COMO É CRUEL VIVER ASSIM | Só os farelos de frustração
Atualizado: 27 de dez. de 2020
Um grupo planeja uma grande ação criminosa, mas as coisas não saem bem como imaginado. Esse é o ponto de partida para várias comédias de erros, hollywoodianas ou não, que o público conhece bem, mas o longa nacional Como É Cruel Viver Assim (2017) tem um sabor diferente. O novo filme de Julia Rezende leva o sequestro orquestrado por quatro figuras suburbanas cariocas, vividas por Marcelo Valle, Fabiula Nascimento, Débora Lamm e Silvio Guindane, para um caminho mais tragicômico, com personagens que tem sonhos de uma grandeza que não sabem definir, porém encontram seus pequenos prazeres nos sanduíches de mortadela, nuggets e purês à milanesa.
Fernando Ceylão assina o roteiro, a partir de seu próprio texto para a peça Como É Cruel Viver Assim (2014). “(O texto) suscitava muito a imaginação e trazia muito a proposta de imagem. E aí eu mostrei pra Julinha, achando que daria uma série”, contou Marcelo Valle, o único ator a estar na montagem teatral no Rio de Janeiro – a qual também produziu – e na produção cinematográfica, durante a coletiva de imprensa em São Paulo, na terça retrasada (7). “Eu não vi na peça o que a Julia viu”, relembrou a produtora Mariza Leão sobre a empolgação da diretora ao enxergar um filme ali logo ao ver a encenação, ressaltando, igualmente, para os jornalistas o trabalho do elenco, especialmente do núcleo central, que passou um mês na locação, ensaiando com os figurinos de seus personagens. O cenário em questão é a lavanderia de Clívia (Fabiula Nascimento), noiva de Vladimir (Valle), onde era ambientada 100% da peça extremamente verborrágica, explica Rezende, que traz novas locações para o longa, mas “quis preservar a alma deste texto”.
Nessa essência estão, por exemplo, as divagações sobre coisas do dia-a-dia e curiosidades verbalizadas pelo quarteto, particularmente por Clívia, com suas preocupações cotidianas de dona de casa, como os farelos deixados no chão pela amiga folgada Regina (Débora Lamm) e o aperfeiçoamento de suas receitas caseiras. Durante a conversa com a imprensa, Fabiula não só destacou o fato de poder “trocar o tipo de personagem” que geralmente lhe seria dado com a colega Débora, como a humanidade desses protagonistas, em um filme que, segundo ela, é muito triste: “Quando a gente viu pela primeira vez, ficamos arrasados”, recorda. “Acho que tem uma escolha também, que vem desde o roteiro, de qual a lente que você coloca nessas pessoas. (...) É um grupo de pessoas que pensa em sequestrar alguém, mas, com certeza, esse grupo de pessoas pensa em sequestrar alguém muito mais para se tornar alguém na vida do que, por dinheiro. Eles têm um problema de autoestima muito forte”, observou Silvio Guindane, que encarna o falante Primo, cujo arco dramático apresenta a maior transformação, como o amigo atrapalhado que vai intensificando sua frustração e, em conjunto, a sua raiva, culminando em uma atitude condenável e que suscita o debate, como sempre, atual da violência contra a mulher.
O ator, casado com a cineasta, ainda frisou como esses personagens estão à margem da sociedade, até fisicamente, vivendo na “Baixada Fluminense, pouco retratada no nosso cinema”. Algo narrativa e visualmente destacado nos deslocamentos dos amigos de Nilópolis para a Barra da Tijuca, onde mora a pessoa o alvo deles, o ex-patrão de Regina, babá que quer se dar bem na vida e tem a ideia do sequestro. E também na direção de Rezende, que longe do visual “clean” dos seus longas anteriores, pinta um quadro dessa marginalização. “A gente (ela e o diretor de fotografia Dante Belluti) tinha, de fato, uma preocupação muito grande, especialmente de enquadramento, de câmera. (...) Tinha todo um esforço de que a câmera estivesse a serviço dos personagens; então, tem muitos planos-sequências. A gente também queria procurar uma luz que não fosse muito naturalista, que tivesse uma dramaticidade daquele ambiente. Acho que a palavra que norteou um pouco essas escolhas foi sujeira”, detalhou Julia, explicando que esse aspecto sujo estava no grão da imagem, em contraposição com o apartamento todo claro em que a babá procura um novo emprego, e que possui na poluição visual daquela paisagem o sintoma claro do abandono do Estado.
