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Foto do escritorNayara Reynaud

É TUDO VERDADE 2020 | Holocaustos esquecidos

Atualizado: 16 de set. de 2022

Indígenas escravizados pela Companhia Amazônica Peruana em imagem do documentário nacional Segredos do Putumayo (2020), de Aurélio Michiles | Foto: Divulgação (Festival É Tudo Verdade)

Um daqueles documentários que revela ao grande público eventos históricos intencionalmente obliterados da memória coletiva, Segredos de Putumayo (2020) encerra a competição de longas nacionais do festival É Tudo Verdade 2020 resgatando um dos capítulos mais sangrentos do contínuo genocídio indígena na América do Sul. O cineasta Aurélio Michiles já demonstrava interesse pelo tema ao abordar o massacre dos índios Yanomami em seu primeiro filme, o curta documental Davi Contra Golias, Brasil Caim (1993). Agora, o diretor de Tudo Por Amor ao Cinema (2015) resgata um episódio que data do ciclo da borracha na Amazônia, através do olhar estrangeiro e crítico do humanista irlandês Roger Casement (1864-1916) na expedição do então diplomata britânico até à bacia de Putamayo, na fronteira entre Peru e Colômbia.


Antes, o filme abre com um preâmbulo das imagens do Congo em 1900, onde o cônsul do Reino Unido denunciou as atrocidades cometidas pelo rei belga Leopoldo II na sua colônia particular. Uma das poucas cartelas explicativas utilizadas pela produção explica isso e que o mesmo depois viria a trabalhar em cidades brasileiras, para então seguir os passos descritos pelo seu diário da viagem iniciada em Belém, em 1910. O ator irlandês Stephen Rea empresta sua voz para narrar as impressões do compatriota desde as condições de vida dos índios morando à beira do rio no Brasil até adentrar nos horrores que testemunharia na região de La Chorrera, na qual a Companhia Amazônica Peruana, comandada pelos irmãos Araña e com capital inglês, submetia as populações indígenas locais a um regime de semiescravidão na cultura extrativista da borracha, o ouro branco da Amazônia naquela época.


Fotos e imagens realizadas por Casement junto de outros registros da época são mescladas com as filmagens atuais em preto e branco dos locais descritos, em uma aproximação entre o maculado passado e um presente com poucas mudanças. Michiles também usa como dispositivo pontuais flashes de Dori Carvalho interpretando o diplomata e entrevistas sob a mesma estética. Os apontamentos do historiador irlandês Angus Mitchell e do escritor amazonense Milton Hatoum são breves e acrescentam algumas informações pertinentes: o autor relembra, por exemplo, como por trás do sonho daqueles 30, 40 anos de esplendor dos grandes centros regionais, a cidade peruana de Iquitos e as capitais brasileiras de Manaus e Belém, está o pesadelo na selva.


Mas o motor da narrativa estão nos relatos do que Roger presenciou junto aos depoimentos dos descendentes dos indígenas obrigados a servir como seringueiros, que repassam as histórias dos seus avós sobreviventes. Levados a isso porque eram ou ameaçados ou raptados diretamente de suas aldeias, milhares foram submetidos a um sistema de trabalho que os deixava eternamente endividados e presos ao lugar, onde vários morreram por inanição, sofriam castigos físicos, estupros ou foram sumariamente executados pelos funcionários da companhia em sua embriaguez. “Mais que escravidão, genocídio”, reclama um deles, já que as etnias locais quase foram dizimadas: dos 60 mil habitantes antes estimados na região, sobraram cerca de 300 em 1934 e, hoje, menos de 3 mil habitam o lugar.


As denúncias de abuso e violação aos direitos humanos em Putumayo foram descritas em um relatório de Casement, depois publicado no Livro Azul, em 1912, que se tornou um escândalo. Júlio Cezar Araña chegou a tentar mascará-las com um filme que escondia as reais condições dos trabalhadores, realizado por Silvino Santos (1886-1970), o cineasta luso-brasileiro pioneiro, responsável pelo clássico documentário No Paiz das Amazonas (1922) e que foi retratado por Michelis no docudrama O Cineasta da Selva (1997). Segredos de Putumayo não chega detalhar, mas mesmo depois da derrocada da companhia, a população ameríndia continuou a ser massacrada na região por outras empresas seringalistas ou pelo próprio governo colombiano.


O longa, por sua vez, segue os passos do diplomata em seu último ato. Transformado por tudo que vira na África e na América do Sul, Casement se torna um revolucionário pela causa irlandesa, que sofria por séculos de domínio britânico, e na luta pela sua libertação acaba sendo preso e morto sob a acusação de traição em 1916. A Irlanda só asseguraria a sua independência em 1937 e ele seria devidamente enterrado sob as honras de um herói patriota em 1965.


É uma trajetória interessante, embora a escolha narrativa por tê-lo como protagonista até o fim distraia um pouco do foco da questão indígena. Deste final, resta ao espectador brasileiro o paralelo marcante da sequência que remonta aos primeiros massacres dos colonizadores espanhóis e portugueses, com o texto de Roger os ligando ao que acontecia nas Primeiras Repúblicas sul-americanas e a direção de Michelis os associando às imagens dos enfrentamentos do século XXI. Decerto, todos os governos que passaram pelo Brasil guardam a sua mácula neste sentido, seja por omissão ou políticas altamente prejudiciais aos povos nativos – basta lembrar o caso de Belo Monte com consequências graves ainda em curso na região do Xingu –, mas quando o atual escancara sem vergonha o seu desprezo pelas populações originárias, a memória de Putumayo se torna ainda mais urgente.

 

Duração: 83 min | Classificação: 14 anos

Direção: Aurélio Michiles

Produção: Brasil (São Paulo/SP)

Áudio e Legendas: diálogos em português, espanhol e inglês, com legendas em português

> Sessão – 03/10/2020 (sábado), às 21h00

> Reprise – 04/10/2020 (domingo), às 15h00

No site do É Tudo Verdade ou diretamente no Looke

+ Debate – 04/10/2020 (domingo), às 17h00 no canal do ETV no YouTube



2 comentários

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2 comentários


marcel.barone
12 de out. de 2021

O texto sobre o documentário do Massacre de Putumayo não citou a obra de Mario Vargas Llosa, "O Sonho do Celta", de 2010. Não houve uma adaptação para o roteiro?

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Nayara Reynaud
Nayara Reynaud
07 de jan. de 2022
Respondendo a

Marcel, antes de tudo, desculpe pela demora na resposta. Então, como faz tempo que assisti ao documentário, pode ser que me engane, mas realmente não lembro de nenhuma citação ao livro do Llosa, nem nos créditos do filme. Talvez, a obra, ao menos, tenha servido de ponto de partida para o diretor, mas aí é só achismo meu.

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