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  • Foto do escritorNayara Reynaud

DESOBEDIÊNCIA | Desobedecer a quem?

Atualizado: 16 de out. de 2020


Rachel Weisz, Rachel McAdams e Alessandro Nivola em Desobediência (2017), de Sebastián Lelio | Foto: Divulgação (Sony Pictures)

Seria só mais um sermão do prestigiado rabino de uma sinagoga londrina, mas a cena inicial de Desobediência (2017) é a peça-chave para o primeiro filme em língua inglesa e – parcialmente – em Hollywood do cineasta chileno Sebastián Lelio, que teve o seu Uma Mulher Fantástica (2017) premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro neste ano. Narrativamente, a morte do amado “Rav” Krushka move a adaptação do livro de Naomi Alderman, Disobedience (2006), adaptado para o cinema pelo diretor latino e Rebecca Lenkiewicz, roteirista do polonês Ida (2013) – vencedor da mesma categoria no prêmio da Academia, quatro edições atrás – que volta a trabalhar com um ambiente religioso não só como pano de fundo. É seu falecimento que traz a fotógrafa Ronit, a filha do sacerdote vivida por Rachel Weisz, de volta a essa comunidade de judeus ortodoxos no norte de Londres.

No entanto, logo se percebe que, ali, preferem esquecer este grau de parentesco, evidente no desprezo presente nas entrelinhas do tratamento que dão a ela, apesar da frase padrão de boas vindas entre eles, ou nas linhas do obituário. Diferente do resto, não só pela falta da peruca que diferencia as esposas judias – elas só podem mostrar seu cabelo para o marido em momentos de intimidade –, mas por seu comportamento, ainda que contido por causa do luto pelo pai, a “ovelha negra” da comunidade, que não quis se casar e foi para o mundo, encontra abrigo apenas nos velhos amigos de infância, Dovid Kuperman (Alessandro Nivola), o “herdeiro” do rabino Krushka para toda a comunidade, e sua esposa Esti (Rachel McAdams). Contudo, a situação não é exatamente confortável e a tensão silenciosa denuncia que havia bem mais que amizade entre Ronit e a agora Sra. Kuperman.

Esse clima é mantido por Lelio, que constrói a narrativa através de um desvelar paciente de sua trama, deixando, por exemplo, à letra de Lovesong do The Cure, com sua marcante introdução “Sempre que estou sozinho com você / Você me faz sentir como se eu estivesse em casa novamente”, a tarefa de esclarecer os sentimentos de suas personagens melhor do que diálogos expositivos – e ainda na mesma cena, interromper a música quando o verso mais declaratório do refrão chega, dizendo que não importa a distância, “eu sempre vou te amar”, como se uma delas quisesse esconder esse “amor proibido”. Quando ele não é mais reprimido, permanece no ar a iminência da tragédia anunciada que ronda vários romances e dramas lésbicos, porém o cineasta desobedece este clichê.

O chileno também prefere uma direção discreta: a câmera se agita em um jantar quase familiar, mas a contenção daquele ambiente também permanece na sua condução segura, que deixa a desobediência mais à vista em Ronit e Esti deixando aflorar esta paixão, contando para isso, com a ótima performance das Rachel’s. Se a McAdams se destaca mais, apesar da posição de protagonismo de Weisz, é talvez por uma desprendimento maior de sua imagem em favor dessa mulher dividida entre desejos e ímpetos naturais e deveres morais e religiosos. E se este, como outros trabalhos de Sebastián, é um filme extremamente feminino, isso não impede que Nivola se destaque com um coadjuvante igualmente complexo, que vai contra o que os seus ou o público espera dele.

É o poder da desobediência a Deus, que diferencia os homens dos animais, como já alertava o rabino, relembrando o conceito de livre-arbítrio em seu sermão na abertura do longa e que permeia as ações dos personagens durante toda a narrativa. Ao ser centrada dentro de uma das religiões mais antigas do mundo, na qual as mulheres continuam a ser separadas fisicamente dos homens nas sinagogas, é muito fácil ater a história apenas a uma crítica ao judaísmo, mas Ronit e Esti são novas figuras que se juntam ao rol das personagens mais recentes de Lelio que ousam desobedecer o conservadorismo, no já citado Uma Mulher Fantástica e em Gloria (2013) – que ganhará um remake hollywoodiano dirigido pelo próprio em breve –, especialmente através da livre expressão de sua sexualidade ou de seu corpo. Neste sentido, é curioso como o espectador demora a compreender em qual período se passa a trama: é certo que a arquitetura londrina ajuda, porém, todo resto pode levar a crer inicialmente de que se trata de uma história de época, quando na verdade é contemporânea, mostrando não somente como aquela comunidade parou no tempo, mas também questionando se a sociedade como um todo não fez o mesmo.

No meio desse contexto, é lá no início de Desobediência que se encontra o ato mais sensível do qual o título e obra falam, quando ao falar do livre-arbítrio no que seria seu sermão final, um pai escolhe o perdão e oferece desculpas, ainda que subentendidos e não declarados em testamento.

 

Desobediência (Disobedience, 2017)

Duração: 114 min | Classificação: 14 anos

Direção: Sebastián Lelio

Roteiro: Sebastián Lelio e Rebecca Lenkiewicz, baseado no livro “Disobedience” de Naomi Alderman

Elenco: Rachel Weisz, Rachel McAdams, Alessandro Nivola, Anton Lesser, Allan Corduner, Cara Horgan e Mark Stobbart (veja + no IMDb)

Distribuição: Sony Pictures

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