top of page
  • Foto do escritorCauê Petito

CINE PE 2018 | O encontro do cinema brasileiro com as HQs

Atualizado: 1 de mai. de 2021


Pôster do documentário Henfil (2017) | Divulgação

A 22ª edição do Cine PE – Festival do Audiovisual chegou ao fim na noite desta terça-feira (5), no Cinema São Luiz, e consagrou o documentário Henfil (2017) como o Melhor Longa-Metragem escolhido pelo Júri Oficial do evento e pelo Júri Popular. Dirigido por Angela Zoé, a trama resgata a história de Henrique de Souza Filho (1944-1988), cartunista, jornalista e escritor mineiro mais conhecido como Henfil. A vitória surpreendeu a muitos, já que o documentário Marcha Cega (2018), que retrata a violenta repressão policial nas manifestações em São Paulo era um forte e atual concorrente. Tal vitória, no entanto, surpreendeu por fortalecer uma conexão em comum entre alguns dos destaques e vencedores do festival: tais obras eram ligadas, de alguma forma, por histórias em quadrinhos. São elas: Mulheres Alteradas (2018), do diretor Luis Pinheiro – filme que teve a responsabilidade de abrir o festival fora de competição, pela mostra Hors-Concours –, e O Consertador de Coisas Miúdas (2018), dirigido por Marcos Buccini – que também lançou o livro História do Cinema de Animação em Pernambuco neste Cine PE –, que levou os prêmios de melhor montagem e melhor trilha sonora.

Se as histórias em quadrinhos podem funcionar, para muitos, como storyboards de cinema, é uma forma de arte que depende, do ponto de vista de desenho, de apenas uma pessoa para executá-la. O quadrinista migrado para o audiovisual Rafael Grampá diz: “desenhar é algo que vem puro pra mim, uma ideia que surge na minha cabeça, é filtrada só por mim, passa pelo meu braço e eu materializo ela, sem a intervenção de mais nada”. Em comparação com um filme – uma máquina que precisa de centenas de pessoas para que seja realizado –, a arte das histórias em quadrinhos é uma das mais pessoais e solitárias que existe, permitindo a invenção de mundos fantásticos e criaturas maiores que a vida sem milhões de dólares em orçamento requeridos para as grandes produções de Hollywood.

É interessante notar, então, como as HQs alternativas – aquelas que não têm como foco atos heroicos e grandiloquentes – têm encontrado espaço fora desse circuito de blockbusters e, se isso é algo que sempre pairou no cinema do exterior em produções como Anti-Herói Americano (2003), Marcas da Violência (2005) e Azul é A Cor Mais Quente (2013) – respectivamente um vencedor da mostra Un Certain Regard, um indicado à Palma de Ouro e um vencedor da mesma no Festival de Cannes –, nota-se neste Cine PE 2018 uma atenção ao universo dos quadrinhos – ignorando o termo graphic novel que parece desmerecer a linguagem em sua intenção de separar os quadrinhos para adultos e crianças – que reflete o próprio interesse do cinema brasileiro atual pelos mesmos. Só neste ano tivemos o lançamento de Motorrad (2018), filme de Vicente Amorim inspirado na vindoura HQ de Danilo Beyruth, e ainda teremos Tungstênio (2018), dirigido por Heitor Dhalia e baseado na HQ de Marcello Quintanilha com estreia prevista para junho, O Doutrinador (2018) – esta que segue um caminho mais super-heróico que evoca personagens como O Justiceiro, da Marvel –, dirigido por Gustavo Bonafé com base nos quadrinhos de Luciano Cunha e estreia prevista para setembro, e por último Turma da Mônica – Laços (2018), dirigido por Daniel Rezende, de Bingo – O Rei das Manhãs (2017), com estreia prevista para dezembro.

Cena de O Consertador de Coisas Miúdas (2017) | Divulgação

A diversidade temática dessas vindouras produções reflete àquelas vistas aqui, no Cine PE 2018. Cada uma delas rev(f)erencia e dialoga com o material de inspiração de formas diferentes, de maneira quase progressiva, quase desconstrutiva. Em O Consertador de Coisas Miúdas, baseado nos quadrinhos de João Lin, o que se tem é uma tradução quase literal, com o texto do quadrinho, que já era uma narração, transposto em sua maior parte para o roteiro. Pode ser o mais fiel, também, por ser uma animação, onde a facilidade de reproduzir aquelas páginas é facilitada. Ainda assim, é aqui que as escolhas criativas saltam e o diretor pernambucano Marcos Buccini faz a diferença: ao invés de transpor também o chiaroescuro da HQ original, com seus contrastes em preto e branco, seu curta foge deste estilo, adicionando cores e um traço mais definido (até mesmo por facilidade em animá-los). Ainda que ele homenageie o estilo dos quadrinhos em determinado momento, sua premiação como melhor trilha sonora e montagem no Cine PE são merecidas justamente por representarem estas escolhas narrativas que transformam O Consertador de Coisas Miúdas em mais do que uma cópia de papel carbono, e sim uma obra que eleva o material de origem, mesmo sendo, possivelmente, a adaptação mais literal entre os filmes discutidos aqui.

