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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | Um folguedo cinematográfico truncado

Atualizado: 7 de jan. de 2023


Cena do filme brasileiro Casa de Antiguidades (2020), de João Paulo Miranda Maria | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Produção brasileira que viajou pelo mais prestigiado circuito de festivais internacionais, ganhando o selo de Cannes e passando por Toronto e San Sebastián, Casa de Antiguidades (2020) finalmente chega a sua terra natal, dentro da programação da 44º Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. E o faz, justamente, contando a história de um protagonista que se sente estrangeiro dentro do próprio país. Natural do interior de São Paulo, o cineasta João Paulo Miranda Maria usa como pano de fundo para seu longa-metragem de estreia o sentimento nunca totalmente adormecido de separatismo sulista a fim de tratar de racismo e xenofobia confrontados por uma busca de ancestralidade brasileira.


Na trama, igual aos créditos iniciais que, diferentemente do habitual, descem de maneira austral, Cristovam (Antônio Pitanga) sai de Goiás, por onde trabalhou há 20 anos em uma fazenda leiteira que agora foi fechada, sendo transferido para a nova sede da indústria Laticínio Kainz, na região Sul. O estado nunca é informado, mas as filmagens foram realizadas em Santa Catarina, bem como não é dita nominalmente a informação da sinopse de que se trata de uma colônia de imigrantes austríacos e seus descendentes, ficando isso subentendido pela língua alemã predominante na pequena cidade. “Não entendo o que ele diz”, confessa o personagem principal de poucas palavras na reunião com o presidente da empresa (Sam Louwyck), mas mesmo se o espectador também não tivesse as legendas traduzindo a fala dele e de outros personagens nas cenas posteriores, já saltaria aos olhos a bandeira com os três estados sulistas junto de São Paulo, que depois se revela ser do movimento de independência do Sul, que “paga mais impostos”, do resto do Brasil. Contudo, não demora muito para que o funcionário, isolado dos colegas de trabalho, passe a sentir na pele os reflexos desse pensamento, nas atitudes dos meninos do local, que surgem como ameaça desde o primeiro instante em que entram na tela.


Em contrapartida, ele descobre uma casa abandonada, na qual encontra vestígios de um passado que lembra o seu, desde os velhos retratos de família, mas principalmente nos itens de festejos folclóricos, desde fotos das Cavalhadas de Pirenópolis à lança de caboclo no armário. É através deles que Cristovam passa a se transformar na figura do boi, constante em diversos folguedos do folclore brasileiro. Se a representação do animal em si está presente desde os primeiros momentos com o berrante do personagem e ganha destaque em uma sequência posterior com o leilão do touro Jatobá, a cabeça encontrada de um bumba meu boi – ou de um boi-de-mamão, como é chamado em Santa Catarina, entre as várias nomenclaturas e variações da lenda e do festejo em todo o país – gera um processo kafkaniano de metamorfose neste homem, que tampouco é um herói, trazendo a sua dose de “antiguidade” a esse cenário de conservadorismo com suas manifestações de macho alfa para Jenifer, a “Loira” (Ana Flavia Cavalcanti) e sua mãe Jandira (Aline Marta Maia), assim como ele, raras figuras negras e/ou nordestinas ali, mesma que a primeira tente esconder isso.


A direção estreante de Miranda Maria impressiona mais pelo controle na criação de uma ambientação desse realismo fantástico, com a trilha sonora, desde seu primeiro acorde, dando o tom de tensão desejado. Mas é notável como a mise-en-scène do cineasta reflete também, não de modo benéfico, uma opção narrativa que soa equivocada. Com sua câmera bailando em constantes travellings, se aproximando e se afastando de seu objeto humano no uso do zoom, João Paulo concebe um quadro que ora é totalmente frontal aos seus personagens, ora se atém completamente as suas costas em um recorrente ângulo de nuca. Da mesma forma, o filme parte para a frontalidade de um discurso sem sutilezas – as referências ao presidente atual são explícitas e o uniforme dos separatistas pode fazer o público se lembrar dos nazistas, mas recordam mais o dos integralistas brasileiros –, simultaneamente a um olhar furtivo do roteiro, que só enxerga a silhueta dorsal de suas figuras humanas.


Mesmo com a força sempre hipnótica da atuação de Pitanga, Cristovam padece, quanto à construção de personagem, do fato de ter sempre de vestir uma das alegorias abordadas pela obra. A proposta alegórica, em si, não seria um problema, porém, quando acompanhada de uma encenação engessada, ela não se desenvolve em terreno fértil. Se tal escolha estivesse apenas na representação no “lado europeu”, se compreenderia a sugestão, mas ela se estende a todos, com exceção de Jandira, na naturalidade que Marta Maia imprime a esta mulher falante. Torna-se uma direção contraditória que Casa de Antiguidades toma em relação ao seu mergulho nesse universo folclórico brasileiro, mais vivaz e dinâmico do que o filme se propõe.

 

Duração: 140 min | Classificação: 14 anos

Direção: João Paulo Miranda Maria

Roteiro: João Paulo Miranda Maria

Elenco: Antonio Pitanga, Ana Flavia Cavalcanti, Aline Marta Maia, Sam Louwyck e Gilda Nomacce (veja + no site)

Produção: Brasil e França

Distribuição: Pandora Filmes

> Disponível no Belas Artes à la Carte, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

> Sessão – Belas Artes Drive-in – 31/10/2020 (sábado), às 21h15



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