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  • Foto do escritorNayara Reynaud

DOR E GLÓRIA | Quase tudo sobre minha mãe e eu

Atualizado: 26 de fev. de 2021


Antonio Banderas e Julieta Serrano em cena do filme Dor e Glória (2019), de Pedro Almodóvar | Foto: Divulgação (Universal Pictures)

Apesar de todo o glamour em torno da estreia mundial de Dor e Glória (2019) em Cannes, no festival onde Pedro Almodóvar já ganhou prêmios de Melhor Direção por Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e de Roteiro por Volver (2006), o novo filme do cineasta espanhol versa mais sobre o primeiro item do seu título do que o segundo. A glória está no passado para o seu protagonista, o também diretor Salvador Mallo (Antonio Banderas), quando o resquício dela surge na homenagem da Filmoteca de Madrid para a sua carreira, restaurando, depois de 30 anos, o seu trabalho que se tornou um clássico, chamado “Sabor”. No entanto, são justamente as dores de diferentes ordens que deixam os tempos gloriosos no pretérito ao impedirem o homenageado de continuar filmando e fazer aquilo que mais ama.

Ainda no início do longa, seu conturbado estado clínico, de algum modo inspirado no do próprio Pedro, é explicado na sequência de animações assinadas por Juan Gatti, em um estilo de animação vintage e colorida que remete tanto a Saul Bass quanto a videoaulas de anatomia oitentistas. Mesmo que não fossem aí relatadas a ansiedade, depressão e outros males psíquicos, existe um claro paralelo no decorrer do filme entre a dor que o personagem sente em diversas partes do corpo, sendo as piores na cabeça e nas costas, e suas dores da alma, como o cinema melodramático de Almodóvar nunca tem vergonha de dizer. Por isso, o seu bloqueio criativo não ocorre apenas da impossibilidade física, mas igualmente de sua crise pessoal, já que a narrativa da obra se debruça justamente nessa espécie de acerto de contas que ambos os cineastas estão fazendo com seu passado e consigo mesmo.

Na boca de uma personagem, quase ao final, o diretor e roteirista da vida real brinca com a autoficção que aplica aqui, delegando ao ator com quem mais já trabalhou em sua carreira a tarefa de encarnar o seu alter ego Salvador Mallo. Antonio Banderas tem nas mãos, talvez, o grande papel da sua vida, não só porque o realizador ficcional tem os figurinos e o penteado ao estilo Almodóvar, e sim pela composição do personagem que pode construir em detalhes, como a maneira que entra e sai do táxi e o olhar que contém outras dores. É tanto que o artista recebeu o prêmio de Melhor Ator em Cannes pelo trabalho, enquanto o compositor Alberto Iglesias, também velho parceiro do cineasta, foi laureado paralelamente no evento francês pela sua trilha sonora.

Entretanto, quem conhece o cinema almodovariano, sabe que este recurso autoficcional e referente não é inédito, embora o semibiográfico Dor e Glória seja a obra em que ele coloca mais de si no seu espírito e história. A metalinguagem está constantemente presente em sua filmografia, com o filme dentro do filme e cineastas como protagonistas, a exemplo de Abraços Partidos (2009) e A Lei do Desejo (1987), ou outros profissionais do meio, como a atriz de Ata-me! (1990) e a dubladora de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), entre outros. Mas aqui a briga de Mallo com o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia) remete ao próprio rompimento com a diva de seus primeiros trabalhos, a atriz Carmen Maura, após Mulheres..., há 30 anos – e os dois realmente estiveram em uma homenagem na cinemateca madrilena, apesar do reencontro ter se dado anos antes, em Volver –, enquanto o diretor afirma que não está tão mal quanto Salvador e nem recorreu à heroína como ele, apesar da droga já ter sido citada em outros longas, apontando talvez a sua relação como observador da destruição dela em pessoas que lhe eram queridas.

Em vez de relato autobiográfico, porém, o entorpecente serve de ferramenta narrativa como um dos condutores do público às lembranças, divagações ou delírios do personagem sobre sua infância, sendo interpretado por Asier Flores, nesse já conhecido fluxo temporal de seus roteiros que fluem entre passado e presente, trazendo memórias do protagonista bem como pessoas e objetos presentes nelas, a exemplo de Federico Delgado (Leonardo Sbaraglia) e do jovem pedreiro Albañil Eduardo (César Vicente). Assim, o cineasta aborda temas que lhe são caros, como a questão da sexualidade, que é tratada ainda mais abertamente que o seu costume, na maneira emocional com qual trata as descobertas, amores e decepções homossexuais de Salvador. Contudo, se esta é uma história mais masculina do que é comum em seus filmes, este não deixa de exaltar a força feminina, especialmente de sua mãe, como já fez tantas vezes.

Penélope Cruz, outra diva do cineasta que foi alçada ao estrelato mundial após essa parceria, dá vida a essa figura materna na juventude, enquanto outra figura carimbada do diretor, Julieta Serrano, encarna a Jacinta em sua velhice – Cecilia Roth, também uma atriz-fetiche almodovariana, faz uma participação afetiva e Nora Navas interpreta a assistente pessoal do realizador. É justamente Cruz que abre o filme na primeira lembrança infantil do protagonista, com ela e outras lavadeiras na beira do rio, mas a sua personagem é o principal objeto de afeição dele durante todo o longa, seja na formação de seu caráter e lutando pela sua educação, dando vida àquela caverna em Paterna – o branco do lugarejo valenciano, aliás, só agrega na vivacidade da paleta de cores característica do diretor espanhol, do vermelho aos outros tons vibrantes que ele aqui credita serem frutos das suas viagens – ou buscando acertar suas últimas pendências com o filho. No entanto, há certa contenção narrativa e até estética nesta obra, cujo tom se assemelha a de um filme-testamento de Almodóvar; porém, neste acerto de contas de alguém que ainda tem muito a oferecer, Dor e Glória se impõe como uma bela carta de amor ao cinema e, claro, a sua mãe.

 

Dor e Glória (Dolor y Gloria, 2019)

Duração: 113 min | Classificação: 16 anos

Direção: Pedro Almodóvar

Roteiro: Pedro Almodóvar

Elenco: Antonio Banderas, Penélope Cruz, Asier Flores, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Julieta Serrano, César Vicente, Nora Navas, Cecilia Roth, Susi Sánchez, Rosalía, Raúl Arévalo, Agustín Almodóvar e Pedro Casablanc (veja + no IMDb)

Distribuição: Universal Pictures

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