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  • Foto do escritorNayara Reynaud

AS VIÚVAS | Um conto de duas cidades em Chicago

Atualizado: 18 de fev. de 2021


Michelle Rodriguez, Viola Davis, Cynthia Erivo e Elizabeth Debicki em cena do filme As Viúvas (2018) | Foto: Divulgação

A carreira ascendente do cineasta Steve McQueen, que fez seu début em longas com Fome (2008), despontou de vez com o drama Shame (2011) e ganhou o Oscar de Melhor Filme com 12 Anos de Escravidão (2013), alcança um novo patamar no mais comercial de seus trabalhos até então. Contudo, a exploração do inglês no terreno do gênero policial em As Viúvas (2018) preserva o toque de um cinema de autor. Levando a adaptação de uma minissérie britânica oitentista para a Chicago atual como cenário, o realizador faz da obra mais que um filme de assalto ao conferir um contexto político-social e acentuar as questões de gênero já existentes na trama.

A origem está em As Damas de Ouro (1983), produção criada por Lynda La Plante que ganhou uma segunda parte dois anos depois – com direito à fuga para o Rio de Janeiro – e uma versão norte-americana em 2002. Trabalhando pela primeira vez em cima de um texto alheio, já que Garota Exemplar (2014) e Objetos Cortantes (2018) eram adaptações de seus livros para o cinema e a TV, a autora Gillian Flynn divide o roteiro com McQueen para trazer a historia dessas mulheres que, por diferentes razões, preferiam olhar para o outro lado quanto à vida criminosa de seus maridos, até que eles morrem queimados em uma van e os dias delas nunca mais serão os mesmos.

Uma dívida deixada pelo grupo por causa da ação desastrosa faz três das quatro viúvas planejar um grande assalto, mas a dupla de roteiristas está longe de querer fazer uma versão pocket de um Oito Mulheres e um Segredo (2018). A ação não é divertida como a de lá, porque as personagens de Viola Davis, Elizabeth Debicki, Michelle Rodriguez e, depois, a de Cynthia Erivo fazem isso por necessidade, mesmo sem nenhuma experiência no assunto. E aquela atmosfera de empoderamento que permeia o blockbuster só com protagonistas femininas não pertence a este filme: trata-se de algo que elas precisam acreditar que possuem para poder sobreviver em um mundo novo, agora cientes de seus algozes do passado e do presente. Por isso, embora o caderno deixado pelo marido Harry Rawlings (Liam Neeson), com todos os seus contatos, registros de ações e um grande plano de assalto, seja a ferramenta narrativa para que elas o executem, são as situações de abandono em que se encontram, após as mortes dos cônjuges, e as mais variadas formas de ameaças de figuras masculinas que as movem.

Do alto de seu apartamento na parte rica e moderna de Chicago, Veronica (Viola Davis, sempre bem) tem a sua tranquilidade interrompida pela invasão de Jamal Manning (um ótimo Brian Tyree Henry) exigindo o seu dinheiro de volta. O grande chefe do crime local, que tem no inescrupuloso e cruel irmão Jatemme (Daniel Kaluuya, assustando quase todo o elenco depois dos sustos que levou Corra!, terror mais comentado de 2017) o seu braço direito para o serviço sujo, agora pretende legalizar sua vida criminosa, disputando um cargo de vereador do distrito com Jack Mulligan (Colin Farrell), filho de uma tradicional família de políticos que comanda o bairro pobre da zona sul da cidade, dominado pela gangue do concorrente. Assim McQueen e Flynn traçam, paralelamente ao desenvolvimento do plano pelas protagonistas, esse raio-x de um sistema em que governantes, bandidos e até igrejas se digladiam e se unem para a manutenção de seu poder, seja de influência ou monetário, enquanto às consequências dele ao povo ficam subentendidas pela plateia que já as conhece bem em seu dia-a-dia.

O hibridismo da obra, estruturada como um thriller policial e desconstruída em seus dramas pessoais, familiares e sociais, é seu diferencial, embora seja também o que a faz não engatar de fato para o público. E, talvez, roubar a satisfação de um “serviço bem feito” que filmes de assalto trazem e dar em troca mais de duas horas de longa – duração sentida pelo espectador apenas ao final – que correm melancolicamente seja a intenção do cineasta. Por isso, As Viúvas parece ser aquele título em que dissecar detalhes de determinadas personagens e cenas seja mais interessante que analisar o todo.

Elizabeth Debicki, que, além de ter o melhor arco de desenvolvimento entre as protagonistas, destrincha várias camadas de sua Alice – ou Alitzia, já que, tal qual a atriz, a personagem tem descendência polonesa – e mostra seu talento, aproveitado melhor em produções televisivas como O Conto (2018) e O Gerente da Noite (2016). Aconselhada pela mãe a achar um homem rico para sustenta-la, ela até segue mais ou menos a sugestão, mas encontra uma saída de fato no plano de Veronica, não só financeira, como também pessoal, em uma discreta jornada de autodescoberta. Em determinado momento, por exemplo, um cara convidá-la para sair após lhe dar dicas para comprar uma van no leilão e, no seu passo seguinte no plano, em uma feira de armas, ela enxerga em uma mulher a única pessoa que poderia lhe ajudar sem segundas intenções; ainda mais usando a violência doméstica como identificação para a sua desculpa e dando origem a uma das melhores falas do roteiro de Flynn e McQueen: “Mãe, você não disse que a arma é o melhor amigo da mulher”.

O sexismo intrínseco nesta sociedade é explorado até nas personagens coadjuvantes, quando o cineasta utiliza esse papel dramatúrgico na trama para acentuar o papel secundário delas em determinadas relações de poder. Um bom exemplo é Siobhan (Molly Kunz), a assistente ruiva de Jack, cuja beleza é alvo do olhar e da língua de outros homens, mas que o espectador não a vê falar durante todo o filme. Resguardando-se na imagem de secretária bonita e burra que os outros fazem dela, o único momento em que ela trava um diálogo decisivo com o candidato que estava fraquejando, seja em sua masculinidade frágil que inicia a discussão com perguntas machistas e racistas ou no foco na disputa, fica escondido dentro das janelas escuras do carro, pois o cineasta prefere deixar a câmera fora do veículo durante toda a cena, rodada em um plano-sequência que apresenta as diferenças visíveis entre o lugar de seu palanque e sua casa usada como centro de campanha. A escolha em como filmar tal discussão revela, às cegas, uma mulher que é o cérebro, a força e ambição de um homem que publicamente é quem toma todas as ações enquanto é a representação visual literal de uma conversa sem hipocrisia, que só poderia ocorrer privadamente, sobre as reais intenções dos políticos e a imutabilidade do sistema, cujo resultado está na desigualdade social que nem um vidro filmado seria capaz de esconder.

 

As Viúvas (Widows, 2018)

Duração: 129 min | Classificação: 16 anos

Direção: Steve McQueen

Roteiro: Gillian Flynn e Steve McQueen, baseado na minissérie “As Damas de Ouro” de Lynda La Plante

Elenco: Viola Davis, Elizabeth Debicki, Michelle Rodriguez, Cynthia Erivo, Colin Farrell, Daniel Kaluuya, Robert Duvall, Brian Tyree Henry, Liam Neeson, Molly Kunz, James Vincent Meredith, Carrie Coon, Jon Bernthal, Manuel Garcia-Rulfo e Coburn Goss (veja + no IMDb)

Distribuição: 20th Century Fox (Fox Film do Brasil)

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