É TUDO VERDADE 2021 | Dia 1 – Adversárias, algozes e amigos
Atualizado: 16 de ago. de 2021
O primeiro dia de programação do 26º festival É Tudo Verdade destaca relações aparentemente impossíveis nos dois filmes da competição internacional de longas-metragens que serão exibidos nesta sexta (9). Em Glória à Rainha (2020), a diretora Tatia Skhirtladze detalha as gerações de mulheres campeãs e recordistas que fizeram da Geórgia uma potência mundial do xadrez feminino por décadas, que apesar de serem constantemente adversárias, também desenvolveram uma amizade entre elas. Já em Eu e o Líder da Seita (2020), o cineasta Atsushi Sakahara, que foi vítima do maior ato de terrorismo no Japão, busca uma inusitada aproximação com o atual líder da seita responsável pelo ataque na tentativa de que a empatia possa lhe trazer respostas e também a expiação da culpa de seus algozes. A programação ainda traz a sessão especial de O Dissidente (2020), documentário de Bryan Fogel que concorre ao BAFTA neste final de semana. Confira mais sobre essas produções:
Glória à Rainha (Glory to the Queen, 2020)
Ser berço não só de uma campeã mundial, mas de gerações de enxadristas que levaram o nome da então república soviética da Geórgia para o mundo é uma dádiva rara neste esporte. Mais ainda quando nota-se que foi o quarteto de georgianas destacado em Glória à Rainha que levou o xadrez feminino a outro patamar. Em meio ao sexismo da sociedade, que dificultou o acesso de tantas mulheres a jogarem, Nona Gaprindashvili, Nana Alexandria, Maia Chiburdanidze e Nana Ioseliani tiveram a oportunidade de mostrarem seu talento e provaram que não havia diferenças de gênero no tabuleiro.
O documentário de Tatia Skhirtladze, que conta com a codireção de Anna Khazaradze, logo explica as condições que favoreceram a isso, pois não só o xadrez era uma mania na União Soviética, que fez da estratégia e inteligência necessárias no esporte um chamariz para as aptidões que queria ressaltar em seu povo, quanto há um apreço cultural na Geórgia – considerada a Califórnia soviética e ponto de turismo para grande parte da população da nação – pelo jogo, que tradicionalmente é dado como dote às noivas locais e praticado desde a infância. Porém, é justamente pelo primeiro motivo, que a diretora consegue retraçar o caminho dessas campeãs através dos vídeos de propaganda da época, enquanto acompanha o cotidiano delas atualmente. Inclusive, é a deixa para a cineasta fazer observações sobre a maneira que os soviéticos usavam a imagem delas nos registros de suas vitórias e encenação de suas vidas comuns na primeira parte do filme: apesar da exaltação do talento e dos feitos delas, a imagem feminina idealizada ainda era necessária, seja na necessidade da equipe de filmagem convence a jovem Nana Alexandria a cozinhar para o marido e o filho ou na representação idílica de filha gentil de Maia Chiburdanidze.
No que seria o segundo ato, a produção deixa mais evidente sua estrutura de detalhar a carreia de cada uma, seguindo a ordem cronológica da primeira e várias vezes campeã mundial Nona Gaprindashvili; da “Rainha Sem Coroa” por ser eternamente vice, Alexandria; a jovem prodígio que derrotou a mestre e derrubou recordes masculinos, Chiburdanidze; e daquela que a destronou Nana Ioseliani. Skhirtladze assim o faz, pontuando com os comentários de uma especialista sérvia e os depoimentos de várias georgianas que possuem seu nome em homenagem às ídolas nacionais, sendo que a primeira destaca o fato do país ter uma tradição de mulheres fortes na sua História. Se o dado deixa evidente a intenção do discurso do filme, sente-se, porém, que a esquematização tão rígida, que até ganha um respiro no final, quando se observa a dinâmica das adversárias como amigas nos dias atuais, não permite que a narrativa flua tanto quanto poderia a partir de tão rico material, mas os holofotes para as exímias enxadristas do mundo real, em um período no qual a minissérie norte-americana O Gambito da Rainha (2020) fez tamanho sucesso na Netflix, torna o documentário atraente o suficiente para o publico que se encantou pelo xadrez.
