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  • Foto do escritorNayara Reynaud

GRAMADO 2020 | Dia 1 – Filmes de formação e destruição

Atualizado: 20 de set. de 2020


Festival de Gramado 2020 - Dia 1: 4 Bilhões de Infinitos | Receita de Caranguejo | Por Que Você Não Chora | El Silencio del Cazador | Fotos: Divulgação

O pontapé inicial para o 48º Festival de Cinema de Gramado foi dado nesta sexta, 18 de setembro, começando uma edição especial do evento que, como diversos outros do setor, precisou se adaptar às novas condições impostas pela pandemia de Covid-19 em todo o mundo. Enquanto vários festivais estão realizando edições virtuais através de seus sites ou parcerias com plataformas de streaming, aquele que é considerado o mais famoso do país apostou em uma maneira diferente de levar o cinema para o público dentro deste novo cenário de 2020: a televisão. Por isso, desde ontem até a cerimônia de encerramento no próximo sábado, dia 26, tanto a plateia cativa de Gramado quanto o espectador que nunca pôde viajar para a cidade da Serra Gaúcha, podem conferir a programação do festival no Canal Brasil, sempre a partir das 20h, sendo que o canal por assinatura ainda disponibiliza, por 24 horas, os curtas brasileiros no seu serviço de streaming, o Canal Brasil Play.


Aliás, este primeiro dia de competição foi marcado por dois curtas que versam sobre o imaginário e perdas na juventude, com o mineiro 4 Bilhões de Infinitos (2020) se voltando à infância e o paulista Receita de Caranguejo (2020), à adolescência. Contrastando com certa leveza desses singelos coming of age, vieram as pancadas dos longas-metragens: o brasiliense Por Que Você Não Chora? (2020) abriu a competição brasileira debatendo questões de saúde mental, enquanto o argentino El Silencio del Cazador (2019) iniciou a de filmes latino-americanos, com uma disputa masculina na selva. Confira mais sobre esses títulos a seguir.

 

Ana Júlia e Adalberto Gomes em cena do curta-metragem mineiro 4 Bilhões de Infinitos (2020), de Marco Antonio Pereira | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

A escolha de 4 Bilhões de Infinitos para abrir a programação de Gramado neste ano não foi à toa. É claro que o fato deste ser o quarto curta-metragem de uma série de cinco que o cineasta mineiro Marco Antonio Pereira vem realizando em sua cidade, Cordisburgo – terra natal também do escritor João Guimarães Rosa –, contribui, pois três destes trabalhos do realizador já entraram na seleção do festival e o anterior, Teoria sobre um Planeta Estranho (2018), ganhou o prêmio de Melhor Filme do Júri Popular na competição passada de curtas brasileiros. Contudo, é em uma discussão inocente entre duas crianças que surge a definição do sentimento saudoso de tantos cinéfilos em 2020: “televisão e celular é um negócio muito solitário, só dá pra gente ver sozinho; no cinema, a gente ri, chora e se diverte junto”.


A frase surge quando o menino (Adalberto Gomes) confessa à irmã (Ana Júlia Gomes) que roubou o “cinema” da escola em uma das muitas conversas regadas por esse imaginário infantil que Pereira registra ao acompanhar o duro cotidiano dessa família, enquanto a mãe (Aparecida Gomes) precisa deixar os filhos sozinhos para trabalhar e sustenta-los após a morte do pai deles. O curta-metragista continua no seu flerte com o gênero fantástico na observação da vida interiorana, que, sob sua lente, ganha cores vívidas, mesmo nos melancólicos tons azul-esverdeados ou no chiaroescuro de uma casa sem energia, à luz de velas. No entanto, a fantasia aqui vem menos dos recursos narrativos de outrora, já que a esparsa trama é apenas um fiapo para suscitar tais momentos de intimidade e encenação, mas sim dos diálogos dessas crianças que, frente ao desânimo de suas dificuldades, se encorajam – e consequentemente ao espectador em tempos como estes – através de sua imaginação e da certeza de terem um ao outro para um futuro melhor.



