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  • Foto do escritorNayara Reynaud

OLHAR 2020 | Dia 5

Atualizado: 28 de out. de 2020

Confira os destaques deste quinto dia de programação do 9ª edição do Olhar de Cinema:

 

O Ano do Descobrimento (El Año del Descubrimiento, 2020)


Cena do documentário espanhol O Ano do Descobrimento (2020), de Luis López Carrasco | Foto: Divulgação

As mais de três horas de duração de O Ano do Descobrimento (2020) podem assustar, mas não devem espantar o espectador interessado tanto em um mergulho profundo na História da Espanha no século XX e seus reflexos na sociedade espanhola atual quanto em experimentações de linguagem e estética cinematográfica. O diretor Luis López Carrasco toma como ponto de partida para isso o ano de 1992, muito significativo para o país que, após décadas da ditadura de Francisco Franco, era governado pelo Partido Socialista Operário Espanhol há um decênio e queria se mostrar moderno para a Europa e o mundo, especialmente com a realização dos Jogos Olímpicos de Barcelona e da Expo Sevilha, mas sentia a crise industrial apertar sua população, especialmente na cidade de Cartagena, culminando em revoltas populares e bombas no parlamento local. O título de seu segundo longa vem do fato de que, naquele momento, também era comemorado os 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América, enquanto o documentário exibido no Festival de Roterdã e vencedor do Cinéma du Réel enxerga a data como um descobrimento da própria nação sobre suas forças e vicissitudes em um “exercício de exumação de traumas coletivos”, como bem diz sua sinopse.


Para tanto, o cineasta filma conversas em um bar e restaurante de Cartagena como se estivesse em 1992, embora depois de um tempo, fique claro que se trata do tempo presente e que várias questões remetem a um passado mais antigo ao das manifestações que incendiaram a região. A estética VHS vinda do captação em Hi8 (Video8) contribuiu para esta sensação, bem como o uso pontual de reportagens televisivas e propagandas institucionais da época evocando a ideia de progresso no país concomitante à tensão no mundo recém-saído da Guerra Fria. A dicotomia, aliás, é um ponto de partida da obra a ser expressa visualmente na escolha por uma tela dividida em dois quadrados sobre o fundo preto com a qual Carrasco, em alguns momentos, isola um bate-papo ou relato específico ou, na maioria das vezes, os contrapõe com imagens de outros frequentadores do estabelecimento, gerando sentidos complementares, a exemplo da diferença entre gerações que estão presentes naquele recinto.


De um lado, os mais velhos, acostumados por gerações a trabalharem a vida toda nas indústrias da região. Estas, por sua vez, fecharam inúmeros postos de trabalho ou até unidades no início da década de 1990, após as mudanças globais no capitalismo desde os anos 70 e a modernização do parque industrial nacional a partir dos anos 80 para promover o ingresso da Espanha na então Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia, selando um fim um tanto traumático para a classe trabalhadora local. Do outro, estão os jovens, sofrendo com a falta de emprego e a instabilidade de vagas mal remuneradas, apesar do maior grau de instrução em relação aos seus pais. Um resultado tanto da crise econômica espanhola de 2008, que, em seu momento mais crítico, gerou uma taxa de 25% de desemprego entre a juventude do país, quanto das consequências locais pela mudança estrutural da economia regional do segundo para o terceiro setor. Algo que transpassa, especialmente, pelas falas sobre o município vizinho de La Union, em que uma jovem professora fala da sua experiência com crianças agressivas e a interferência das drogas em suas vivências.


Contudo, a oposição não se se restringe a um aspecto apenas geracional, pois dentro de uma mesma faixa etária, é possível observar igualmente as feridas ainda abertas da Guerra Civil Espanhola, o saudosismo pelo franquismo, a luta feminista, a ode ao sindicalismo ou a decepção pelo partido operário que os abandonou no momento em que mais precisavam, bem como um rapaz defendendo o serviço militar obrigatório e outro exigindo do amigo uma postura contestatória quanto aos direitos trabalhistas. Na realidade, a contradição reside em um mesmo indivíduo, demonstrada no relato de uma mulher cuja mãe, apesar do sofrimento e da fome de outrora, acreditava que o passado era melhor, ou no trabalhador que precisava do emprego na indústria que causava uma poluição prejudicial a sua família. Ou nas problemáticas de difícil resolução em voga naquela nação a exemplo da autonomia das comunidades espanholas gerando, ao mesmo tempo, preservação da cultura e barreiras dentro do país, e dos imigrantes que chegam hoje lá, sendo que os próprios espanhóis emigraram em seus tempos difíceis.


