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Foto do escritorNayara Reynaud

AS GOLPISTAS | Contragolpe

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Jennifer Lopez e Constance Wu em cena do filme As Golpistas (Hustlers, 2019) de Lorena Scafaria | Foto: Divulgação (Diamond Films)

Se há um golpe bem-vindo no cinema de Lorene Scafaria é a maneira como a norte-americana inverte expectativas na mescla de gêneros de seus trabalhos. Foi assim na sua apocalíptica estreia na direção, Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo (2012), e no seu segundo longa, a dramédia materna A Intrometida (2015), que aparentavam ser puras comédias e se revelam bem dramáticos durante o seu percurso narrativo. Mais ingredientes são adicionados na mistura de sua terceira obra, mas o resultado de As Golpistas (2019) se mostra mais equilibrado: se há a estrutura de um típico filme de assalto e os procedimentos, truques e sensualidade do mergulhar na rotina das strippers, já explorada recentemente no contexto masculino por Steven Soderbergh, a cineasta não se limita a isso, usando sua receita própria para apresentar de forma genuína esta narrativa feminina.

A história real do grupo de mulheres que “pegava” o dinheiro de alguns homens de Wall Street é mais uma produção de Adam McKay e Will Farrell com interesse por este coração financeiro-corporativo concentrado em Nova York e, consequentemente, a Crise Econômica de 2008 que estourou a partir dali e quebrou não só os Estados Unidos como outros países pelo mundo. A diferença entre este mundo de poucos e o universo de muitos cuja vida é determinada pelos primeiros é delineada pela trama baseada no artigo The Hustlers at Scores, de Jessica Pressler, publicado pela New York Magazine em 2015. Alterando os nomes envolvidos, o roteiro de Scafaria adota Destiny (Constance Wu) como protagonista, acompanhando-a desde 2007, quando ela começa a trabalhar em uma boate de strip-tease frequentada pelos funcionários dos mais diferentes escalões das organizações e empresas da região nova-iorquina.

Através de seus olhos – e da fotografia de Todd Banhazl, vindo de videoclipes como o filme do álbum visual Dirty Computer (2018) –, o público conhece, assim como a jovem em seu primeiro dia, a hipnótica Ramona (Jennifer Lopez), a experiente stripper que é uma espécie de líder das garotas do local. De imediato, ela protege a novata, de modo literal e figurativamente, ao adotá-la como sua aprendiz e ensiná-la os truques da profissão. Desenvolve-se uma relação de amizade entre as duas que, por motivos pessoais e pelo contexto nacional, é rompida por alguns anos, até que elas se reencontram em tempos mais difíceis e a “mestra” coloca a antiga pupila no esquema que formou com a colega Mercedes (Keke Palmer) e a iniciante Annabelle (Lili Reinhart) para embebedar e drogar velhos clientes delas e torrar o cartão deles.

Essa linha do tempo, por algumas vezes, faz um zigue-zague com acontecimentos futuros, particularmente ao mostrar o trabalho da jornalista, aqui chamada de Elizabeth (Julia Stiles), entrevistando as personagens de sua reportagem. O recurso narrativo, que não é tão comum em adaptações recentes de artigos jornalísticos, especialmente com a apresentação da figura do entrevistador, começa a se manifestar de forma mais determinante no decorrer do longa. Questionada dentro do seu privilégio, a repórter serve de guia para a empatia do espectador com essas mulheres, seja por uma pergunta mais incisiva ou por estabelecer uma conexão perdida entre as personagens, nesta dúbia balança moral que a história provoca.

São seus clientes corruptos que escaparam ilesos de ações ilegais e imorais que indicam à Ramona, Destiny & Cia a oportunidade de usar também meios escusos para encontrar uma rara brecha no sistema que as oprime, a fim de realizar seus pequenos ou grandes sonhos. Por isso, há um efeito Robin Hood e as golpistas em questão contam com a simpatia da plateia, partindo do fato que as vítimas deste caso, em sua maioria, são os vilões da crise que o país enfrentava. Até que algumas delas passam a questionar moralmente suas ações quando o descuido e a cobiça ultrapassam alguns limites, da mesma maneira que, mesmo contextualizando a vida dessas strippers, o filme não pisa no sensacionalismo para inocentá-las de antemão ao público: o julgamento cabe ao espectador.

Neste sentido, é essencial a construção multifacetada do texto de Scafaria e da interpretação das atrizes para trazer personagens tridimensionais, que se tornem intrigantes em sua ambiguidade. Particularmente, Constance Wu, mais conhecida por trabalhos cômicos como a série Fresh Off the Boat (2015-) e o longa Podres de Ricos (2018), demonstra uma força dramática, enquanto a estrela Jennifer Lopez tem o papel ideal para explorar todo o seu potencial, na sensualidade, comando e magnetismo de Ramona, e despertar a atenção de quem nunca reparou o talento da cantora em comédias românticas “estilo Sessão da Tarde”. Keke Palmer e Lili Reinhart se saem bem em tipos mais cômicos dentro do quarteto principal, bem como as participações especiais das cantoras e rappers Cardi B e Lizzo.

A exploração desse universo feminino esbarra, como de esperado, na maternidade com as duas personagens principais, seja na figura materna ausente ou nos desafios de ser mãe solteira, porém, sem uma visão moralista e mais sob a ideia de um carma inevitável. O foco aqui, surpreendentemente, se revela na amizade de Destiny e Ramona, com todos os prazeres e problemas que uma relação pode ter. É uma espécie de womance ou sismance que, naturalmente pelo ambiente em que estão inseridas, explora mais a tensão sexual entre elas do que outras comédias românticas de amigas, a exemplo de Frances Ha (2012) ou Fora de Série (2019), e, consequentemente, do público feminino frente à plateia masculina de clientes na boate e de espectadores no cinema.

Ainda que explore isso, a cineasta elimina o caráter sexual do strip-tease na aula de pole dance que a mestra dá à(aos) recém-chegada(os), demonstrando como a prática exige preparo físico e treinamento, no que é quase uma ginástica artística antes de uma dança sensual, a partir do momento que a trilha sonora a transforma em arte, mais especificamente em um balé. Essa é uma escolha fora da curva, entre outras óbvias da seleção musical, que inclui canções pop da época com músicas que dão um tom melancólico inesperado, mas que, ambos os casos, agregam à narrativa. O cuidado sonoro se reflete também no desenho de som, como no corte do áudio quando a gravação da entrevista é interrompida, mas é o uso certeiro de Royals, sucesso da cantora neozelandesa Lorde, que se destaca neste aspecto, ao trazer tanto contexto quanto elevar a percepção de uma vida que não pertence a quem está na periferia do luxo, mesmo quando o sonho parece realizado.

 

As Golpistas (Hustlers, 2019)

Duração: 110 min | Classificação: 16 anos

Direção: Lorene Scafaria

Roteiro: Lorene Scafaria, baseado no artigo “The Hustlers at Scores”, de Jessica Pressler, publicado pela New York Magazine

Elenco: Constance Wu, Jennifer Lopez, Julia Stiles, Keke Palmer, Lili Reinhart, Wai Ching Ho, Madeline Brewer, Gerald Earl Gillum (G-Eazy), Cardi B, Lizzo, Mercedes Ruehl, Emma Batiz, Mette Towley, Vanessa Aspillaga, Jay Oakerson, Trace Lysette, Marcy Richardson e Usher (Usher Raymond) (veja + no IMDb)

Distribuição: Diamond Films

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