top of page
  • Foto do escritorNayara Reynaud

O BEIJO NO ASFALTO | Quando fake news era fofoca

Atualizado: 18 de fev. de 2021


Luiza Tiso, Otávio Müller, Débora Falabella, Marcelo Flores, Stênio Garcia, Raquel Fabbri, Augusto Madeira, Murilo Benício e Lázaro Ramos em O Beijo no Asfalto (2017) | Foto: Divulgação (Créditos: Antônio Negrini)

“Quem conta um conto, aumenta um ponto”. Tal qual o ditado que nunca envelhece, a nova adaptação cinematográfica da tragédia suburbana carioca O Beijo no Asfalto (2017) demonstra que Nelson Rodrigues está longe de ficar datado. No entanto, Murilo Benício ainda atualiza a obra sem mudar uma vírgula no texto do dramaturgo, quando ele é encenado no primeiro filme do ator como diretor.

Isso porque a principal ousadia do cineasta estreante é colocar o processo de feitura dele na tela, especialmente com trechos do ensaio em destaque. As novas camadas que isso agrega são aquilo que tornam especial esta produção independente, controlada com rigor por Benício que a grava em um teatro transformado em estúdio, sem deixar de lado a relevância inerente a sua origem. A exceção “externa” está na abertura, justamente na tal cena do atropelamento em que Arandir (Lázaro Ramos), em um ato de misericórdia, dá um beijo no último suspiro do rapaz acidentado (Arlindo Lopes).

A ação nunca vista de fato – a cena nem existe na peça –, apenas citada sob diversos pontos de vista, alimenta uma narrativa pública engendrada pelo delegado (Augusto Madeira) que precisava abafar um escândalo e o jornalista (Otávio Müller) que queria um chamariz para vender jornais. A maneira como o tal beijo no asfalto entre dois homens é noticiado e conduzido pela polícia desmorona a vida de Arandir e sua família. Mina o relacionamento com sua mulher Selminha (Débora Falabella) e revela aqueles desejos humanos bem recônditos nas personagens, particularmente de sua cunhada (Luiza Tiso) e seu sogro (Stênio Garcia), que recheiam as tramas rodrigueanas.

No preto e branco do filme reside a hipocrisia moral da sociedade daquele período que reverbera de forma colorida para a plateia de agora, cujos novos nomes e máscaras não escondem os mesmos males da humanidade. Há o lembrete que as notícias falsas, ou simplesmente a fofoca e a mentira, não são exclusividade da era das fake news que se vive atualmente – a calúnia e o preconceito, aliás, já rendeu outras histórias do gênero, como a também adaptação cinematográfica de uma peça, o drama hollywoodiano Infâmia (1961). E a o sublinhado final, com Fernanda Montenegro, que foi a Selminha na montagem original da peça, contando como foi a estreia na época, com os gritos de revolta “em defesa da família”.

O relato é dado durante a leitura da peça, conduzida pelo diretor teatral Amir Haddad, que desconstrói e reconstrói o texto de Nelson para o elenco, nesta homenagem que Murilo faz declaradamente ao ofício de ator. Ele não só apresenta os ensaios, adentra o camarim e acompanha o aquecimento no set, como também revela a entrada dos cenários e o trilho da câmera de Walter Carvalho, que assina a bela fotografia, que adentra o ambiente até que o espectador abstrai da encenação para mergulhar na narrativa. Desta maneira, O Beijo no Asfalto ultrapassa o tributo para versar sobre questões fundamentais da arte e da vida que a inspira: a representação e seu processo são expostos e, com eles, a linha tênue entre verdade e mentira existente tanto na ficção quanto na realidade.