Além dessa diferença imagética, Como É Cruel Viver Assim traz um tom próprio que marca um novo terreno na filmografia da cineasta que começou nas comédias românticas, com a franquia Meu Passado Me Condena (2013 e 2015), mas que já demonstrava uma verve dramática no romance Ponte Aérea (2015). A mistura de comédia, drama e thriller policial nem sempre consegue manter um ritmo uniforme em seu equilíbrio, porém, traz um frescor ao gênero mais popular do cinema nacional. “E tem uma coisa muito inteligente, eu acho, da comédia, que ela consegue ser uma forma de transformação através da empatia, de estar desprotegido quando você assiste uma comédia”, afirmou Lamm aos jornalistas, ressaltando a grande variedade existente no gênero, enquanto Milhem Cortaz, que faz o ex-namorado bandido de Clívia, destacou o “humor refinado” do longa de Julia, que disse ter os irmãos Coen, Quentin Tarantino e vários filmes norte-americanos dos anos 1990 como inspiração, além das várias referências pop já contidas.
No entanto, a obra tem o DNA genuinamente brasileiro em sua tragicomédia, cuja frustração dos personagens invade também a narrativa, construída em torno desse plano de sequestro que o espectador observa com a certeza de que algo vai dar errado, mas é surpreendido com a maneira que isso acontece. Essa sombra do fracasso que, há tempos, persegue as classes sociais mais baixas e os moradores da periferia que formam os milhões de esquecidos no país, contudo, se transformou nos últimos anos em um sentimento de desencanto de toda uma nação, ou como denomina Guindane “esse banzo instalado”. Julia Rezende defende que o filme se tornou um retrato do Brasil: “Quando a gente começou o projeto, a gente estava vivendo um outro Brasil, uma outra circunstância. Quando o filme ficou pronto, a gente foi se dando conta que ele falava de tudo isso que a gente está vivendo agora: personagens sem perspectiva, frustrados, atravessados pela crise política-econômica-social”.
Em um país carente de educação e oportunidades, se a ascensão social ou a necessidade de se destacar em seu grupo encontra naquele ambiente do longa a criminalidade como forma de se vangloriar entre os seus, não difere muito dos inúmeros garotos sonhando em ser jogador de futebol ou outros jovens buscando no YouTube ou na vida artística, em geral, um atalho mais fácil para marcar o seu nome. Mas dos que conseguem o seu estrelato em sua área, quantos mais ficam pelo caminho no anonimato da mediocridade (pensando no sentido original da palavra, de algo mediano, não destacável)? O plano final Como É Cruel Viver Assim no cemitério, então, representa estes brasileiros que veem seus sonhos serem enterrados em um ambiente que, apesar de simbolizar a morte que igualaria todos os humanos ao pó, mantém a desigualdade que encontram em vida, entre os túmulos construídos e as cruzes das covas rasas.
Da esquerda para a direita, os atores Marcelo Valle e Débora Lamm, a diretora Julia Rezende, a atriz Fabiula Nascimento, a produtora Mariza Leão, e os atores Milhem Cortaz e Silvio Guindane na coletiva de imprensa do filme Como É Cruel Viver Assim (Foto: Nayara Reynaud)
Como É Cruel Viver Assim (2017)
Duração: 107 min | Classificação: 12 anos
Direção: Julia Rezende
Roteiro: Fernando Ceylão, baseado na peça “Como É Cruel Viver Assim” de Fernando Ceylão
Elenco: Marcelo Valle, Fabiula Nascimento, Débora Lamm, Silvio Guindane, Paulo Miklos, Milhem Cortaz, Otávio Augusto, Zezeh Barbosa e Marcius Melhem (veja + no IMDb)
Distribuição: H2O Filmes
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