Na sequência, Receita de Caranguejo também se utiliza de elementos fantásticos no olhar para a adolescente Lari (Thais Melo) que, sem muito ânimo, parte em uma viagem com a mãe (Preta Ferreira) para a praia. Outro paralelo com o curta anterior segue na não-dita morte do pai como um dos catalizadores do silêncio que a jovem mantém durante esta temporada de veraneio. O outro está nos sentimentos ambíguos desta fase que recaem sobre a menina que está menstruando pela primeira vez.


O curta paulista de Issis Valenzuela, produtora que se inspira nas suas memórias pessoais de infância, quando ia para a casa da vó em Pernambuco e aprendeu a cozinhar caranguejo com a tia em seu dèbut como diretora, acompanha essa hesitante retomada da relação entre mãe e filha, tendo essa iguaria culinária como a herança familiar que as reconecta após o luto. O filme em si, porém, depende do espectador para conectar suas simbologias e frentes narrativas que não são escancaradas pela direção, a exemplo da figura materna desmistificando o medo do sangue em um corte no dedo para acalmar a garota sobre sua menstruação nunca citada. Enfim, uma obra que aborda ritos de passagem e tradições em lacônicas cenas quotidianas, mesmo com seres luminosos a banhá-las.

 

Duração: 15 min

Direção: Marco Antonio Pereira

Roteiro: Marco Antonio Pereira

Elenco: Aparecida Gomes, Ana Júlia Gomes e Adalberto Gomes (veja + no site)

Produção: Brasil (Minas Gerais)

Duração: 19 min 45 s

Direção: Issis Valenzuela

Roteiro: Issis Valenzuela

Elenco: Thais Melo e Preta Ferreira (veja + no site)

Produção: Brasil (São Paulo)

 

Bárbara Paz e Carolina Monte Rosa em cena do filme brasileiro Por Que Você Não Chora? (2020), da brasiliense Cibele Amaral | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

A cineasta e psicóloga brasiliense Cibele Amaral, de Um Assalto de Fé (2011), une suas duas facetas profissionais em seu novo filme Por Que Você Não Chora?, que aborda questões importantes de saúde mental. E dentro disso, um dos temas mais delicados a ser retratado na tela, ou ser desenvolvido em qualquer obra artística e até mesmo em notícias jornalísticas, que é o suicídio. O assunto já é enunciado desde a cartela inicial com o aviso sobre o serviço de prevenção do CVV – Centro de Valorização da Vida às pessoas que precisem de apoio emocional e que calha de vir exatamente em época de sua discussão no Setembro Amarelo.


A diretora e roteirista, portanto, usa de sua experiência e de colegas da área para tratar a questão por meio da oposição de personalidades entre uma estudante de psicologia e sua paciente durante um estágio de atendimento terapêutico, que consiste no acompanhamento dentro da própria rotina da pessoa em tratamento. O público conhece primeiro a estagiária Jéssica (Carolina Monte Rosa), uma aluna estudiosa, mas muito fechada, que mantém sua postura prática e quieta também no trabalho e em casa, onde mora sozinha com a irmã pequena Joyce (Valentina Cysne), já que a caçula, assim como ela, foi igualmente mandada do interior de Goiás para estudar em Brasília, pela ainda mais rígida e tácita mãe delas (Luciana Martuchelli). Depois é introduzido à Bárbara (Bárbara Paz), quando ainda está internada em uma clínica para depois apresentar observar o difícil processo de adaptação desta mulher diagnosticada com transtorno de personalidade borderline que a faz ter reações muito explosivas tanto com os outros quanto consigo mesma.


Por vezes, o roteiro fica muito preso a um tratado de psicologia ao usar do didatismo de personagens como a professora supervisora interpretada por Cristiana Oliveira para esclarecer o público sobre tais questões. Tanto que o filme flui bem melhor quando explora as dificuldades da ressocialização de pessoas com transtornos mentais de forma mais orgânica na narrativa da Bárbara, a exemplo da cena em que visita o filho (Erik Doria) pela primeira vez em tempos. Ou nas trocas genuínas entre as protagonistas, com Monte Rosa contornando bem os desafios da construção de Jéssica até certo ponto e Paz indo ao máximo em um tipo de papel que a atriz adora trabalhar.


