CORINGA | The joke was on me
Atualizado: 8 de jan. de 2023
Diferente de todas as recentes adaptações da Warner de personagens da DC Comics, o início de Coringa (2019) não apresenta o logo do estúdio de histórias em quadrinhos. É como se o filme de Todd Phillips quisesse evitar de cara as comparações com dos fãs ao se afastar de alguma fidelidade à Piada Mortal (1988), clássica graphic novel de Alan Moore a qual se inspira livremente, ou qualquer outra HQ do universo do Batman para traçar o retrato de seu mais famoso arqui-inimigo. A princípio, o que há de comum entre a produção vencedora do Leão de Ouro no Festival de Veneza e sua base é o cenário: Gotham.
A cidade e seus problemas costumeiros são acentuados na trama, ambientada em um ponto crítico desta metrópole que passa por uma greve dos lixeiros, infestando-a de ratos e acirrando a insatisfação popular com aquela situação. O tom setentista e do início dos anos 80 dado pela fotografia de Lawrence Sher – embora o esforço da paleta de cores não seja acompanhado por uma granulação à imagem digital – reforça esse aspecto opressivo de uma Gotham marcada pela diferença de classes sociais e o seu choque em momentos críticos como este. O lugar que gera tantas pessoas marginalizadas serve de contexto para explicar de onde vem esse Arthur Fleck, personagem que Joaquin Phoenix interpreta antes de qualquer incorporação da figura icônica do Coringa.
Fruto das mazelas de Gotham, este homem que sonha em ser um grande comediante do stand-up, enquanto mora com a mãe Penny (Frances Conroy) e tenta se sustentar com um ingrato trabalho de palhaço de rua, tem dificuldades em se integrar a uma sociedade que o rejeita por conta de seus problemas mentais. Um momento-chave, em que as luzes intermitentes ajudam tanto na excelente construção de tensão crescente quanto na representação da dualidade moral do protagonista durante a cena do metrô, o faz revidar a violência sofrida, mas com graves consequências. É surpreendente, portanto, como o roteiro escrito pelo diretor e Scott Silver – indicado ao Oscar por O Vencedor (2010) e responsável também pelo script de 8 Mile: Rua das Ilusões (2002) e Horas Decisivas (2016) –, depois de todo esforço em criar de forma tão consistente um mundo paralelo ao que se convencionou a ver sobre super-heróis nas telonas, mova montanhas em uma virada novelesca, depois atenuada por outro plot twist, para deixar claro ao público a ligação de sua visão humanizada do famoso vilão com as origens do próprio Homem-Morcego, ainda mais vilanizando o pai do jovem Bruce (Dante Pereira-Olson), o então candidato a prefeito Thomas Wayne (Brett Cullen).
Quando se diz das diferenças com o gênero, ela se dá na própria opção narrativa pelo típico filme de personagem que se vê figurando nas premiações, mas não nos longas de origem das figuras heroicas e seus antagonistas. E tratando-se de um material tão rico para se trabalhar, como já foi visto em encarnações anteriores do Coringa, a possibilidade de indicações para Joaquin Phoenix na próxima temporada de prêmios é dada como certa. Além da transformação física dos quilos perdidos pelo ator, há toda a composição corporal e dos trejeitos, como a risada, e obviamente a construção psicológica de um personagem tão denso.
O outro caminho diverso está nas referências óbvias a O Rei da Comédia (1982) e Taxi Driver – Motorista de Táxi (1976), duas obras clássicas de Martin Scorsese e estreladas por Robert De Niro, que aqui faz o apresentador de TV Murray Franklin. Se no primeiro filme citado, o ator era o fã cujo fascínio por um grande comediante movia suas ações questionáveis, agora o astro faz o ídolo no qual Arthur se espelha em sua malfadada carreira no humor. Mais que guardar essas semelhanças, Coringa bebe da mesma fonte delirante desses dois longas, utilizando igualmente do tom ilusório da narrativa para jogar com o espectador sobre a possibilidade de ser ou não imaginação do protagonista aquilo que se vê na tela – algo que cineasta revela didaticamente em uma cena com a vizinha Sophie Dumond (Zazie Beetz), mas deixa aberto em relação ao final.
Na realidade, Phillips opta por relegar ao público os questionamentos, sejam da trama ou morais, o que tem gerado as críticas a um filme que divide opiniões de formas extremas. O olhar humanizado para o vilão, que busca compreender o contexto em que está inserido, não justifica as suas ações; tanto que no referido momento em que se duvida da integridade do ponto de vista apresentado por Fleck, a obra põe a cargo do espectador o dilema de continuar a apoia-lo incondicionalmente – apenas alertando que a excitação pode matar, como bem fala a campanha do governo dos Estados Unidos para combater o consumo de crack, estrelada por Clint Eastwood em 1981, que surge discretamente em uma TV. O xis da questão é que a produção surge em um período tão conturbado no mundo que isso traz o melhor e o pior para ela: a sensação de captar o espírito da época, o chamado zeitgeist, e igualmente a grande possibilidade de ser mal interpretada, justamente porque, nestes tempos, falta disposição e conhecimento das pessoas em analisar o conteúdo das mensagens midiáticas que recebem.
Pesa neste sentido também as declarações recentes e o passado cinematográfico de Todd Phillips, responsável pela trilogia Se Beber, Não Case!, embora o último Cães de Guerra (2016) pudesse indicar um novo direcionamento em sua filmografia visto agora. Se parte da plateia pode desconfiar das intenções deste cineasta que deseja ser levado a sério, mas não tanto, é fato de que Coringa não se trata de uma comédia e sim um estudo da dor por trás dela. Até quando o riso vem, ele traz consigo um incômodo que perpassa todo o filme, tornando sua experiência mais perturbadora do que o entretenimento que alguns esperam.
Coringa (Joker, 2019)
Duração: 122 min | Classificação: 16 anos
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Glenn Fleshler, Leigh Gill, Sharon Washington, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Brian Tyree Henry, Carl Lundstedt, Michael Benz e Ben Warheit (veja + no IMDb)
Distribuição: Warner Bros. Pictures