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Foto do escritorNayara Reynaud

É TUDO VERDADE 2018 | Não esquecer: um ato de resistência

Atualizado: 15 de ago. de 2020

Particularmente, a última sexta-feira, por acaso, 13, foi dia do É Tudo Verdade 2018 mostrar como o ser humano pode ser suficientemente macabro, sem a necessidade de um vilão fantástico ou sobrenatural de filme de terror. Primeiro, com a cabine de imprensa de Elegia de Um Crime (2018), capítulo final da “Trilogia do Luto” de Cristiano Burlan, em que, agora, o cineasta mergulha na memória de sua mãe, assassinada pelo parceiro em 2011. A “pancada” seguinte veio na primeira sessão de Auto de Resistência (2018), longa de estreia de Natasha Neri e Lula Carvalho sobre as mortes de jovens em decorrência de ações policiais no Rio de Janeiro: antes do filme, teve discurso emocionado de uma representante do Movimento Mães de Maio, que surgiu devido a casos semelhantes ocorrido em São Paulo, em maio de 2006, como resposta aos ataques coordenados pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC); ao final, gritos de “Marielle Presente” e “Anderson Presente” entre os aplausos da plateia; e, depois, o silêncio. Talvez, do incômodo das autoridades e da Justiça silenciadas em uma impunidade que permeia as duas obras.

 
Registro do documentário Elegia de Um Crime (2018), de Cristiano Burlan | Foto: Divulgação (Festival É Tudo Verdade)

Assim como em Mataram Meu Irmão (2013), em que uma ligação puxa o fio de um novelo cheio de nós, largado em um canto escuro da memória do cineasta, Cristiano Burlan inicia o seu novo trabalho, Elegia de Um Crime, tentando fazer uma denúncia à polícia sobre o paradeiro do assassino de sua mãe, Isabel Burlan da Silva, morta em 24 de fevereiro de 2011 pelo então companheiro Jurandir Muniz de Alcântara, foragido desde então. Por mais que não seja necessariamente a primeira cena – aqui, ela vem na sequência de uma das muitas confissões em off do diretor com a visão de um carro em uma estrada, enquanto, no outro filme, as ruas de São Paulo eram o cenário atrás do para-brisa –, o telefonema sobre a parte mais dolorosa, e também revoltante neste caso, novamente serve de ponto de partida para o seu recolher de lembranças sobre um ente querido falecido em circunstâncias trágicas, nesta que é a terceira e última parte da “Trilogia do Luto” em que o prolífico realizador de curtas e longas documentais e de ficção acessa diretamente seus dramas familiares.

As mortes do pai, alcoólatra, que faleceu após uma queda em uma briga, em 2004, e do irmão Rafael, assassinado a tiros ao tentar cobrar sua participação em um roubo de carro cujo mandante era um policial, em 2001, são citadas vagamente no título mais recente, por já terem sido exploradas nos capítulos anteriores da trilogia: a homenagem paterna ao pedreiro Vânio no média-metragem Construção (2007), pelo qual foi vaiado no festival É Tudo Verdade daquele ano, e o citado Mataram Meu Irmão, longa pelo qual ganhou o prêmio principal do mesmo festival, seis anos depois. Voltando à 23ª edição do evento para encerrar esse ciclo, Burlan repete o feito de partir de um tema muito pessoal para explorar uma questão social, no mesmo esquema de se aproximar de um indivíduo para representar o todo, como fez antes com Rafael para abordar a violência endêmica na periferia paulistana. O foco agora recai sobre a violência contra a mulher, outro problema sociocultural do país e uma sombra que parecia perseguir Isabel, segundo os depoimentos de familiares e amigos.

Para tanto, o diretor abandona a paisagem de São Paulo, que tanto explorou em sua filmografia, para buscar suas origens no Rio Grande do Sul e os últimos anos de vida de sua mãe em Uberlândia, Minas Gerais. De certo modo, também abandona certas restrições, com sua câmera não evitando, por medo de parecer sensacionalista, registrar algumas confissões e emoções, assim como representar seu sentimento de vingança, seja pela procura pelo assassino ao lado de uma jornalista policial local ou na cena em que treina sua pontaria em um clube de tiro. Em uma família marcada pela violência – os irmãos Ricardo e Tiago tiveram passagens pela cadeia e é meio difícil o espectador não sentir pena de Keli, justamente a irmã que descobriu o corpo da mãe enforcada em casa –, Cristiano termina o documentário afirmando que seu crime é filmar, algo que ele já declarara outras vezes pelo seu estilo de cinema de guerrilha e por acreditar que “rouba” a imagem do outro ao filmá-lo, mas que aqui soa como uma culpa: seja pelo ímpeto de querer registrar a sua mãe, quando morta, ou por ser um ponto fora da curva da trágica sina familiar.