Glória à Rainha (Glory to the Queen, 2020)
Duração: 82 min | Classificação: 14 anos
Direção: Tatia Skhirtladze
Produção: Áustria, Geórgia e Sérvia
Áudio e Legendas: alemão, georgiano, sérvio, russo | legendas em português
> Sessão – 09/04/2021 (sexta), às 17h00
Disponível no Looke, com limite de até 1.000 visualizações ou prazo de 24 horas; caso não alcancem o limite, retornam no dia seguinte às 12h00 e ficam até as 22h ou o limite de visionamentos estabelecido
Eu e o Líder da Seita (Aganai / Me and the Cult Leader - A Modern Report on the Banality of Evil, 2020)
Aproveitando o tema do filme anterior, é possível dizer que Eu e o Líder da Seita apresenta um inusitado xadrez mental de visões opostas, não só em ideologias e estilos de vida, mas principalmente na posição que cada um dos personagens ocupa em um evento emblemático na História do Japão. O diretor e também coprotagonista do documentário, Atsushi Sakahara, foi uma das milhares de vítimas do ataque de gás sarin no metrô de Tóquio, em 1995, realizado por membros do culto apocalíptico local Aum Shinrikyo, enquanto do outro lado da tela está Araki, o atual dirigente da seita. O líder de hoje não estava envolvido no ato terrorista, mas ainda assim continua acreditando nas palavras do guru Shoko Asahara, que naquela altura estava preso, mas ainda não havia sido executado, junto de outros responsáveis pelo crime, em 2018.
Por isso, é curioso ao espectador ver Sakahara em uma aproximação tão amistosa com o representante daqueles que lhe causaram tantos traumas físicos e psicológicos, ainda mais quando se informa que foi necessário um ano de negociação para as filmagens. Não se trata de um simples encontro, mas sim de uma viagem conjunta dos dois àquilo que compartilham: a região em que nasceram e cresceram. Contudo, é um jogo de morde e assopra no qual o cineasta se aproveita da empatia gerada na companhia conjunta e igualmente da fragilidade que Akira demonstra ao revisitar os locais que o recordam da família ao qual foi obrigado a renunciar em nome da religião, além da universidade onde acabou sendo cooptado para a seita, para questioná-lo tanto sobre o ataque em si quanto sobre sua visão teológica e moral e, por vezes, pegá-lo em meio a uma contradição.
Há algo de muito interessante neste embate, mas ele nunca parece alcançar sua plenitude, porque ambos os adversários não estão completamente dispostos a jogar, tornando muito mais sensível a longa duração da produção. De um lado, é louvável que Sakahara evite uma personalização demasiada da sua história, que o colocasse como única vítima do atentado, mas falta ao público entender mais as suas feridas, algo que é mais visualizado através das palavras firmes de seus pais no terceiro ato, ou o peso coletivo do que aconteceu naquele dia, seja contextualizando os interesses do guru em fazê-lo ou as consequências mortais da arma química utilizada. Do outro, Akira é até mais aberto em demonstrar suas facetas pessoais, mas a couraça que investe quando se trata do ataque, não permite ao espectador entender mais nas ideias de seu culto, por mais equivocadas que tenham sido as ações de Asahara e seus seguidores. Por fim, não se alcança a verdadeira dimensão e âmago da questão, nem o perdão que a culpa carregada por ambos ansiava, sobrando apenas uma reparação parcial no encontro dos dois com o passado em comum.
