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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MIX BRASIL 2019 | Sob o olho dela

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Adèle Haenel e Noémie Merlant em cena do filme Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) | Foto: Divulgação (Supo Mungam Films)

A juventude que se inflama dentro de um quadro onde o formalismo dita as regras do gênero. O título de Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) diz muito, não apenas sobre o conteúdo e as personagens do longa, como ao projeto em si, que marca a primeira investida da cineasta francesa Céline Sciamma no terreno dos filmes de época, depois de dramas contemporâneos juvenis como Tomboy (2011) e Garotas / Girlhood (2014). A modernidade aqui, porém, não é um fogo que destrói o classicismo, mas que incendeia o potencial que as histórias do tipo possuem em valorizar cada gesto e olhar na hora de criar uma tensão sexual abrasadora e envolver o público em seu romance, cuja visão do século XIX infunde este retrato onírico do século XVIII.

Vencedor de Melhor Roteiro e da Queer Palm – prêmio dado ao melhor filme de temática LGBT da seleção – em Cannes, a produção conduz o espectador em sua trama, como mais do que um observador passivo da relação que se constrói, fazendo com que a plateia, tal qual sua pintora protagonista interpretada por Noémie Merlant, de As Bandeiras de Papel (2018) e O Retorno do Herói (2018), preste atenção nos mínimos detalhes, inclusive, em claras entrelinhas. O convite surge desde o início, quando a então professora de artes Marianne pede às alunas que observem a sua mão e, segundos depois, justamente esta parte se recolhe no momento em que sua dona avista algo que mexe com suas memórias e seus sentimentos. Trata-se do quadro que guarda o mesmo título do longa – que, tal como os outros assinados pela personagem são pintados, na realidade, pela artista francesa Hélène Delmaire – e serve de passaporte para narrativa levar a este passado que a perturba.

Foi no ano de 1770 que Marianne chegou a uma isolada ilha na Bretanha, na costa norte da França, para uma tarefa inusitada: às escondidas, pintar o retrato de uma jovem que será encaminhado ao seu futuro noivo em Milão, a fim de que ele conheça a pretendente e confirme a união. A condessa mãe da donzela (a atriz italiana Valeria Golino, de Rain Man, de 1988, e Emma e as Cores da Vida, de 2017, e que dirige o recente Euforia, de 2018), no entanto, pede que ela se faça passar por sua dama de companhia durante alguns dias para observá-la e conseguir coloca-la na tela. Isso porque, como explica previamente a criada Sophie (Luàna Bajrami, um achado de O Professor Substituto, de 2018), sua recém-chegada senhora, que acabara de sair do convento para assumir o destino da irmã, morta sob circunstâncias trágicas, se recusou a posar ao pintor anterior, que desistiu do serviço.

O rosto esfumaçado nas pinceladas da tentativa fracassada demora a revelar-se à artista e ao público, envolto em mistério por Sciamma, quando a jovem Héloïse entra em cena e não se revela de imediato a face de Adèle Haenel, estrela do cinema francês atual em Amor à Primeira Briga (2014), A Garota Desconhecida e Faces de uma Mulher, ambos de 2016, entre tantos outros títulos. O momento acontece na primeira das caminhadas rumo à praia das duas, onde o próprio cenário das falésias exprime a beleza e o perigo da relação delas naquela época, bem como as chamas e outros elementos intrigantes da trama. Mas tal qual as personagens, tão bem conduzidas por suas intérpretes, a plateia também é levada à beira deste abismo.

A ameaça masculina não é palpável, nem visível, a partir do momento em que o pai pintor de Marianne e o noivo milanês de Héloïse são citados constantemente, mas nunca vistos. Os homens surgem muito rapidamente, como aqueles do barco ou o funcionário na cozinha, que chega como recorda às duas sobre os problemas do mundo real, depois de dias de sonho e irmandade com a jovem criada naquela mansão ou no belo canto feminino ao redor do fogo, em que algumas questões de saúde da mulher são levantadas pela trama. Não há a busca fácil por um vilão em si, e mesmo a figura materna, que poderia ser interpretada como antagonista em alguns momentos, genuinamente, apenas tenta dar um destino melhor à filha do que ela teve, dentro das normas sociais vigentes.

Por isso, existe um embate grifado pelo texto entre as duas sobre o papel da mulher na aristocracia e o daquelas que, dentro das artes, conseguiam algum tipo de liberdade naquele período, ainda que limitada. O confronto surge igualmente na relação da artista e sua musa, no momento em que a personagem a ser observada – com Haenel novamente fazendo esse papel para Sciamma, assim como no primeiro longa da diretora, o excelente coming of age Lírios d’Água (2006) – escapa desta posição e passa a dominar também o olhar artístico seja sobre a obra ou o próprio autor, em cenas e diálogos muito ricos para debater tais questões na pintura e no cinema. No voyeurismo inerente da história, a observadora feita por Melant, que tanto buscava pelo vislumbre de um sorriso desta mulher, passa a ser assombrada pela possibilidade da última visão dela, na referência direta ao mito grego de Eurídice.

Contudo, como é de se esperar em um filme de Sciamma, que tanto ao som de Rihanna quanto de Vivaldi sabe explorar o poder da música pontualmente em seu cinema, é a lembrança sonora que reativa a memória no potente final de Retrato de uma Jovem em Chamas, no qual a cineasta mais uma vez versa sobre frustrações amorosas e a tentativa de ver a beleza nisso, apesar da dor.

 

Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu, 2019)

Duração: 120 min | Classificação: 16 anos

Direção: Céline Sciamma

Roteiro: Céline Sciamma

Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami e Valeria Golino (veja + no IMDb)

Produção: França

Distribuição: Supo Mungam Films

> CineSesc – 16/11/2019, sábado às 21h30

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