 

Duração: 92 min | Classificação: 12 anos

Direção: Cristiano Burlan

Produção: Brasil / São Paulo-SP

Áudio e Legendas: diálogos em português, com legendas eletrônicas em inglês

> IMS Paulista / São Paulo – 20/04/2018 às 19h00

> IMS Paulista / São Paulo – 20/04/2018 às 21h00

> IMS Rio / Rio de Janeiro – 21/04/2018 às 16h00

> Sesc 24 de Maio / São Paulo – 22/04/2018 às 15h00

 
Cena do documentário Auto de Resistência (2018) | Foto: Divulgação (Festival É Tudo Verdade)

Com o mesmo intuito, mas não necessariamente a mesma maneira, de Cristiano Burlan, a pesquisadora Natasha Neri e o diretor de fotografia Lula Carvalho revelam as pessoas que existem por trás das estatísticas ao personalizar alguns dos engrossam os números de mortes em ocorrências policiais no Rio de Janeiro, em Auto de Resistência, primeiro longa em que assinam a direção. O título é retirado dos autos de resistência, utilizados em exaustão por agentes de segurança no Brasil para justificar a morte de um suspeito em suas ações, alegando resistência à prisão e legítima defesa. O documentário em si, porém, apresenta relatos e evidências de como os fatos são bem diferentes dos registrados ao destacar alguns dos vários casos de violência policial no conturbado cenário carioca, ocorridos nos últimos anos.

Sem interferência direta, a dupla de diretores colhe os depoimentos de familiares, especialmente mães “órfãs” – como dizem, não há palavra que defina algo tão antinatural quanto perder um filho – e amigos de vítimas, e também sobreviventes de chacinas entre a rotina diária, protestos e audiências. O tribunal, aliás, é um cenário recorrente, embora a Justiça pareça distante dos personagens retratados pelo filme, que também registra uma CPI sobre o assunto, aberta em 2015 e ainda infrutífera, e a soltura de PM’s que aguardam julgamento. Tudo isso costurado por uma montagem dinâmica em transitar pelos casos e cenários, sempre envolvendo o público para suscitar a indignação que pretende gerar.

E antes de qualquer reclamação, é sempre bom lembrar que o documentário permite não só a escolha de um recorte, mas como um posicionamento por parte de seus autores, diferente de uma reportagem jornalística que deve buscar a imparcialidade e mostrar todos os lados da notícia. Ainda assim, há voz para o “outro lado” da narrativa de Auto de Resistência com os depoimentos oficiais dos acusados nas audiências e, mesmo que as mortes de policiais no meio da crítica violência urbana no Rio sejam citadas justamente em discursos de advogados e políticos repletos de lugar comum e vazios de argumentação e empatia, existe uma preocupação de Neri e Carvalho em não personalizar os “algozes”, primeiro na escolha precavida, juridicamente falando, de não mostrar os rostos dos PM’s e, principalmente, ao tratar a questão como uma violência de Estado, citando como estes indivíduos, muitas vezes da mesma origem e raça da maioria das vítimas, são treinados sob um estigma que não só bandido, mas “suspeito bom, é suspeito morto”, e são abandonados quando replicam uma mentalidade da própria instituição em um caso de repercussão. Por isso, esse documentário conversa muito com outro concorrente da competição de longas nacionais, Missão 115 (2018), sobre esse legado de letalidade das forças de segurança brasileiras, observado também no atentado do Riocentro abordado na obra de Silvio Da-Rin, além de guardar o sentimento de impunidade do já citado Elegia de um Crime.

Sentimento ainda presente quando, brevemente no meio de protestos registrados pelo doc, aparece a figura de Marielle Franco, ainda antes de se tornar vereadora, mas já atuante na questão da violência urbana, tanto nos casos de abuso policial que se tornaram sua bandeira quanto no apoio a famílias de polícias atingidos pelo mesmo drama. Ainda mais porque a estreia do filme era justamente na véspera do dia em que se completou um mês do assassinato dela e de seu motorista Anderson Gomes, se tornando mais um dos rostos deste fúnebre mosaico da tragédia carioca que combatia.

 

Duração: 104 min | Classificação: 16 anos

Direção: Natasha Neri e Lula Carvalho

Produção: Brasil / Rio de Janeiro-RJ

Áudio e Legendas: diálogos em português, com legendas eletrônicas em inglês

> Estação NET Botafogo / Rio de Janeiro – 15/04/2018 às 20h30

> IMS Rio / Rio de Janeiro – 17/04/2018 às 16h00

> Sesc 24 de Maio / São Paulo – 19/04/2018 às 15h00


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