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  • Foto do escritorNayara Reynaud

A NUVEM ROSA | Uma nuvem não tão passageira

Atualizado: 8 de jan. de 2023


Renata de Lélis e Eduardo Mendonça em cena do filme brasileiro A Nuvem Rosa (2021), da cineasta gaúcha Iuli Gerbase | Foto: Divulgação (O2 Filmes)

Antes mesmo de qualquer conhecimento científico obtido na escola, a crença do imaginário popular já ensina sobre o caráter premonitório das nuvens acerca das mudanças no clima, como o mais básico aviso das tempestades que virão. Em certa medida, mas não intencionalmente, o filme A Nuvem Rosa (2021) carregou o mesmo dom do elemento natural ao qual alude, não só no título, como também na premissa de sua história. Escrito em 2017 e filmado em 2019, o primeiro longa de Iuli Gerbase mostra como uma nuvem tóxica de cor rosa obriga a humanidade a ficar confinada em suas casas – ou qualquer estabelecimento fechado em que a pessoa estava na hora de sua chegada – e alterar drasticamente as relações interpessoais, sem imaginar que isso ressoaria como um presságio na época de seu lançamento, em plena pandemia de Covid-19.


Depois de estrear na competição internacional do Festival de Sundance deste ano, a produção chegou, há poucos dias, aos cinemas brasileiros e ao Telecine com esse chamariz profético. No entanto, ao saber as bases para a cineasta gaúcha, filha do diretor Carlos Gerbase e da produtora Luciana Tomasi, construir o seu roteiro, é muito claro que suas intenções não eram de vislumbrar cenários apocalípticos e sim utilizá-lo a fim de investigar a natureza humana. Em entrevista ao João Paulo Barreto no site Scream & Yell, a realizadora revela que o projeto veio de sua própria tese de mestrado sobre narrativas e criação de personagens em situações de isolamento em que analisou o trio mandado ao inferno da convivência confinada da peça Entre Quatro Paredes (1944), de Jean Paul Sartre; os convidados ilhados no livro E Não Sobrou Nenhum (antes publicado como O Caso dos Dez Negrinhos, 1939), de Agatha Christie; e os aristocratas presos no salão da mansão do filme O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel.


Mais próxima do existencialismo de Sartre do que do mistério de Christie ou do surrealismo de Buñuel, Gerbase faz da ficção científica o veículo para seu próprio estudo sobre personagens aprisionados. Para tanto, diferente do caminho seguido pelos blockbusters hollywoodianos do gênero, em que a busca por sobrevivência e/ou solucionar o problema mundial que os abate sobrepõe as questões pessoais mais íntimas, a roteirista brasileira trilha os passos de indies norte-americanos como A Outra Terra (2011) e o também “premonitório por acidente” Vou Morrer Amanhã (2020), nos quais o cenário distópico fica em segundo plano para o maior desenvolvimento do drama advindo das relações e reflexões suscitadas nos protagonistas e coadjuvantes a partir de tal situação. O foco, portanto, não está na descrição científica deste universo ficcional, mas na sua apresentação mínima para que a suspensão de descrença por parte do espectador seja suficiente para se ligar mais às figuras humanas do que à lógica.


O calcanhar de Aquiles deste tipo de produção, contudo, reside justamente na predileção por certo distanciamento dos personagens que, além de ter se tornado praticamente um clichê do nicho, atrapalha o público nesta tarefa. Tal qual neste texto, o filme demora a revelar quem, de fato, são Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça), os protagonistas que, logo após se conhecerem, se veem obrigados a conviverem como um casal, quando o evento mundial inesperado deixa o quiropraxista preso no apartamento da designer. É claro que a narrativa encontra no fato de os dois serem praticamente desconhecidos a justificativa para a frieza demonstrada na meia hora inicial, mas ela se torna muito mais interessante quando passa a apresenta-los, especialmente naquilo que vão se tornando ao longo do confinamento, bem como os coadjuvantes, representados na amiga dela que ficou sozinha em casa, na irmã na casa de uma amiga e no pai dele com o cuidador, e aquilo que veem pelas redes sociais.


O público vê e, por conta do que viveu ao longo deste um ano e meio, se identifica com as formas como os personagens se adaptam ao novo contexto, alguns deles à revelia e eternamente inconformados e outros até sentindo certo conforto quando, apesar das limitações, encontram um benefício há muito desejado, ou mesmo medo de retornar à velha realidade que, passado tanto tempo – a noção sobre ele é bem delineada pela narrativa e as elipses temporais –, seria uma novidade para quem nasceu neste mundo. Contudo, o trabalho de Gerbase é menos premonitório e, talvez, mais observacional de desejos e sentimentos conflitantes que sempre habitaram os seres humanos e que afloram em situações-limite como a ficcional e a real da pandemia. É sempre bom lembrar que o “pai da psicanálise” Sigmund Freud, em 1929, e o filósofo Zygmunt Bauman, o replicando ao longo da última década – recomendo este vídeo e este texto no Fronteiras do Pensamento para compreender melhor a ideia –, ou seja, antes de pontos marcantes e definidores na História da Humanidade, já falavam do eterno dilema humano e, portanto, civilizatório da busca por liberdade e segurança, pois, para desfrutarmos mais de uma, abrimos mão da outra e vice-versa, impossibilitados de achar o equilíbrio perfeito entre ambas as necessidades.


Um prisma muito interessante para olhar os rumos da sociedade atual ou as amarras de um relacionamento e as aflições existenciais de um indivíduo, que são os objetos de análise da cineasta neste longa, no qual tal conflito se instala nele em si, igual e para além dos seus protagonistas. De um lado, A Nuvem Rosa busca a liberdade frente à produção cinematográfica nacional histórica ou contemporânea, seja no mergulho em um cinema de gênero pouco explorado por aqui ou nas escolhas estéticas, como na fotografia de tons róseos; do outro, é um filme que se sente confortável na segurança de se manter dentro das referências indie internacionais, sem se arriscar em se aproximar dos personagens ou aprofundar algumas questões que toca superficialmente. Talvez, só uma revisão daqui a algum tempo seja capaz de pontuar mais tecnicamente o que há de mérito ou demérito em tudo isso, pois, seja qual for a opinião do espectador, a sua fruição, atualmente, diz menos sobre o próprio début de Iuli Gerbase do que uma resposta natural, e provavelmente mais fidedigna à proposta da obra, a tudo que tem vivenciado nos últimos meses.

 

A Nuvem Rosa (2021)

Duração: 104 min | Classificação: 16 anos

Direção: Iuli Gerbase

Roteiro: Iuli Gerbase

Elenco: Renata de Lélis, Eduardo Mendonça, Helena Becker, Girley Paes e Kaya Rodrigues (veja + no IMDb)

Distribuição: O2 Play

Plataforma: Telecine, a partir de 2 de setembro de 2021



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