O próprio filme faz dessas contradições uma inspiração para a transformação da sua linguagem ao longo da narrativa. A primeira hora da produção, intitulada “Acredito que vivi isto?”, pode até fazer o público questionar se há algum hibridismo entre ficção e documentário no registro daquelas conversas casuais que levantam ene questões para debate. A segunda, chamada “E o mundo te come”, deixa mais clara tanto a estrutura de seu anacronismo quanto o seu caráter documental ao mesclar alguns depoimentos, ainda que não diretos à câmera, às falas entre amigos vistas desde o início, com a diferença de uma gradativa interação do diretor no meio dessas discussões. Algo ainda mais utilizado na terceira, nomeada “Queimar um parlamento”, que se dedica às manifestações operárias na região, recorrendo às imagens dos protestos na época e relatos mais diretos sobre os envolvidos nele, com certa dose de autocrítica pela escalada de violência e decepção pelos resultados parciais obtidos.


De certo modo, a obra perde gradualmente a sua ousadia estética e narrativa do começo, mas não o seu conteúdo, com um aprofundamento ainda maior no passado ainda presente na Espanha contemporânea. Há ainda uma constatação das dificuldades dos jovens recriarem um movimento parecido dentro das condições do modelo capitalista atual, que limita sua união, mas não o crescente pensamento extremista na Europa, uma observação que pode ser estendida mundialmente, inclusive para o Brasil. Um sentimento de impotência transparecido mais nos sonhos dessa juventude do que os mesmo são capazes de compreender.

 

O Ano do Descobrimento (El Año del Descubrimiento, 2020)

Duração: 200 min | Classificação: 12 anos

Direção: Luis López Carrasco (veja + no site)

Produção: Espanha e Suíça

> Sessão – 12/10/2020 (segunda), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte

No site do Olhar de Cinema

 

Responsabilidade Empresarial (Responsabilidad Empresarial, 2020)


Cena do documentário argentino Responsabilidade Empresarial (2020), de Jonathan Perel | Foto: Divulgação

Quando se fala o “nome completo” da ditadura civil-militar é para lembrar que, apesar de comandada por militares, regimes ditatoriais como os que dominaram o Brasil e praticamente toda a América Latina na segunda metade do século XX contaram com a conivência, cooperação ou até orquestração de agentes civis. Em especial da iniciativa privada interessada pelo controle das massas, particularmente de seus próprios trabalhadores. Um pecado pouco confessado ao qual o documentário argentino Responsabilidade Empresarial (2020) vem relembrar de forma direta, embora inusitada.


Tendo como base o livro Responsabilidade Empresarial por Crimes Contra a Humanidade, Repressão aos Trabalhadores durante Terrorismo do Estado (2015), que traz o relatório governamental sobre a colaboração de várias empresas à instauração e manutenção da ditadura na Argentina – disponível no site infojus.gob.ar –, em detrimento da integridade de seus próprios funcionários, o diretor Jonathan Perel enumera os atos de cada uma delas, estacionando seu carro em frente de suas próprias fábricas ou sedes por todo o país. O logo das marcas surge na tela e, então, a imagem, por de trás do para-brisa, revela a imponência industrial, por vezes ultrapassada, da fachada de refinarias, siderúrgicas, mineradoras, estaleiros, montadoras, indústrias de porcelana, processamento de alimentos e calçados e até do jornal conservador La Nueva Provincia, que entregaram as listas dos trabalhadores sindicalizados ou permitiram que os mesmos fossem levados ou torturados dentro da própria propriedade; em alguns casos, algo que era assistido sadicamente pelos próprios diretores ou era mostrado de modo intimidante aos colegas. Revela-se que algumas disponibilizaram até seus veículos ou unidades habitacionais para o regime e seus agentes e que, na maioria, essa repressão se deu logo no dia do golpe de Estado ou até antes, deixando clara a participação empresarial nele, assim como os benefícios que ganharam, mesmo no declínio ditatorial, com a estatização de dívidas públicas em 1982, além do significativo apagamento dos arquivos do grupo alimentício Molinos dos operários detidos, mortos ou desaparecidos naquele período.


O interessante dispositivo do filme exibido no último Festival de Berlim sofre um pouco com a repetição de seu formato. No entanto, o conteúdo mantém a atenção do público ao revelar na sua segunda meia hora a participação das filiais de multinacionais internacionais, especialmente as indústrias automobilísticas Ford, Mercedes-Benz e Fiat, bem como a empresa de carnes Swift e a de calçados e têxtil Alpargatas, todas com unidades ou sucursais no Brasil. O que deixa evidente que, se um material de pesquisa semelhante sobre a atuação do empresariado brasileiro durante a Ditadura fosse a base para um documentário do mesmo estilo, revelaria igual cooperação da iniciativa privada na perseguição do Estado aos membros dos sindicatos, para se livrar dos “trabalhadores indesejados”.

 

Responsabilidade Empresarial (Responsabilidad Empresarial, 2020)

Duração: 68 min | Classificação: 12 anos

Direção: Jonathan Perel

Roteiro: Jonathan Perel (veja + no site)

Produção: Argentina

> Sessão – 12/10/2020 (segunda), disponível das 6h às 5h59 do dia seguinte

No site do Olhar de Cinema



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