Pôster de Mulheres Alteradas (2018) | Divulgação (Downtown Filmes / Paris Filmes)

Esse conflito entre a tradução literal e a adaptação necessária acaba sendo mais notado em Mulheres Alteradas, que é baseado nas cultuadas tiras da argentina Maitena e estrelado por Deborah Secco, Alessandra Negrini, Monica Iozzi e Maria Casadevall. Ainda que busque a fidelidade ao material de origem através de sua direção de arte que aposta em cenários de cores primárias e vivas, atuações cartunescas e uma direção de fotografia de movimentos de câmera expressivos, Mulheres Alteradas parece fascinado pelo fato de ser um filme em quadrinhos, referenciando a obra de Maitena diretamente ao transformar, literalmente, suas protagonistas em suas versões desenhadas em determinados momentos. No entanto, esta é a obra que mais parece justificar suas escolhas narrativas apenas por ser um filme baseado no universo das histórias em quadrinhos. Se Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010), filme também baseado em quadrinhos e dirigido por Edgar Wright – e que este lembra constantemente pela forma que tenta abraçar o material de origem –, funcionava tanto, era porque o estilo daquele diretor, de diálogos e linguagem naturalmente ágil casava perfeitamente com os quadrinhos de Bryan Lee O'malley. O filme de Luís Pinheiro, no entanto, parece encarar a fidelidade ao material de origem como um desafio, mesclando estes elementos estilizados com algum cerne emocional mais realista, e se o plano no qual acompanhamos a personagem de Deborah Secco chorando enquanto sorri na janela de um táxi deveria representar uma libertação feminina, ele perde força por parecer descolado do resto de uma narrativa onde tais temas são tratados de forma leve e exagerada, como a cena divertida onde o orgasmo da personagem vivida por Alessandra Negrini é representada quase como uma viagem astral, com suas expressões de prazer sempre através de caretas.

E é justamente a personagem de Negrini que parece mais saída de um cartoon, contrapondo abordagens mais realistas como a de Monica Iozzi. Dessa forma, as adaptações vistas em Mulheres Alteradas funcionam pontualmente, mas acabam sendo problemáticas em seu todo. A transição já citada que se repete algumas vezes aqui – a das mulheres de carne e osso para suas versões desenhadas das tiras originais – evidenciam este sintoma. Ao invés das personagens bidimensionais ganharem vida no cinema, o que ocorre é o literal e figurado oposto.

No terceiro olhar para os quadrinhos, voltamos à Henfil, que representa uma visão documental, que observa diretamente a linguagem, mesmo que a use de início como pontapé para explorar a persona de seu artista-título retratado. Nesse sentido, a fidelidade tão discutida neste texto parece vir aqui da forma mais surpreendente: com um protagonista de um senso de humor e uma personalidade tão marcantes que contagia toda a narrativa, a obra de Henrique de Souza Filho, o cartunista Henfil, ganha vida neste documentário, soando como a representação mais fiel de obras originais vista aqui. Isto pode se dar, é claro, ao fato de que seus trabalhos mais renomados – as charges políticas como conhecemos hoje que tanto ajudou a popularizar – no jornal carioca O Pasquim sejam o tipo de trabalho que está ligado diretamente às visões políticas e sociais de seu artista. Girando em torno de um grupo de estudo de jovens que pretendem realizar uma animação digital em homenagem ao artista enquanto aprendem, junto com a audiência, mais sobre ele, Henfil acaba ligando de várias formas as diversas questões levantadas nesta narrativa dos quadrinhos no Cine PE 2018, já que fala sobre o potencial esquecimento que heranças culturais como Henfil e sua obra podem sofrer enquanto preza para que isso nunca aconteça; trata dessa migração dos quadrinhos para o cinema de forma literal com o próprio cartunista se aventurando pela sétima arte no seu filme Tanga (Deu no New York Times?) (1987); o que nos leva justamente à relação deste artista com o exterior, retratada em sua ânsia por ser publicado no jornal The New York Times – algo que finalmente conseguiu em seu óbito –, que evidencia a necessidade mista de aproximação – ou seria aprovação? – e embate da linguagem dos quadrinhos, e do cinema de quadrinhos, nacional com o exterior. Um embate que era lembrado constantemente nos saquinhos da pipoca vendida na entrada do Cinema São Luiz, templo onde eram exibidas as sessões do festival, estampadas com heróis de histórias em quadrinhos, unindo um cenário de atmosfera totalmente brasileira com um inusitado estrangeirismo.

São estas as relações curiosas entre a sétima e nona arte, sempre juntas, complementares, inspirando e reproduzindo uma a outra que ganharam destaque neste Cine PE 2018.


0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page