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  • Foto do escritorNayara Reynaud

A LUZ NO FIM DO MUNDO | O apocalipse feminino cotidiano

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Anna Pniowsky e Casey Affleck em cena do filme A Luz no Fim do Mundo (2019) | Foto: Divulgação

Quem poderia dizer que Casey Affleck lidando com seus demônios renderia um filme tão sensível e combativo quanto A Luz no Fim do Mundo (2019), segundo longa do ator na função de diretor. O artista até advoga que a ideia do projeto surgiu bem antes das acusações de assédio que sofreu durante as filmagens de seu dèbut Eu Ainda Estou Aqui (2010). Mas, independente de suas questões pessoais e uma possível transformação interna neste sentido, é possível desassociar a obra de seu autor e intérprete para encontrar nela, surpreendentemente, uma alegoria bem direta sobre o machismo e os diversos tipos de violência que as mulheres sofrem ainda na sociedade atual.

Para usar um termo bíblico sobre uma história que traz diversos elementos cristãos, esta parábola se constrói em um cenário pós-apocalíptico, acompanhando a saga de um pai, vivido por Casey, e sua criança Rag, interpretada por Anna Pniowsky. Se a sinopse se assemelha bastante à trama do romance de Cormac McCarthy e de sua adaptação A Estrada (2009), o fato dos dilemas da paternidade em questão estarem ligados a uma filha traz um sentido diferente à narrativa. Essa figura paterna tenta protegê-la em um mundo totalmente masculino, devastado pela “peste feminina”, como ficou conhecido o vírus que devastou a população de mulheres quase em sua totalidade, sendo uma das vítimas a esposa dele e mãe dela, encarnada em breves flashbacks por Elisabeth Moss – já acostumada a distopias modernas, estrelando a série The Handmaid’s Tale (2017-) – das memórias escassas deste homem.

Isso porque esse apocalipse parcial ocorreu quando a menina ainda era um bebê e o roteiro escrito pelo próprio Affleck reserva apenas alguns diálogos para revelar os detalhes de como pai e filha têm sobrevivido todos esses anos, apesar de já demonstrar desde o início, no tempo presente da história, a urgência de escondê-la do mundo. Então, tal qual a protagonista, o espectador é apresentado primeiro a necessidade que a garota tem de se travestir de menino, sob o nome de Alex, e estar preparada constantemente para situações de emergência que exigem a fuga imediata dos dois por florestas e montanhas de inverno, filmadas no Canadá. Só depois de algum tempo, o adulto explica para a criança que já cresceu e quer saber mais, bem como ao público, que a aniquilação feminina deixou os homens magoados e muitos ficaram fora de si, tornando as sobreviventes em alvos claros desse ódio. Mas é o que fica subentendido no texto em momentos que ele fala que ela só estará segura “quando houver equilíbrio no mundo” que dizem mais respeito ao machismo estrutural e a violência contra a mulher da realidade atual do que sobre este cenário fictício.

Essa contenção no desvelar desse universo vai de encontro com o minimalismo usual da atuação de Casey, e que aqui lhe cai muito bem para um papel de um homem que quer passar despercebido para manter a filha em segurança, e que espelha na sua direção. Há uma restrição que se manifesta desde os planos fixos que representam essa imobilidade dos personagens nesse ambiente amedrontador até no modo como Affleck filma a ação mais física, ao mesmo tempo, com certa distância e uma brutalidade realística. Porém, isso não mina e sim constrói uma tensão eficiente, à medida que se torna cada vez mais iminente o perigo ao redor deles – e, especialmente, dela.

Há ainda a opção da sua direção e da fotografia de Adam Arkapaw em utilizar tantos ambientes escuros, onde a pouca luz que os circunda confere este significado de salvação a qual o título se refere. A princípio, pode se pensar que o amor paternal seria a tal “luz no fim do mundo”. Entretanto, o filme amplifica essa visão ao questionar, desde a primeira cena com o pai criando na hora o conto de Art sobre a Arca de Noé, porque a história é sobre a figura masculina das raposas e não sobre a feminina.

A pergunta vem de Rag, na sua inconformidade da juventude muito bem assinalada por Pniowsky, que surge como uma revelação neste longa, apesar de já ter feito o terror Ele Está Lá Fora (2018) e a série cômica PEN15 (2019-), por exemplo. Quando a feminilidade da personagem começa a aparecer, nos primeiros indícios de que ela está prestes a entrar na puberdade, o pai se aterroriza e tem pressa para represá-la, pois, apesar de cria-la para ser forte e sobreviver neste mundo desfavorável, ele acredita ser o único capaz de protegê-la e pena para aceitar que ela poderia fazer isso sozinha. A obra, então, se volta às dificuldades dela de se libertar desse jugo patriarcal, sem desprezar este verdadeiro sentimento paternal de proteção, conforme observa como a obrigação deste homem de ser sempre forte o corrói nas suas dúvidas diárias de como melhor criar a sua filha, tornando muito comovente e significativa a inversão proposta na cena final, em que a garota toma as rédeas dessa “aventura de amor”.

 

A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life, 2019)

Duração: 119 min | Classificação: 14 anos

Direção: Casey Affleck

Roteiro: Casey Affleck

Elenco: Anna Pniowsky, Casey Affleck, Tom Bower, Elisabeth Moss, Hrothgar Mathews, Timothy Webber e Thelonius Serrell-Freed (veja + no IMDb)

Distribuição: Imagem Filmes

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