MARTIN EDEN | No vácuo entre dois mundos
Atualizado: 4 de ago. de 2021
O mundo que navegava era grande o bastante para o marinheiro Martin Eden até que, por um acaso, o seu breve heroísmo de defender um rapaz que estava sendo espancado no cais, vai levá-lo a conhecer outro mundo, ou simplesmente outra parte dele, quando o acompanha até a casa dele e descobre que se trata de um pequeno palacete da família do jovem aristocrata. Lá, o iletrado marujo é apresentado à beleza das palavras e da irmã do garoto que salvou, se apaixonando por ambas e decidindo que é através da escrita que vai poder possuí-las. Esse é o mote de Martin Eden (1909), romance com traços semibiográficos do renomado escritor norte-americano Jack London, cujo cenário de Oakland do início do século XX foi transportado para a Nápoles de um tempo vago na adaptação do cineasta da região, Pietro Marcello.
Segundo longa ficcional do diretor com uma carreira dedicada aos documentários, Martin Eden (2019) mostra, 110 anos depois, que os dilemas do protagonista do livro são atemporais e universais. Há elementos sugestivos a várias décadas, desde o figurino burguês remetendo às primeiras do século passado, enquanto a direção e mise-en-scène de Marcello recordam estilos diversos, parecendo que a produção foi rodada nos anos 1950, 60 ou 70. Isso se deve tanto pela escolha de filmar apenas em 16mm, o que rende uma fluidez orgânica entre as suas filmagens e as antigas imagens documentais restauradas do cotidiano do povo, quanto por essa invocação do espírito do Neorrealismo italiano quanto da linguagem errante da Nouvelle Vague francesa no começo do longa.
Esse teletransporte físico e temporal reforça mais a vocação do personagem de London em ser uma representação de vários artistas, ou aspirantes a isso, ascendentes das classes mais baixas da população, com o seu desejo ardente por ser um escritor primoroso. Na interpretação de Luca Marinelli, justamente premiado com o Volpi Cup de Melhor Ator no último Festival de Veneza, o público conhece um intenso Martin Eden, mesmo com as nuances de cada fase da sua transformação. E tudo começa quando ele se apaixona à primeira vista por Elena Orsini (Jessica Cressy), a sua musa que aqui faz as vezes da Ruth Morse da história original.
Neste primeiro encontro, porém, já fica claro que a diferença de classes sociais será um empecilho para esse amor, seja nos olhares que recebe dos habitantes e criadas da casa de Arturo (Giustiniano Alpi), o tal jovem que salvou, ou na correção gramatical que a moça estudada faz no italiano do belo rapaz de falar napolitano. Ela lhe aconselha sobre a necessidade de concluir os estudos formais para ser o escritor que ele sonha, mas sem chances de fazê-lo, Martin recorre aos livros para se aculturar. No entanto, o conhecimento que ele ganha não é sinônimo direto de mudança financeira em sua condição de vida.
Na realidade, como o quadro impressionista que ele admira e se espanta no início, a alta classe lhe parece maravilhosa no início até que, de perto, assemelha-se apenas a borrões imperfeitos para ele. Neste ínterim, as discussões políticas surgem em sua vida – especialmente com a figura de Russ Brissenden (Carlo Cecchi), não tão bem integrada à narrativa – como um tópico de (des)interesse, a partir do momento em que suas críticas apontam a fragilidade da utopia socialista em seus colegas trabalhadores e que adquire um nojo do liberalismo na hipocrisia que observa na burguesia. Adepto do individualismo, o rapaz fica cada vez mais desiludido com ambos “os lados” ao ver os vícios de cada espectro sociopolítico, se sentindo perdido em um vácuo entre classes e pensamentos.
Esse Paraíso prenunciado em seu sobrenome é algo que Martin Eden nunca alcança, mesmo quando realiza seus sonhos em um terceiro ato que se mostra tão cansado quanto ele. Frente ao desenvolvimento mais paciente de antes, esta parte surge quase como um prólogo atropelado, em que a brusca mudança temporal não só traz uma ruptura da imagem física do protagonista, mas principalmente dos sentimentos que o atormentam neste momento, em uma desconexão que atrapalha a empatia que o público havia construído por ele até então. Não deixa de ser uma jornada parecida com a do próprio personagem, indo do encantamento à desilusão; entretanto, diferente dele, o espectador ainda será capaz de enxergar os méritos do filme.
Martin Eden (Martin Eden, 2019)
Duração: 129 min | Classificação: 14 anos
Direção: Pietro Marcello
Roteiro: Pietro Marcello e Maurizio Braucci, baseado no livro “Martin Eden” de Jack London
Elenco: Luca Marinelli, Jessica Cressy, Vincenzo Nemolato, Marco Leonardi, Denise Sardisco, Carmen Pommella, Carlo Cecchi, Autilia Ranieri, Elisabetta Valgoi, Pietro Ragusa, Savino Paparella, Vincenza Modica e Giustiniano Alpi (veja + no IMDb)
Distribuição: Pagu Pictures
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