Eu e o Líder da Seita (Aganai / Me and the Cult Leader - A Modern Report on the Banality of Evil, 2020)
Duração: 114 min | Classificação: Livre
Direção: Atsushi Sakahara
Produção: Japão
Áudio e Legendas: japonês | legendas em português
> Sessão – 09/04/2021 (sexta), às 19h00
Disponível no Looke, com limite de até 2.000 visualizações ou prazo de 24 horas; caso não alcancem o limite, retornam no dia seguinte às 12h00 e ficam até as 22h ou o limite de visionamentos estabelecido
O Dissidente (The Dissident, 2020)
Mais tarde, no primeiro título a ser exibido dentro dos programas especiais do ETV 2021, está O Dissidente, que, por sua vez, corre em direção contrária ao rumo dado nos documentários citados antes. O filme de Bryan Fogel, que concorre ao BAFTA justamente neste final de semana, é um retrato em tintas fortes do assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista saudita que antes, até por uma questão estrutural do fechado país, era próximo do sistema do Reino da Arábia Saudita, mas se tornou um dissidente após aumentar o tom de suas críticas ao governo e, mesmo se exilando, foi alvo do príncipe Mohammad bin Salman dentro do consulado de sua nação em Istambul, na Turquia, em 2 de outubro de 2018. O cineasta tem uma predileção por abordar conspirações, como demonstra seu trabalho anterior, Ícaro (2017), vencedor do Oscar na categoria por destrinchar o sistema russo para burlar o dopping nas competições esportivas, e investe no clima de thriller para detalhar as ações calculadas e condenáveis do Estado saudita para dissuadir seus opositores ou qualquer voz dissonante.
Assim, o título diz respeito tanto ao dissidente falecido quanto ao ativista Omar Abdulaziz Alzahrani, com o qual a produção abre mostrando seu eterno estado de alerta, mesmo sendo um asilado político no Canadá. Em certa medida, o filme faz dele um protagonista maior do que o então colunista do The Washington Post com o qual ele se aliou em uma cruzada virtual no Twitter contra o silenciamento de críticas promovido pelo príncipe que diz lutar contra a corrupção, mas aparenta uma sede de poder irrefreável. O documentário faz um resgate da figura de Khashoggi enquanto um jornalista que, mesmo fazendo parte do sistema, não deixava de pontuar a necessidade de reformas em sua nação e outros países dos Oriente Médio bem como a ação da Arábia Saudita para impedir insurreições democráticas na região após a Primavera Árabe, e sua crescente insatisfação com o governo o levando a partir de sua terra rumo aos Estados Unidos, o levando a uma crise familiar sanada ao conhecer a turca Hatice Cengiz e querer se casar com ela, razão pela qual ele precisou buscar seus documentos no consulado naquele dia. Contudo, o personagem é ofuscado constantemente na narrativa por outros elementos trazidos à tona e detalhes de sua trajetória acabam ficando soltos neste mosaico, a exemplo do caso da emissora que abriu no Bahrein e foi fechada no dia seguinte.
Por outro lado, a intenção de construir o documentário como um thriller político se torna uma escolha que traz vantagens e desvantagens consigo. Se os recursos do gênero, como os planos e grafismos, geram um grande apelo ao público norte-americano e a jovens de diversos continentes que são instrumentalizadas em batalhas cibernéticas semelhantes ao apresentado, a sensação de ficcionalização exagerada corrompe a confiança de outra parcela da plateia, que pode acreditar estar assistindo a uma docuficção, seja pela maneira como o registro de Omar e outros entrevistados parece encenado ou pela mão pesada da trilha sonora denotando o suspense e drama. Há ainda a impressão de que pouco se lança luz a novas informações sobre o caso, amplamente divulgado na época e nos meses seguintes pela imprensa mundial, porém, a partir do momento que a sensação de impunidade não só na Arábia Saudita, mas das grandes potências globais em relação ao crime é evidente, respingando na própria dificuldade de Fogel distribuir seu filme – nem a Netflix, que faturou com seu último longa, nem a Amazon de Jeff Bezos, que foi alvo de ataques dos hackers sauditas, tiveram coragem de desafiar MBS –, O Dissidente se torna uma obra necessária para não esquecer que maior do que o perigo de desafiar os poderosos é a ameaça contra a liberdade de expressão se todos resolvem se calar.
O Dissidente (The Dissident, 2020)
Duração: 117 min | Classificação: 16 anos
Direção: Bryan Fogel
Produção: Estados Unidos
Áudio e Legendas: árabe, inglês e turco | legendas em português
> Sessão – 09/04/2021 (sexta), às 21h00
Disponível no Looke por 24 horas ou até o limite de 2.000 visualizações
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