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  • Foto do escritorNayara Reynaud

LUCE | Visões opacas

Atualizado: 18 de abr. de 2021


Octavia Spencer, Kelvin Harrison Jr. e Naomi Watts em cena do filme Luce (2019), de Julius Onah | Foto: Divulgação

Diferentemente do significado na origem latina do nome de seu personagem-título, nada é tão translúcido em Luce (2019), um filme que joga luz sobre a ambivalência que a sociedade contemporânea trata questões de raça, gênero, classe e tantas mais, ao mesmo tempo em que não deseja iluminar nenhuma resposta clara para os questionamentos de sua trama e reflexões que provoca no espectador.


O cenário, porém, parece perfeito no início de seu quadro, quando o público é apresentado ao protagonista sendo louvado por todos ao seu redor após seu discurso em um evento escolar. A força de sua oratória é só um dos predicados do currículo excepcional de Luce (Kelvin Harrison Jr.), um jovem negro que se encaixa, ou foi encaixado, no típico papel do estudante exemplar de passado trágico, já que foi resgatado de uma zona de guerra na África, no caso da Eritreia, e adotado por um casal branco norte-americano, Amy e Peter Edgar (Naomi Watts e Tim Roth), que passou anos cuidando de seus traumas até ele chegar nesse nível de excelência que esperam dele.


Mas este ideal de perfeição é colocado em dúvida por sua rígida professora de História, Harriet Wilson (Octavia Spencer), quando ela aponta à mãe do aluno o conteúdo de uma controversa redação em que o rapaz escolhe o porta-voz do pan-africanismo Frantz Fanon como figura histórica para servir de ponto de vista para seu texto. A docente teme que a defesa da violência contra o colonialismo na África, feita pelo ensaísta da Martinica, possa refletir a própria opinião de Luce, ainda mais quando encontra fogos de artifício no armário do estudante. O filho, por sua vez, reclama desse comportamento intrometido dela com ele e seus colegas, se instalando aí a ponta de uma grande dúvida na cabeça dos pais e do espectador.


Se Julius Onah começa a produção com menos prestígio que seu protagonista para aqueles que se apegam aos nomes e carreiras dos diretores, dado seu trabalho anterior no questionável O Paradoxo Cloverfield (2018) e antes no menor The Girl Is in Trouble (2015), o cineasta traça um caminho inverso ao longo dessa adaptação da peça homônima de J.C. Lee, encenada em 2013, nos Estados Unidos da era Obama, e que ganha mais significados ao chegar à tela na América de Trump. Com uma direção discreta, o realizador sabe que a força do filme, exibido no Festival de Sundance e de Tribeca do ano passado, está nos seus diálogos, desde a origem teatral, mesmo que algumas discussões soem mais encenadas do que naturais. Até porque a própria naturalidade é posta em dúvida dentro de uma história sobre pessoas que precisam suprimir partes de si para se encaixar nesse “sonho de vida americano”, mesmo sob o prisma mais liberal e progressista deles.


Por isso, o roteiro coescrito pelo diretor e pelo próprio dramaturgo funciona bem narrativamente, tanto enquanto drama como thriller psicológico, porém é mais astuto aos instigar no espectador um ciclo constante de questionamento e compreensão do ponto de vista de cada um dos personagens, desde o quarteto principal aos coadjuvantes Stephanie Kim (Andrea Bang) e Deshaun Meeks (Astro). Por vezes, o público é colocado a pensar que Luce pode ser vítima de uma perseguição por parte da professora e da idealização que fazem dele, mas, em outros momentos, se depara com possíveis traços de sociopatia nele. Uma ambiguidade sustentada pela ótima interpretação de Kelvin Harrison Jr., que apareceu antes no terror Ao Cair da Noite (2017) e também ganhou destaque na última temporada de premiações do cinema independente com o drama Waves (2019), mas que recebeu uma indicação de Melhor Ator Principal no Spirit Awards por este personagem obscuro – a produção ainda foi indicada a Melhor Direção e Atriz Coadjuvante para Octavia Spencer, ganhando um papel diferente dos que geralmente são oferecidos a ela e retribuindo bem a oferta.


Contudo, é igualmente um artifício narrativo que Onah e Lee usam para colocar o público em alerta sobre a sua própria percepção acerca do protagonista, ao tentar moldá-lo ou confrontá-lo com os estereótipos extremamente opostos que permeiam sua vida, seja de alguém fadado a sucumbir à violência ou da excelência sobrehumana, sem espaço para um meio termo mais realista. Há na sua figura uma discussão sobre racismo, especialmente a partir do tokenismo, em que o exemplo de sucesso dele é tão desejado por toda escola e comunidade, como se isso apagasse o fracasso sistêmico que abate seus outros colegas negros, assim como na apropriação que a professora faz de questões pessoais de seus alunos como estandarte para pautas sociais, o debate entre individualidade e coletivismo mostra outro viés. Se há o risco do filme ser visto tal qual o personagem, dependendo da visão que o espectador escolher, para muitos é um alento Luce não se entregar a resoluções fáceis em tempos de simplificação da complexidade humana.

 

Luce (Luce, 2019)

Duração: 109 min | Classificação: 16 anos

Direção: Julius Onah

Roteiro: J.C. Lee e Julius Onah, baseado na peça “Luce” de J.C. Lee

Elenco: Kelvin Harrison Jr., Octavia Spencer, Naomi Watts, Tim Roth, Andrea Bang, Marsha Stephanie Blake, Astro, Norbert Leo Butz, Omar Shariff Brunson Jr. e Noah Gaynor (veja + no IMDb)

Plataforma: Telecine Play, a partir de 6 de julho de 2020



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