A obra, que também conta com uma notável direção de fotografia de Maurício Franco, acaba oscilando demais e, por fim, contradizendo a si mesma no último ato. Amaral pesa a mão e, por mais que os sinais dos problemas enfrentados silenciosamente por Jéssica sejam apontados antes, a resolução de sua trajetória é atropelada por pesadelos, metáforas e pouco desenvolvimento daquele estado. De um lado, é claro que a produção vai servir de alerta a muitos sobre uma questão tão séria, bem como a necessidade dos profissionais de psicologia cuidarem de sua própria saúde mental, mas fica a dúvida se para quem se sentir em uma aflição solitária semelhante, a mensagem chegue mais como um estímulo.

 

Duração: 98 min | Classificação: Livre

Direção: Cibele Amaral

Roteiro: Cibele Amaral

Elenco: Carolina Monte Rosa, Bárbara Paz, Cristiana Oliveira, Elisa Lucinda, Maria Paula, Priscila Camargo, Rodrigo Brassoloto, Erik Doria, Valentina Cysne e Luciana Martuchelli (veja + no site)

Produção: Brasil (Distrito Federal)

Distribuição: O2 Play

 

Pablo Echarri em cena do filme argentino El Silencio del Cazador (2019), de Martin Desalvo | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

Há algo de arcaico no habitat explorado pelo filme argentino El Silencio del Cazador e também na própria narrativa do quinto longa de Martin Desalvo. Ao lado do roteirista Francisco Kosterlitz, o diretor apresenta como cenário um povoado cercado por reservas naturais e indígenas, no qual se chocam as figuras de Guzmán (Pablo Echarri) e Venneck (Alberto Ammann). O primeiro é um dos guardas florestais do parque que patrulham a selva para evitar a caça ilegal por parte de sujeitos como o segundo, mais conhecido como Polaco, filho do grande fazendeiro da região, que se acha e é tratado por toda a comunidade como o dono de tudo por ali.


Esses resquícios de uma espécie de coronelismo são visíveis, bem como os preconceitos ainda vigentes nessas relações regionais, particularmente no trato com as populações indígenas, que foram historicamente relegadas na Argentina, em uma tentativa de apagamento de sua existência que se difere um pouco dos problemas enfrentados em outros países da América do Sul. Outro sintoma de um ambiente retrógrado está na reação de que um grande predador esteja rondando a mata e matando outros animais, atiçando assim tanto a fofoca quanto o desejo desenfreado dos moradores em caçá-lo, apesar da proibição da guarda local. Contudo, esse aspecto antiquado se entranha no próprio filme ao construir um triângulo amoroso no qual Sara (Mora Recalde), médica casada com Guzmán e ex-namorada de Venneck, serve como pólvora para a velha rivalidade masculina estabelecida entre eles.


Filmada com vigor na carregada direção com a câmera na mão, a disputa desses dois “machos”, tal qual a tensão sexual deles com a “fêmea” em questão, é desenvolvida tendo uma observação animalesca em vista, mas remete a mil outras histórias que já desenvolveram este enredo. E, neste caso, lembrando aquelas cujas abordagens se demonstram muito ultrapassadas e não os clássicos contextualizados. O desfecho desse sismo de masculinidade na tela é inevitável e, até certo ponto, satisfatório para parte do público.

 

Competição de Longas-Metragens Estrangeiros

Duração: 103 min | Classificação: Livre

Direção: Martin Desalvo

Roteiro: Francisco Kosterlitz

Elenco: Pablo Echarri, Alberto Ammann, Mora Recalde e Cesar Bordon (veja + no site)

Produção: Argentina

Distribuição: TVCO (Argentina)



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