura de uma criança à beira da piscina, mas logo o público se dá conta de que não se trata de uma menina normal e sim uma androide. Também não demora muito para o espectador perceber que o relacionamento de Elli (Lena Watson) com o homem a quem ela chama de pai (Dominik Warta) tem uma conotação sexual envolvida.


Tal conteúdo tem sido motivo de muita controvérsia em torno do filme que ganhou o Prêmio Especial do Júri da seção Encontros de Berlim, por certa leviandade ao tratar a pedofilia em sua história. Isso porque, além de Georg se relacionar com uma robô de figura infantilizada, a máquina reproduz as características físicas e memórias de uma “Elli original”, hoje já adolescente, revelando nas entrelinhas que este homem, de fato, já cometeu o crime de pedofilia. A obra não é necessariamente problemática por abordar o tema através desse viés – e creiamos também que a cineasta esteja falando a verdade sobre evitar a exposição da atriz mirim por trás das próteses e do pseudônimo Lena Watson –, mas não deixa de ser questionável por usar a questão de modo acessório e abandoná-la totalmente na segunda metade da trama, sem aprofundamento ou questionamento.


Elli parte, vagando até encontrar outra dona na Sr. Schikowa (Ingrid Burkhard) e outra identidade para ser a sua companhia e também expurgar o remorso da velha senhora. Fica clara a sina da androide como um depósito de lembranças, culpas e desejos humanos que passam a se embaralhar em suas memórias de diversas “vidas”, enquanto a mesma tenta repetir os eventos passados com as pessoas reais que encarna, resultando igualmente em uma narrativa confusa. Emprestando o seu título do livro homônimo do filósofo romeno Emil Cioran, publicado em 1973 na França, O Problema de Nascer busca refletir as angústias da existência humana através do corpo mecânico da protagonista, transmitindo a ideia de limitação desde a escolha pelo formato de tela 4:3, porém, sucumbe a também tratar a personagem como um mero produto de consumo para um roteiro que se esconde em uma hermética ficção científica para não dissertar sobre os assuntos que lida.

 

O Problema de Nascer (The Trouble with Being Born, 2020)

Duração: 94 min | Classificação: 18 anos

Direção: Sandra Wollner

Roteiro: Sandra Wollner e Roderick Warich

Elenco: Lena Watson, Dominik Warta, Ingrid Burkhard, Jana McKinnon e Simon Hatzl (veja + no site)

Produção: Áustria e Alemanha

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play



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