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  • Foto do escritorNayara Reynaud

VOU MORRER AMANHÃ | Epidemia existencial

Atualizado: 18 de out. de 2021


Kate Lyn Sheil em cena do filme norte-americano Vou Morrer Amanhã (She Dies Tomorrow, 2020), de Amy Seimetz | Foto: Divulgação (Synapse Distribution)

Marcado para estrear mundialmente em março do ano passado, durante o festival South by Southwest, Vou Morrer Amanhã (She Dies Tomorrow, 2020) teve a sua première adiada por conta da chegada da pandemia de Covid-19 nos Estados Unidos, que cancelou a realização presencial do evento. Quando foi exibido na versão virtual do SXSW, meses depois, o filme de Amy Seimetz ganhou, sem querer, uma nova camada de leitura para o público, justamente por reverberar o que acontecia fora das telas nestes tempos críticos. Isso ocorre tanto por causa de um elemento circunstancial da curiosa sinopse que remete a este cenário pandêmico quanto pelo sentimento universal e atemporal por ela aflorado.


A princípio, porém, o segundo longa da atriz e realizadora que, por de trás das câmeras já dirigiu o terror Sun Don't Shine (2012) e foi cocriadora da série antológica The Girlfriend Experience (2016-) – baseada no filme Confissões de uma Garota de Programa (2009), de Steven Soderbergh –, é difícil de decifrar. Seimetz não oferece muitos detalhes para apresentar Amy (Kate Lyn Sheil), a personagem que primeiro aparece e tem maior destaque em uma narrativa que depois se revela, gradualmente, coral. Em quase 20 minutos iniciais, o espectador observa momentos fragmentados de angústia dessa mulher, em meio à casa onde ela ainda não tirou suas coisas da caixa de mudança, regados a muita bebida e Réquiem de Mozart.


Somente quando Jane (Jane Adams), preocupada com o seu estado, vai lhe fazer uma visita, é que se entende o motivo de sua agonia: Amy tem certeza de que vai morrer amanhã e, por isso, tenta dar alguma utilidade as suas horas finais ou encontrar uma para sua própria morte. A amiga acredita ser apenas uma besteira que a jovem falou por conta do álcool, mas ao retornar ao lar, ela logo é atingida pelo mesmo pensamento de que seu fim será no dia seguinte, ainda que o sentimento certeiro não seja acompanhado de nenhum prenúncio ou sintoma do que poderia lhe causar isto. O filme, então, ganha corpo nesse miolo, quando esta epifania, representada cinematograficamente por luzes coloridas e vozes esparsas, se mostra contagiosa, conforme são introduzidos outros personagens interpretados por nomes mais conhecidos do público ou famosos na cena indie norte-americana, como Katie Aselton, Chris Messina, Tunde Adebimpe, Jennifer Kim, Josh Lucas, Adam Wingard, Michelle Rodriguez e Olivia Taylor Dudley, enquanto a narrativa retorna, em alguns pontos, às lembranças da protagonista e seu relacionamento com Craig (Kentucker Audley).


A cineasta já afirmou que essa ideia veio da própria experiência de lidar com sua ansiedade, quando percebeu que espalhava o seu pânico aos outros na medida em que falava direto sobre isso, ao mesmo tempo em que as notícias e o cenário de polarização política também propagavam este sentimento a todos. No entanto, a diretora não faz desta história, necessariamente, um retrato fidedigno dessas crises, analisando do ponto de vista psicológico, e sim uma representação sintomática de um contexto atual que fomenta na população um aparecimento cada vez maior destes transtornos, tal qual a depressão. É possível identificar nos personagens, por mais que sejam pouco desenvolvidos pelo roteiro de Seimetz, o recorte dessas gerações que veem o seu modo de vida hedonista ser confrontado por crises econômicas e conflitos sociopolíticos que se intensificam, gerando uma aflição existencialista que é externada pela alegoria da trama. E, obviamente, a pandemia agravou essa sensação coletiva, fazendo com que a mensagem dessa produção também ecoe de modo mais profundo, a partir do momento em que o medo da morte se torna constante sob a ameaça iminente do vírus e, consequentemente, o temor por ele gerado se viraliza de modo natural entre as pessoas.


Essa perspectiva tão palpável da realidade ajuda a pôr em suspenso alguns pontos discutíveis de Vou Morrer Amanhã. O longa passeia por diversos caminhos, desde o drama fantástico, por origem, assim como extrai o humor e o horror de tal situação, porém, Seimetz faz isso através de uma rota mais experimental, o que resulta em uma rejeição a obviedades e, paradoxalmente, uma recorrência a certos clichês de apatia do cinema indie, a exemplo da falta de aprofundamento das figuras humanas que poderiam gerar maior empatia e identificação no público. Contudo, tanto a narrativa ficcional quanto a observação do contexto real apontam para o fato de que o ser humano reage de diversas maneiras quando confrontado com a morte, temendo-a, paralisando a si mesmo ou até ignorando a sua ameaça. Portanto, por mais que o espectador possa imaginar como o conceito do filme poderia ter sido mais explorado, de acordo com seu próprio ponto de vista cinematográfico, mas principalmente sobre o tema, esses questionamentos são a prova de que a obra é eficiente ao instigar tal debate existencial.

 

Vou Morrer Amanhã (She Dies Tomorrow, 2020)

Duração: 86 min | Classificação: 14 anos

Direção: Amy Seimetz

Roteiro: Amy Seimetz

Elenco: Kate Lyn Sheil, Jane Adams, Kentucker Audley, Katie Aselton, Chris Messina, Tunde Adebimpe, Jennifer Kim, Josh Lucas, Adam Wingard, Michelle Rodriguez e Olivia Taylor Dudley (veja + no IMDb)

Distribuição: Synapse Distribution

Plataformas: Apple TV, Google Play, iTunes, NOW, Sky Play, Vivo Play e YouTube (VOD), a partir de 19 de fevereiro de 2021



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