Nayara Reynaud
GRAMADO 2021 | Questionamento da real identidade gaúcha
Atualizado: 20 de set. de 2021
O 49º Festival de Cinema de Gramado começou na última sexta, 13, e segue até o próximo sábado, 21 de agosto, repetindo o formato virtual em parceria com o Canal Brasil realizado no ano passado, por causa da pandemia de Covid-19. A diferença desta edição de 2021 em relação à anterior é que o evento exibiu, pela primeira vez, os longas gaúchos na programação de TV do canal, junto das mostras competitivas nacionais, e não apenas disponibilizou os títulos na plataforma de streaming Canais Globo ou no Globoplay, onde se encontram também os selecionados da Mostra Gaúcha de Curtas-Metragens. É claro que o número maior de produções na seleção, indo de apenas um longa em 2020 para três neste ano, foi fundamental para fazer tal promoção dos filmes locais, mas também é importante destacar um eixo em comum neles, também repercutido por vários curtas, em relação ao questionamento de qual é a real identidade do estado, bem diferente daquela que é comumente atribuída aos “gaúchos”, seja por uma impressão errônea vinda de fora ou por um pensamento das elites locais que ajudam a promover parcialmente essa visão europeizada de sua população.
Esse é o mote principal de Cavalo de Santo (2021, foto no topo), documentário apresentado no primeiro dia do festival. Trata-se de uma obra audiovisual derivada do livro homônimo que é fruto do trabalho de dez anos de pesquisa em terreiros no Rio Grande do Sul realizado pela fotógrafa Mirian Fichtner, que também assina a direção do longa ao lado de Carlos Caramez. É, antes de tudo, uma produção que reafirma a forte presença negra na história da formação do estado, a despeito do enfoque quase único dado à intensa imigração europeia no século passado, e ainda se faz presente na atualidade, tanto através da alta concentração populacional na região metropolitana de Porto Alegre quanto na resistência dos cultos religiosos afro-brasileiros explorados e visibilizados por esta obra.
O título conversa diretamente com o Bloco 4 da Mostra Gaúcha de Curtas, que, com exceção das animações Hora Feliz (2021), de Alex Sernambi, e Trem do Tempo (2020), de Vitor Rezende Mendonça, que destoam temática ou tecnicamente do restante, versa sobre racismo, a exemplo da fragmentada narrativa de Love do Amor (2019), de Fabrício Koltermann, e especialmente valorização de elementos da cultura negra. Neste sentido, o curta documental Isso me Faz Pensar (2019), de Hopi Chapman, apresenta com dinamismo para o público um retrato da cultura hip hop porto-alegrense e alguns de seus personagens contemporâneos. E se a performance de Brecha (2021), de Helena Thofehrn Lessa, acaba esvaziando esse sentido de resistência em um discurso sobre masculinidade pouco efetivo, Rufus (2019), de Eduardo Reis, o retoma em uma interessante história de um padre que se encanta pelos clássicos do rap e começa a compor secretamente os seus primeiros versos.
O questionamento sobre essa herança gaúcha se mantem, por outro viés, no segundo longa local apresentado, o terror psicológico A Colmeia (2019, foto acima), de Gilson Vargas. Centrado em uma comunidade isolada de imigrantes alemães, a produção questiona a impressão errônea de que os estrangeiros foram sempre recebidos com acolhimento e respeito, seja por parte do governo ou da sociedade brasileira, até na região Sul que, hoje, tanto se orgulha dessas influências europeias; ao mesmo tempo em que – infelizmente – apenas toca na perseguição aos indígenas no estado, então chamados pejorativamente de “bugres”. A grande questão do filme, no entanto, é que, no flerte inconclusivo com o horror folk ou terror rural para a construção de uma atmosfera, há um exagero ao priorizar a frieza do relacionamento entre os personagens, que impede o público de identificar a natureza dessas relações e criar empatia por eles nesse ambiente asfixiante.
O reflexo desses preconceitos e da repressão culturalmente imposta que são trabalhados nessa ficção aparece na realidade mostrada pelo documentário Extermínio (2021, foto abaixo), o terceiro e último longa do estado exibido no festival. O primeiro trabalho de Mirela Kruel no formato toma como ponto de partida o assassinato de uma jovem mulher trans em Cachoeira do Sul, em 2016, para traçar uma panorama mais amplo, seja local ou nacionalmente. A documentarista equilibra o formalismo dos depoimentos dos pais e, especialmente, das amigas da vítima com sequências de quase performance para apresentar suas personagens e abordar as dificuldades e a transfobia vivida por elas naquela cidade do interior gaúcho que representa o cenário encontrado em várias partes do país.
