MOSTRA SP 2018 | Entrevista com Ash Mayfair, diretora de “A Terceira Esposa”
Atualizado: 17 de fev. de 2021
“É doloroso tanto para o homem quanto para a mulher”, afirma a jovem cineasta vietnamita Ash Mayfair sobre o machismo, tema do qual trata seu filme A Terceira Esposa (2018). No seu drama de época, uma jovem de apenas 14 anos se casa com um rico proprietário de terras e se torna sua terceira esposa, em pleno Vietnã do século XIX. Presente na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a diretora que estudou nos Estados Unidos e filmou seu primeiro longa-metragem na terra natal, fala em entrevista ao NERVOS sobre a inspiração nas mulheres de sua família, as tradições e preconceitos que permanecem no país, a recepção do público e mais a seguir.
Você já fez alguns curtas e A Terceira Esposa é seu primeiro longa. Então, como foi para você começar este novo desafio voltando às suas origens?
Ash Mayfair: Fazer o primeiro já é muito difícil. Levou cinco anos para finalizar o filme. Especialmente neste caso, nós filmamos nas locações, rodamos nas montanhas, nas vilas... Tudo é nas locações, nós não fizemos nada em estúdio. Então, é muito desafiador, mas nunca iria querer de outra maneira. Estudei na New York University e, depois de me formar, alguns dos meus colegas me perguntaram se eu podia fazer algo menor antes, nos Estados Unidos. Mas foi importante voltar para casa, fazer este filme, porque esteve em mim durante tanto tempo.
Você precisava contar esta história.
Sim. E a história está na minha família.
É a minha próxima questão, porque A Terceira Esposa é como uma declaração da força feminina. Então, quem lhe inspirou a criar esta história?
Eu cresci com mulheres, só com mulheres, na verdade. Meu pai faleceu quando eu era muito nova, então, fui criada pela minha mãe, minha avó. E muitos detalhes no filme são inspirados na minha bisavó. Ela se casou muito jovem. A história veio através da filha dela e aí para mim. Então, muito da inspiração veio da minha família.
É uma tradição de gerações de mulheres no Vietnã passarem por esse casamento precoce?
Sim, era muito comum. Ainda é um pouco comum agora, mesmo no século XXI, ainda há esta espécie de eco da história.
Em algumas regiões?
Sim. Não é um arranjo legal, pelo menos, os pais tem que aprovar o casamento. Sociedades tradicionais ainda têm essa ideia. A poligamia é ilegal agora, mas nas vilas pequenas ou áreas mais rurais isso ainda acontece. Garotas muito novas se casam e elas não escolhem seus maridos, como meninas as Ásia do século XIII, XIV. Minha bisavó foi uma de sete esposas e ela viveu até o final dos anos 1980, 1990. Então, não faz tanto tempo, infelizmente, essa situação.
E como foi o processo de pesquisa desse pensamento e dos hábitos do Vietnã do século XIX?
Como te disse, eu vivi numa família que passou por muito dessa história. Então muito da história veio da minha própria família, mas também, quando estava escrevendo o roteiro, fiz muita pesquisa histórica e conversando com outras pessoas. Inevitavelmente, toda mulher com quem eu conversava me falava que a avó viveu isso, que a bisavó foi uma de sete esposas, que elas mesmas tiveram casamentos arranjados e meio que se tornou uma história coletiva que eu estava ouvindo. Foi muito emocionante, porque no momento que nós exibimos o filme, por exemplo, tinha histórias que as pessoas vinham até nós para contar. Essa situação não foi só no Vietnã, mas em outros países asiáticos.
E como foi a recepção no Vietnã?
Nós ainda não exibimos no Vietnã para o público. O elenco, a equipe e minha família vieram assistir na première em Toronto [no festival, onde a produção fez a sua estreia mundial] e eles amaram. Nós exibimos em vários países asiáticos, eles amaram. Então, eu espero que seja boa, mas precisamos fazer os festivais primeiro. Foram oitos festivais desde então, é muito e o meu cérebro não está funcionando direito [risos].