“Nelson equivale a um Shakespeare para nós”

A atriz Luiza Tiso, o diretor Murilo Benício e os atores Débora Falabella e Augusto Madeira na coletiva de imprensa do filme O Beijo no Asfalto, em São Paulo | Foto: Nayara Reynaud

A atriz Luiza Tiso, o diretor Murilo Benício e os atores Débora Falabella e Augusto Madeira na coletiva de imprensa do filme O Beijo no Asfalto, em São Paulo | Foto: Nayara Reynaud

A comparação que o ator Augusto Madeira fez durante a coletiva de imprensa do filme O Beijo no Asfalto, na semana passada (26/11) em São Paulo, foi uma das muitas falas da equipe do longa sobre a importância de Nelson Rodrigues para o teatro e, de modo geral, para a dramaturgia brasileira, “que ainda muita gente não conhece”, frisou Débora Falabella. Por isso, a necessidade de Murilo Benício em querer contar Nelson Rodrigues na sua estreia como diretor, sem querer alterá-lo ou colocar uma lupa entre um ou outro tema.

“Se você mudar uma vírgula, muda a emoção”, justificou o intérprete do delegado Cunha, enquanto o cineasta novato explicava aos jornalistas que, apesar de todo mundo falar sobre, o “atropelamento é a única cena que não existe na peça”, pois ele não desejava começar o filme com a mesa de leitura – que, por sinal, durou quatro horas com histórias incríveis contadas por Fernanda Montenegro sobre sua relação com o autor, mas nem tudo se encaixava na proposta deste projeto, disse o diretor. Aliás, o relato dela sobre a estreia da peça foi deixado na montagem, realizada há muito tempo, e Benício considera sorte o quanto ela soa tão atual para este momento, além do texto ser tão atemporal, porque “o que muda é a tecnologia atual, a gente não evolui”, afirmou.

Com o elenco comentando a hipocrisia da sociedade mostrada pelo dramaturgo no texto, a jovem atriz Luiza Tiso destacou que a história nos leva “a refletir sobre os nossos atos”. Murilo repetiu o velho mantra que resume bem o dilema moral da narrativa, de que “uma mentira contada várias vezes vira verdade”, enquanto Augusto brincou que “pós-verdade é um nome novo para mentira” quando perguntados sobre o problema das fake news. O beijo que o protagonista dá no rapaz acidentado movimenta a trama justamente na maneira como o ato se transforma em uma história maior na boca dos outros e revela que, “até na morte, o homem é julgado”, segundo Falabella, e “como é difícil um amor puro sobreviver em uma sociedade”, de acordo com Madeira.

O ator ainda ressaltou a dificuldade de transpor O Beijo no Asfalto para o cinema, dizendo que “Murilo foi muito feliz em apostar no teatro” como via para isso. Débora seguiu o mesmo caminho, comentando a forma como o filme transita entre as duas linguagens e a sorte de ter Fernanda e Amir Haddad colaborando no estudo da peça, ao mesmo tempo em que Luiza elogiou o fato de Benício, por ser ator, os deixarem livres para trabalhar em cima do texto. É exatamente este processo que interessa ao cineasta estreante que entende o que o elenco está passando e adora ver o making of nos bônus dos DVD’s para entender como foi realizada tal cena.

Por sua vez, ele, que tinha dúvidas antes se a produção se chamaria apenas “O Beijo” ou “O Processo”, rodou o filme em apenas 12 dias, “uma correria”, desabafou. “Todas as cenas, exceto a da mesa são desenhadas, até pela falta de experiência”, explicou, revelando também que ficava até madrugada fazendo a decupagem em casa das sequências de seu novo longa, Pérola, que acabou de filmar. O empolgado diretor acredita que a “cena por si só tem de ser interessante” e levando isso como lema para o seu processo criativo nesta nova área, confessou que “fatalmente você imita, você acha que é original, mas viu em algum lugar e se inspirou inconscientemente” ao falar de sua memória cinematográfica.

 

O Beijo no Asfalto (2017)

Duração: 98 min | Classificação: 14 anos

Direção: Murilo Benício

Roteiro: Murilo Benício, baseado na peça “O Beijo no Asfalto” de Nelson Rodrigues

Elenco: Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos, Débora Falabella, Augusto Madeira, Otávio Müller, Luiza Tiso, Amir Hadad, Stênio Garcia, Raquel Fabri, Marcelo Flores e Arlindo Lopes (veja + no IMDb)

Distribuição: ArtHouse

0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page