A produção conversa diretamente com o título que abre o bloco temático 1 dos curtas estaduais, dedicado às questões de gênero. Jardim das Horas (2020), de Matheus Piccoli, trabalha a questão da transsexualidade em um roteiro que não precisa apelar para diálogos expositivos para subentender a relação de pai e filha frente à demência e o preconceito dele, e o esforço dela em esquecer isto para dar conforto a ele e restabelecer uma relação de carinho entre os dois. Completam o segmento os romances LGBT’s Cacicus (2021), simpático coming of age de Bruno Cabral e Gabriela Dullius, e Depois da Meia Noite (2020), realizado pela própria Mirela Kruel em uma narrativa quase clichê, e a ficção Era Uma Vez... Uma Princesa (2021), de Lisiane Cohen, que emula uma narrativa documental sobre um caso, igual a tantos reais, de machismo e violência doméstica.
Em adição, o Bloco 2 discorre sobre relações familiares, com grande destaque à maternidade, desde o primeiro curta, Um Dia de Primavera (2020), drama de Lisi Kieling, no qual este é um status surpreendentemente descoberto pela protagonista. Os chavões sentimentalistas da introdução de Nave Mãe (2021) são contrapostos com depoimentos mais realistas e diversos sobre as várias facetas da maternidade, a exemplo do abandono parental, não-planejamento, casais homossexuais e etc., no documentário de Gisa Galaverna e Wagner Costa; no superficial Fé (2020), a diretora Thais Fernandes apresenta a espiritualidade sem rótulos religiosos de sua mãe; e o texto poético inspirado em Esopo de Tormenta (2021), de Emiliano Cunha e Vado Vergara, traz uma experiência vaga sobre o nascimento de uma criança em um período tão turbulento quanto agora – ou qualquer outro da história do mundo? Uma filha e também mãe é igualmente a protagonista oculta de Não Sou Eu (2021), exercício em que o cineasta Theo Tajes discute a memória e seu desvanecer através de fotos familiares antigas, ao passo em que as dificuldades da relação entre pai e filha de Rota (2021), de Mariani Ferreira, são agravadas pelo distanciamento imposto pela pandemia e nem as facilidades virtuais são capazes de restabelecer esta comunicação. A distância também leva ao não pertencimento para personagens que, tal qual a trama de Comboio Pra Lua (2020), produção que Rebeca Francoff rodou em Portugal, ficam entre anseios e frustrações, enquanto a bela animação 2D Tom (2020), de Felippe Steffens, encerra o segmento acompanhando um cão astronauta à espera de sua antiga companheira de viagem.
Para fechar a seleção de curtas gaúchos, o Bloco 3 traz como conceito em comum as crises existenciais de seus protagonistas, começando pelo campo profissional em Solilóquio (2020), filme de Marcelo Stifelman que se inspira na peça A Gaivota (1896), de Anton Tchekhov, para trazer o monólogo de uma atriz refletindo sobre sua função; e a comédia dramática Nilson Filho do Campeão (2021), de Diego Tafarel, acompanha um homem tentando superar o fim de um relacionamento e os trabalhos precarizados que encontra. No conjunto, há duas produções locais que entraram na competição nacional, o intrigante Eu Não Sou um Robô (2021), que pode ser uma ótima paródia de Gabriela Lamas sobre a juventude atual e suas intensas reflexões, de questionamentos válidos sobre a humanidade, mas baseados em pouca vivência de fato, ou uma narrativa que risivelmente aparenta uma complexidade que não possui; e o impactante drama Desvirtude (2021), em que Gautier Lee sobrepõe o caráter importante de denúncia da trama, baseada em um caso real de racismo em uma universidade, ante a naturalidade que o texto e o elenco não conseguem entregar para o público em geral, não apenas aquele já sensibilizado pela questão, se envolver de verdade com a personagem. Em um tom diferente de todo o resto, Noite Macabra (2020), de Felipe Iesbick, é o representante do terror na seleção, sendo um slasher com toques de musical ao estilo oitentista de uma história que parece saída da franquia Uma Noite de Crime, mas recheada de humor e cujo cinismo final é mais crítico em seu comentário social.
Veja as fichas dos filmes no site
Veja as fichas dos filmes no site
Comments