Então é uma boa recepção de modo geral?
Sim, muito bem recebido. É, na verdade, minha parte favorita de fazer o filme é estar disponível para se comunicar com o público e conversar com as pessoas depois. As pessoas vinham falar comigo em Toronto, Espanha, Chicago e alguns deles vinham a mim chorando depois da exibição. E estou muito feliz que uma história vietnamita está viajando tão longe.
Sim, é o meu primeiro filme vietnamita.
Obrigada! Valeu por apoiar o filme e a arte, porque penso que é tão importante. Mesmo que a história se passe há muito tempo atrás e em uma parte diferente do mundo em relação ao Brasil, você responde a isso, o público responde a isso. Acho que fala de algo universal.
Nós podemos não ter a poligamia, mas temos essa espécie de masculinidade tóxica.
É triste porque este tipo de mentalidade é doloroso tanto para o homem quanto para a mulher. Você vê isso no filme também. Ninguém está livre.
Você tem projetos futuros que pode antecipar algo?
Eu amo as mulheres, então, meu próximo filme, que eu finalizei o roteiro, também olha para o feminino de novo. Ele se chama Skin of Youth, é ambientado na cidade de Ho Chi Minh [antiga Saigon] nos anos 1990. É uma história de amor entre essa dançarina transgênero e seu amado, que é um lutador de boxe. Eles precisam ir ao submundo do crime para conseguir o dinheiro da cirurgia de redesignação sexual que ela pode ter. Então, é sobre o que significa ser mulher, física, emocional e legalmente no país.
E hoje em dia é legal lá?
Então... É fluído. Porque não há suporte legal ainda. Os homossexuais não podem se casar, por exemplo, não podem adotar crianças, mas é tolerado do que antes. E os transgêneros, em particular, sofrem muita discriminação. Costuma ser uma espécie de tabu, porque as pessoas são excluídas da comunidade homossexual ou simplesmente consideradas simplesmente loucas: pensar em redesignar ou mudar seu sexo é como uma doença mental. Acho que existe uma verdadeira necessidade de contar este tipo de história.
E, só para terminar, a sua direção, assim como a fotografia se destacam muito. Tem algo que você pode destacar sobre esse processo de feitura do filme?
Sim, a diretora de fotografia [Chananun Chotrungroj] é uma das minhas amigas. Nós fomos para a escola de cinema juntas. Então, pedi a ela para filmar antes mesmo de escrever o roteiro. Nós temos um entendimento uma da outra: às vezes, não preciso nem falar e ela é capaz de encontrar algo extremamente bonito para trabalhar. Você pode gostar disso: no último mês de produção, ela estava grávida. Então, foi muito feminino filmar e outros aspectos. E também é muito incomum ter uma mulher que é diretora de fotografia no Vietnã e o resto da equipe técnica levou um tempo para entender, mas quando eles conseguiram, eles amaram. Ela é uma mulher pequena, mas no set, ela é a chefe.
E não só a fotografia, mas a direção de arte, tudo no filme...
Sou muito sortuda, eu acho. As coisas simplesmente aconteceram naturalmente para se complementar. E a única orientação visual a minha equipe, tanto na direção de arte e na fotografia, é que eu queria que cada quadro parecesse como uma aquarela.
Conexões Nervosas
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> The Sacred Willow: Four Generations in the Life of a Vietnamese Family (1999), livro de Duong Van Mai Elliott, que foi finalista do Prêmio Pulitzer ao contar a História do Vietnã através das vidas de quatro gerações de sua própria família
Eu realmente gosto deste livro, mas é mais histórico do que ficção. E neste livro, ela fala também sobre sua história geracional, sua família. A história da sua família tem a ver com a feminilidade, mas também tem a ver com a História do Vietnã.