É TUDO VERDADE 2020 | Silêncios familiares
Atualizado: 19 de jan. de 2021
Seguindo uma tendência dos últimos anos de documentários personalistas, Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil (2019) parte da história familiar da cineasta Carol Benjamin para compreender, ou ao menos tentar, a História do país nos últimos 50 anos. A opção da produtora e diretora, em seu primeiro longa solo, se dá pelo fato da trajetória da sua família ter sido atravessada de modo irreversível pelos desmandos da Ditadura. E também porque, tal qual no seu clã, tudo aquilo que permaneceu não dito ecoa nas gerações seguintes como uma herança ingrata no que diz respeito aos rumos da política brasileira.
Após receber a menção especial do júri no festival IDFA de Amsterdã do ano passado, o filme chega em solo nacional no É Tudo Verdade 2020, outro evento especializado no gênero, com a realizadora já apontando a sua dificuldade em esmiuçar o que aconteceu. “Caixa preta é como sempre me referi ao meu pai, uma pessoa que trancou o passado dentro de si”, diz na abertura a filha que sabia sobre as agruras paternas apenas pelo que a avó contava, até que o mesmo resolvesse dar seu primeiro depoimento público, 36 anos depois do ocorrido. Contudo, é a reportagem de uma TV sueca, de 1976, que apresenta primeiramente ao público quem era César Benjamin.
Em 1971, o jovem de 17 anos foi encarcerado ilegalmente pelo governo brasileiro que, através de laudo psicológico atestando que o adolescente tinha uma inteligência de alguém com a idade de 35, alegou a possibilidade de julgá-lo como um adulto e condená-lo a 13 anos de prisão em uma solitária. Essa pressão da mídia no exterior sobre o seu caso, incitada pela Anistia Internacional, foi fundamental para que ele fosse libertado e se exilasse justamente na Suécia, porém, nada disso seria possível sem a luta de sua mãe Iramaya Benjamin. A dona de casa pacata, como a mesma se descreve, se transformou em uma incansável defensora da libertação do filho e, posteriormente, pela lei da Anistia no Brasil.
Apesar de utilizar imagens de arquivo das várias declarações da avó, hoje já falecida, e dos raros depoimentos do pai logo que pisou em solo sueco e, décadas depois, para a Comissão da Verdade, Carol adota essencialmente uma narrativa epistolar. Destaca as duas únicas cartas paternas – uma escrita a ela durante o início do projeto a qual ele não quis se envolver – e as várias que a avó escrevera naquela época para Marianne Eyre, seu principal contato na Anistia Internacional que se tornaria uma amiga e confidente. Em um encontro registrado com ela em Estocolmo, em 2016, a neta resgata essas missivas que contam desde o temor pelo destino do filho na mão dos militares, seja pela sua integridade física ou mental, e seu esforço para tentar minimizar isto até as confissões sobre a crise de seu casamento e a solidão que sentia após conseguir o seu maior objetivo.
A voz off da própria cineasta narrando essas passagens são completadas por imagens ilustrativas e poéticas, que não necessariamente revelam os acontecimentos em si, mas os sentimentos envolvidos. Os cenários lúgubres de uma prisão em um contrastado preto e branco evocam os fantasmas da tortura, as filmagens em 16mm – ou com um filtro que emula-se isto – numa Estocolmo de hoje remetendo à solidão do exílio de outrora e as ondas do mar sempre a afogar tristezas ou a renovar os ânimos dos membros desta família. Destaque, aliás, para o desenho de som de Edison Secco, junto à trilha sonora, na tarefa de ambientar e induzir essas sensações.
Neste recorte pessoal, que abre espaço para apenas uma breve mea culpa da alienação burguesa que César percebeu ao trabalhar na limpeza de uma escola em Estocolmo, mas que não se pretende ir além de seus laços de sangue, como já denota o título, a diretora passa bem rapidamente por detalhes importantes desta reconstituição genealógica, a exemplo do envolvimento dos dois irmãos Benjamin no movimento estudantil e depois na luta armada – o primogênito Cid aparece no registro do belo reencontro com o caçula libertado, ao desembarcar na Suécia. No entanto, é principalmente na figura do pai deles, um oficial do Exército, vindo de uma família militar, que não sabia o que fazer ao ver seus colegas como algozes dos seus filhos, que reside a maior incógnita e, talvez, um diferencial desperdiçado pelo longa na abordagem desse incômodo passado nacional. Se há lacunas neste retrato, Carol faz delas, portanto, parte integrante do documentário para contar a história familiar e do Brasil, como sintetiza ao final, dizendo que “os silêncios são borrachas da memória”.
Duração: 88 min | Classificação: 14 anos
Direção: Carol Benjamin
Produção: Brasil (Rio de Janeiro/RJ)
Áudio e Legendas: diálogos em português e inglês, com legendas em inglês e português
> Sessão – 02/10/2020 (sexta), às 21h00
> Reprise – 03/10/2020 (sábado), às 15h00
No site do É Tudo Verdade ou diretamente no Looke
+ Debate – 03/10/2020 (sábado), às 17h00 no canal do ETV no YouTube
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